segunda-feira, junho 30, 2014

Au Hazard Balthazar (Robert Bresson, 1966)



Depois de findado o texto de Corrida Sem Fim (1971), do Monte Hellman, a vontade de visitar um Bresson ficou incontornável. Fui de encontro a um dos seus filmes mais celebrados - existe algum pouco celebrado? -: Au Hazard Balthazar (A Grande Testemunha, em português). Optei pelo título original a fim de preservar a sonoridade da combinação das palavras, inexistente na versão brasileira. Desta vez, ao menos, o título brasileiro foi fiel ao conteúdo do filme, ou a uma das interpretações a ele atribuída. Minhas palavras seriam irrelevantes diante do extenso estudo que Tony Pipolo publicou em Robert Bresson: A Passion for Film. O trecho selecionado abaixo, extraído do livro, é curto em vista do exame dilatado que ele se presta a fazer sobre cada um dos filmes do mestre francês. Uma ótima publicação merecedora de uma versão traduzida – o original é em inglês.

Por Tony Pipolo

Beyond cultural, literary, and religious associations, what kind of characte is Balthazar? Can we relate to his experience? Does he have an interior life and understand what happens to him – the basis of Greek and Elizabethan tragedy? Or does his baptism, the sacrament that “leaves on the soul an indelible mark called a character… a spiritual quality which gives to him who receives it a special power to serve God”, prelude those features fictional characters usually have? Before baptism, according to Catholic doctrine, every individual born into the world is in the state of original sin, the only exceptions being the Virgin Mary and Jesus Christ. As an animal, Balthazar is clearly another exception. This is the point of his role and of the baptism scene, which, though presented as a charming childhood ritual, is really an initiation into the world of suffering by all humanity.

In fact, though, Balthazar is no more of a problem than filmic incarnations of Jesus in countless biblical epics, where the challenge is how to evoke the divine through the corporeal (especially when the corporeal is in the form of a movie star) and bypass any psychology. Can a film about Christ convincingly render an inner life when, despite The Idiot´s six hundred pages, we learn little about Prince Myshkin´s? By rooting Balthazar in blunt physically, giving new meaning to the idea of word made flesh, Bresson avoids the problem altogether as well as such clichés as images bathed in ethereal light and off screen evocations of the divine presence. In short, there is a built-in constraint faced by all writers and filmmakers who approach divine or saint-like figures: the more one strives to humanize the character, the less believably perfect the figure will be. As the narrator of Graham Greene´s End of the Affair remarks, “Goodness has so little fictional value”.

In narrative films a character´s conflict and inner life are conveyed through the actor´s performance, a route that Bresson´s aesthetic denies us. Balthazar takes that aesthetic even further, for not only is the protagonist an animal, but we have no way of knowing if it is the same animal throughout. The three films immediately preceding Balthazar have prepared us for this development, having shifted the focus from the actor´s repertory of expressive looks and gestures to the entire cinematographic system of rapports, of which the actor´s face, body, and voice are only three signs among many. From this perspective, Balthazar´s character is formed both directly - through framing, editing, and mise-en-scène, - and indirectly, through the association and feelings that come to rest on him as the only constant object before us. In the absence of any central human consciousness, the spectator uses Balthazar, somewhat analogously to the way the film´s character do, as a repository of the emotions aroused in the course of the story. It is the accumulation of displacements and projections rather than sentimental anthropomorphism that creates the character Balthazar and induces the catharsis of the final scene.

domingo, junho 22, 2014

Apanhado Cinematográfico

Ao que tudo indica, a Copa deve servir de justificativa para o lançamento de um número moderado de filmes, já que nenhuma distribuidora se arrisca a colocar no mercado um produto que ainda não tenha sido testado, seja uma continuação, um blockbuster que atende ao calendário internacional de estreias ou a adaptação de um best-seller. A lógica que rege o mercado encontra a circunstância apropriada para colocar em prática o seu verdadeiro desígnio, ao mesmo tempo em que consolida de vez a era das transmissões dos jogos via telões de cinema (como já vem fazendo com shows e óperas). Pelo menos em Ribeirão Preto a toada parece ser essa.

Sem partir para lamentações, a ideia aqui é fazer um breve apanhado das últimas sessões frequentadas, sem qualquer distinção de qualidade.

Sob a Pele (Jonathan Glazer, 2013) – as imagens mais memoráveis do ano até agora. Confesso que mesmo reconhecendo esse mérito do filme, ainda não fui capaz de adotar um julgamento definitivo sobre ele. Provavelmente terei de vê-lo novamente. Sem sombra de dúvida, o melhor uso que se fez de Scarlett Johansson até hoje (e não digo isso pelas cenas em nu que ela protogoniza – a sua sensualidade independe da exposição literal do seu corpo). Boa parte do interesse do filme reside no choque proporcionado pela imagem da atriz que conhecemos e o ser que ela procura incorporar.

Godzilla (Gareth Edwards, 2014) - depois do desastre do Godzilla (Roland Emmerich, 1998), o anúncio de que o material seria revisitado não despertou o entusiasmo em ninguém. Guillermo del Toro indicou um possível caminho para o revival dos monstros japoneses em o Círculo de Fogo (2013). Gareth Edwards fez a lição de casa ao estudar minuciosamente seu mentor, Steven Spielberg. Lembrou os bons momentos do mestre ao controlar as expectativas do público, valorizando as aparições do monstro sempre que ele entra em cena.

X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (Bryan Singer, 2014) - o melhor filme de super-heróis desde X-Men: Primeira Classe (Matthew Vaughn, 2011). Nada do que foi produzido nesse intervalo se compara a excelência dessa produção, nem mesmo o elogiado Capitão América que estreou há uns dois meses atrás - que, honestamente, não me convenceu. Turbinaram este X-Men com a melhor combinação de personagens/atores que a série produziu até agora, num esforço bem orquestrado para colocar as duas gerações no mesmo plano. A cena em que o Mercúrio (Evan Peters) liberta Magneto (Michael Fassbender) do confinamento vale o filme inteiro.

A Culpa é das Estrelas (Josh Boone, 2014) - eu tenho uma sobrinha de 12 anos cujo gosto pela leitura foi despertado ao ler o livro de John Green - matriz de onde o filme foi adaptado. Eu sempre procurei trazer referências para compor o universo cinematográfico dela, recorrendo a produções clássicas condizentes com a sua faixa etária. Crianças não atribuem muita importância à data de produção de um filme. O dia em que ela reproduziu os diálogos de O Mágico de Oz (Victor Fleming, 1939), depois de assistí-lo inúmeras vezes, foi inesquecível. Enfim, agora, com A Culpa é das Estrelas, foi a vez de ela me influenciar com as suas referências. É bonito ver o florescer de dois atores que serão lembrados por esses papéis por toda uma geração de espectadores (adolescentes). Não é difícil encontrar argumentos para desqualificar o filme, embora esse não seja meu intuito, já que minha lembrança ficou atrelada ao entusiasmo da minha sobrinha. Não minto, chorei pra caramba.

Como Treinar o Seu Dragão 2 (Dean DeBlois, 2014) - de 2010 pra cá, desde o primeiro Como Treinar o Seu Dragão e Toy Story 3, a animação norte americana vem passando por um momento de pouca inspiração, merecendo destaque apenas Detona Ralph (Rich Moore, 2012). O segundo episódio de Como Treinar, do mesmo Dean DeBlois, veio para alterar esse panorama: é uma p...
animação. O parágrafo que abre o texto de Susan Wloszczyna, colaboradora do site www.rogerebert.com, resume bem a razão da sua superioridade: "What the sea was to Finding Nemo, the sky is to How to Train Your Dragon 2 - a boundary-free backdrop of natural beauty that allows the audience to experience first-hand the wonders down below or up above in an immersive way that only the best in 3D animation can do".

terça-feira, junho 10, 2014

Corrida Sem Fim (Monte Hellman, 1971)


Em algum lugar entre Robert Bresson e Roger Corman reside este mais inventivo dos road movies.
Filipe Furtado

É perfeitamente compreensível quem considera Corrida Sem Fim um filme enfadonho. Se talvez já o fosse ao início da década de 1970, quando do seu lançamento, para os padrões de consumo atual é praticamente certo que essa avaliação encontre um número significativo de adeptos. No entanto, ninguém pode chamar Monte Hellman de embusteiro: logo na primeira cena, que explora os bastidores de um racha em preparação (a construção da cena é lenta e exemplar, com destaque para o excepcional trabalho de som), a emoção da corrida nem chega a se concretizar, visto que a polícia aparece bem no início para dar cabo da festa que mal começara.

O filme adota essa estrutura até a última cena: sempre que alguma coisa emocionante está para acontecer, sejam os próprios rachas, uma cena de sexo, um acidente, um roubo ou uma confrontação mais enérgica (um ajuste de contas entre os personagens), a câmera de Hellman se desloca do epicentro da ação para registrar um movimento/comportamento adjacente a ela (não necessariamente chegando a interrompê-la, podendo até ser a sua causadora). Esse procedimento reforça o caráter existencialista dos seus personagens, muitas vezes indiferentes ao que se passa ao seu redor, desorientados e confusos diante de um mundo aparentemente sem sentido e absurdo. O filme é um produto fortemente influenciado pelo movimento de contracultura norte americano dos anos 1960, voltado para o indivíduo de comportamento antissocial (normalmente jovens), com um espírito libertário e dotado de uma cultura marginal (alternativa).

Esse sentido de desorientação é muito bem explorado nos diálogos esparsos dos personagens, sempre que alguma menção é feita a respeito do destino da jornada, constantemente alterado sem aviso prévio (ao espectador), seja por ansiedade, alienação ou tédio. O trajeto a ser percorrido é fruto de uma aposta entre os jovens James Taylor (motorista), Dennis Wilson (mecânico) e Laurie Bird (garota), instalados em um Chevy 1955, contra G.T.O (Warren Oates), habitando um Pontiac GTO. O sentido adotado é inverso ao consagrado rumo que os americanos empreenderam quando da ocupação do território: no contrafluxo (tudo no filme é contra alguma coisa, mesmo que não expresso de maneira explícita), eles partem para o leste - mais especificamente Washington D.C. Apesar do destino pré-definido pelo roteiro, o intuito da viagem leva a crer mais na vontade dos personagens de se perderem no caminho, estando Hellman mais interessado em construir um estudo de personagem (character study) pouco afeito a relações do que propriamente em explorar os meandros da corrida.

Num curto texto escrito em um dos seus extintos blogs, Inácio Araújo (cantodoinacio.blogspot.com.br), ao discorrer sobre Disparo para Matar (1966), do próprio Hellman, saiu com o seguinte comentário:

De um faroeste espera-se, habitualmente, ação. De Disparo para Matar o que se obtém, a maior parte do tempo, é reflexão: dois homens silenciosos percorrendo um caminho e traçando sua estratégia de combate. Dessa substituição da ação pela reflexão, da consequente inflexão do tempo em detrimento da trajetória (ou antes, o tempo e a trajetória tem a mesma importância), não decorre uma perda de tensão pelo filme, mas um acréscimo de tensão que vem do filme, isto é, não do roteiro, mas da matéria do filme que se desenrola diante de nós (e cuja importância ficará mais clara no final da projeção). O gosto de Monte Hellman por personagens silenciosos, ensimesmados, que não escondem nada, simplesmente são assim, ficou conhecido por nós em Corrida Sem Fim, onde dois amigos vivem de tirar rachas de estrada.

A abordagem desse tempo do filme, a qual Inácio Araújo se refere, encontra um momento sublime mais ou menos a meio caminho do seu término. Durante um dilúvio, os quatro personagens resolvem parar em um posto de gasolina para abastecer. Enquanto aguardam o atendimento (e mesmo depois dele), cada qual faz proveito do tempo à sua maneira, sem que nada de extraordinário aconteça (um rouba uma placa, outro verifica a mecânica do carro, outro dorme...). O registro desses momentos é muito precioso, sem a influência daninha dos diálogos explicativos, restando apenas a captação dos corpos à deriva em circunstâncias que o público não costuma valorizar. Nesses momentos de rara inspiração o cinema de Robert Bresson prepondera.