quinta-feira, maio 29, 2014

Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014)



Mais uma vez a palavra final de um filme ficou a cargo do sempre instigante José Geraldo Couto. A aproximação que ele faz de Praia do Futuro com o universo de Michelangelo Antonioni é bastante apropriada, especificamente no que tange à "configuração do espaço físico como elemento dramático". Ciente da má interpretação que pode advir dessa aproximação, ele faz um alerta, "atenção: isto não é uma comparação, só uma referência". E dá continuidade ao raciocínio: "nessa arquitetura em movimento não há um único enquadramento frouxo, desnecessário ou meramente ornamental. O ambiente não é mero cenário onde se desenrola o drama: ele é o drama. A isso damos o nome de cinema”.

Eu sou um apreciador do cinema de Karim Aïnouz, a ponto de considerar O Céu de Suely (2006) um dos grandes filmes brasileiros. É muito difícil ficar indiferente às suas imagens e seus personagens, construídos numa simbiose de sensações, sentidos e impressões, contrária a letargia paralisante que acomete suas criações por consequência de um abandono afetivo – o mesmo mote que guia Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009) ou O Abismo Prateado (2011). A propósito deste último, só consegui vê-lo há duas semanas, quando o 40º Festival SESC Melhores Filmes aportou em Ribeirão Preto. Mesmo num projeto de encomenda, que tende a limitar a influência do cineasta sobre o material, Karim encontra espaço para suas imagens respirarem.

Tenho a impressão de que ele teve mais dificuldade para montar Praia do Futuro, sendo forçado a recorrer aos capítulos ou episódios para facilitar a assimilação da passagem do tempo por parte do espectador. A ruptura drástica, espacial e da narrativa, distancia os personagens do público (como bem notou o blogue Filmes do Chico), que se vê obrigado a construir mentalmente os laços afetivos não explorados pelas imagens do filme. Segundo Chico, “Wagner Moura, que parece cheio de vida quando seu personagem ainda está preso às convenções, definha, desaparece quanto Donato teoricamente deveria estar pleno. Já Jesuíta Barbosa, que só surge no terceiro e último capítulo da história, aparece cheio de vigor para defender um personagem que precisava ter sido melhor definido lá atrás”.

Em contrapartida, as cenas de abertura e encerramento, mutuamente dependentes, carregam uma miríade de significados e interpretações. Karim explora muito bem as diferenças geográficas e climáticas entre Fortaleza e Berlim, convertendo-as em farto material cinematográfico. Seus personagens se fundem às paisagens/ao horizonte dessas localidades, adaptando suas emoções conforme as circunstâncias (o diretor inverte a lógica pré-concebida do frio, melancolia; calor, felicidade).

Pra fechar, outro comentário do Zé Geraldo Couto, com o qual eu compartilho da opinião, "duas imagens fortíssimas e contrastantes ficam impregnadas na retina e, a meu ver, balizam formalmente o filme: o vertiginoso aquário vertical em que o protagonista é reencontrado pelo irmão (Jesuíta Barbosa) em Berlim; e a “praia sem mar” que se estende a perder de vista na névoa, horizontalidade pura em que os irmãos desgarrados finalmente se reconciliam".

sábado, maio 10, 2014

Um Perigoso Adeus (Robert Altman, 1973)





The very embodiment of 70’s Hollywood genre revisionism, Robert Altman’s film of The Long Goodbye stands as one of his most accessible, wittily misanthropic films, and probably the finest performance of Elliot Gould’s career to date.
A warning for Raymond Chandler purists: you probably won’t like this film. Altman and screenwriter Leigh Brackett had quite a task in adapting Chandler’s second-last novel to the screen, for in it the “knight errant” Philip Marlowe comes over more like a prudish sap. Altman and Brackett have streamlined the narrative, removed peripheral characters, and – crucially – transformed Marlowe into a murkier, more comically ambiguous protagonist. In Altman´s and Gould´s hands, Marlowe is laconically relaxed, murmuring, alternately amused and annoyed at the world. Like Chandler´s hero, he is an outsider, a spectator, everywhere he goes. Unlike the literary Marlowe, Gould´s character seems washed up on the shores of an unfamiliar land, his nobility as crumpled and stale as his suit.
Along for the ride are the archetypal Chandler villains and victims: self-hating celebrities, young wives trapped in loveless marriages, crooked doctors, low-rent psychopathic gangsters, bored cops, flunkies lost out of time. Typically, the milieu Marlowe moves in range from the affluence of the Malibu Colony to the cells of the County Jail. Altman, however, wishes to make a film in and about 1973; the film is shot through with the psychic reverberations of the end of hippiedom and the remoteness of the “Me Generation”.
Another Altman touch is his openly expressed contempt for Hollywood and its conventions. As if to acknowledge the artificiality of a private detective story in the midst of 1970s Los Angeles, the film is suffused with jokey references to cinema. Bookended with “Hooray for Hollywood”, the film shows gatekeepers impersonating movie stars, characters changing their names for added class, hoods enacting movie clichés simply because that´s where they learnt to behave. Even Marlowe himself refers to the artifice when talking to the cops: “Is this where I´m supposed to say ‘What´s all this about?’ and he says ‘Shut up, I ask the questions’?”.
As for the supporting cast, Sterling Hayden shines out as the beleaguered novelist Roger Wade. There is more than a touch of Hemingway in Hayden´s bluff, blustering, vulnerable old hack. Baseball champ and sportscaster Jim Bouton is casually mysterious as Marlowe´s friend Terry Lennox, laugh-in alumnus Henry Gibson is suitably greasy as Dr. Verringer, actor/director Mark Rydell (best known for On Golden Pond) is convincingly chilling as gangster Marty Augustine, and Nina van Pallandt lends a dignified, defiant pathos to her role as Eileen Wade.
Special note must be made of Vilmos Zsigmond´s tremendous photography, employing his early “flashing” style of exposure to lend Los Angeles a suitably sultry, bleached-out aura. Also deserving attention is John Williams´ ingeniously minimalist score. Comprised solely of pseudo-source music, the score is a myriad of variations on a single song, appearing here as supermarket muzak, there as a party singalong, elsewhere as a late night radio tune.
The film´s controversial ending is utterly antithetical to Chandler´s vision. The message from Altman, however, is loud and clear: Chandler´s world no longer exists – if indeed it ever did.
Auteur Theory Stooge, 20 de Agosto de 2004


O User Reviews do IMDB costuma contar com algumas boas contribuições ao entendimento/interpretação de um filme, ainda que a grande maioria dos comentários não passe de bajulação descarada ou desprezo infundado. A resenha acima foi extraída de lá, ilustrando uma boa intervenção.

Abaixo um trecho do texto – o primeiro e último parágrafo – que Roger Ebert escreveu a respeito de Thieves Like Us (Renegados até a Última Rajada, 1974), que poderia ser estendido à boa parte da sua filmografia, incluindo Um Perigoso Adeus, lançado no ano anterior.

Like so much of his work, Robert Altman´s Thieves Like Us has to be approached with a certain amount of imagination. Some movies are content to offer us escapist experiences and hope we´ll be satisfied. But you can´t sink back and simply absorb an Altman film; he´s as concerned with style as subject, and his preoccupation isn´t with story or character, but with how he´s showing us his tale. That´s the case with Thieves Like Us, which manages a visual strategy so perfectly controlled that we get an uncanny feel for this time and this place.
(…)
Altman´s comment on the people and time is carried out through the way he observes them; if you try to understand his intention by analyzing the story, you won´t get far. Audiences have always been so plot-oriented that it´s possible they´ll just go ahead and think this is a bad movie, without pausing to reflect on its scene after scene of poignant observation. Altman may not tell a story better than anyone, but he sees one with great clarity and tenderness.

Minha singela contribuição

De minha parte, restam alguns momentos (favoritos) que estabelecem a grandeza do filme:

- a cena de abertura, relativamente longa, de uma fluidez admirável, em que Elliot Gould contracena com um gato. O tempo moroso que será adotado em todo o filme encontra o timing perfeito na encenação lânguida do protagonista, contrastante com o ritmo acelerado adotado nos melhores thrillers de espionagem (envolvendo detetives);


- a edificação que serve de locação para o apartamento de Philip Marlowe, que divide o andar com uma amostra estereotipada feminina bem humorada da comunidade hippie de então, com uma vista singular da Los Angeles dos anos 1970;

- as duas intervenções do gângster Marty Augustine (Mark Rydell), que leva as cenas ao inesperado/absurdo, rompendo de forma súbita com a letargia herdada do protagonista. A primeira delas, em especial, pega o espectador desprevenido (ao quebrar a garrafa no rosto da modelo);

- a cena da morte do escritor Roger Wade (Sterling Hayden) na praia, captada quase que por acaso pela câmera de Vilmos Zsigmond, durante uma conversa entre Marlowe e Eileen Wade;

- as diversas formas encontradas por Marlowe para acender um cigarro (ele fuma em todas as cenas);

- o carro de Philip Marlowe, saído da Los Angeles dos anos 1930 para a Los Angeles dos anos 1970.

sábado, maio 03, 2014

Os Mestres Loucos (Jean Rouch, 1955)


Por Steven Jay Schneider

Em 1954, o cineasta etnográfico Jean Rouch foi convidado por um pequeno grupo de haukas da cidade de Acra, na África Ocidental, para documentar seu ritual religioso anual. No decorrer dessa cerimônia, os haukas entram em um estado de transe e são possuídos por espíritos que representam os colonialistas ocidentais (o engenheiro, a esposa do médico, o governador-geral, o major cruel, etc.).

Embora tenha apenas 36 minutos, as imagens de Os Mestres Loucos são extraordinárias e muitas vezes chocantes: homens possuídos, com os olhos girando, espumando pela boca, queimando seus corpos com tochas. De fato, o filme Marat/Sade, de 1966, dirigido por Peter Brook, faria referência ao histrionismo e à linguagem inventada capturados aqui por Rouch.

No entanto, como o próprio diretor observou, para os haukas, a possessão por espíritos era verdade, não arte. Embora o filme nunca explique por completo o significado por trás do ritual, a narração de Rouch sugere que a participação na cerimônia religiosa resulta em uma espécie de catarse que dá aos haukas – em sua maioria trabalhadores rurais migrantes – a força necessária para manter sua dignidade e continuar trabalhando sob condições duras e opressivas. Conforme observa um acadêmico, a questão mais intrigante levantada por Os Mestres Loucos – um filme no qual “os oprimidos se tornam, por um dia, possuídos e poderosos – diz repeito à relação complexa dos haukas com sua experiência colonialista. Uma das obras-primas do cinema etnográfico.