quarta-feira, dezembro 31, 2014

Final de Ano

A semana comprimida entre o Natal e Réveillon é o período propício, entre uns goles e outros, pra colocar em dia tudo o que ficou pra trás ao longo do ano. Todo o filme que escapou ao meu radar ou foi desprezado pelas distribuidoras do interior encontra a ocasião apropriada para ser apreciado. A essa altura do campeonato as listas de melhores do ano já foram publicadas, o que me permite filtrar melhor as escolhas a fim de evitar um desperdício de tempo - já bastante comprometido. Naturalmente, apesar desse sprint na reta final, é perfeitamente provável que muita coisa boa ainda fique para trás.

O Homem Mais Procurado (Anton Corbijn, 2014) - o filme chegou ao circuito quase despercebido (por pouco eu o assisti em São Paulo enquanto me encontrava na cidade para a Mostra). Não fosse pela presença do recém-falecido Philip Seymour Hoffman, talvez a produção nem ganhasse as telas dos cinemas brasileiros. Um grande filme de espionagem, sem o tom paródico nem o humor característico de um episódio de 007. Tampouco contém o glamour a qual o ofício de agente secreto sempre esteve associado (ao menos no cinema). Definitivamente, a melhor adaptação de um thriller de John le Carré.

A Imagem Que Falta (Rithy Panh, 2013) - a história sobre a Guerra do Vietnã que os livros não contam. O banho de sangue continua depois que os americanos retiram oficialmente suas tropas do território vietnamita (ainda que a o povo retratado seja cambojano). Rithy Pahn encontra nos bonequinhos de argila uma saída criativa para representar o sufoco a qual seu pares foram submetidos, muito embora a força de seu filme dependa mais do relato verbal da sua experiência como sobrevivente do genocídio. Vale uma sessão double bill com O Ato de Matar (2013), de Joshua Oppenheimer. São dois testemunhos definitivos, e curiosamente complementares, de como a ideologia dominante do século XX (capitalismo x comunismo) foi empregada para legitimar atrocidades contra inocentes.

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Um presente de Natal fez a minha cabeça nos últimos dias, e já está bem encaminhado para fazer a cabeça dos meus familiares. Um livro relativamente curto, mas muito inspirado, que dá pra ler num tapa: A contadora de filmes. Escrito pelo chileno Hernán Rivera Letelier, "que dá nome aos homens que vivem nesse mundo de areia e sal que é o deserto do Atacama", conforme passagem do texto de orelha de Walter Salles, o livro é uma declaração de amor ao cinema, à imaginação e à arte de narrar. A vida de quem lê é tocada pela magia das linhas ternas de Letelier, que evita o tempo todo o tom misericordioso da prosa. Sua tinta não maquia a realidade dos seus personagens, mas encontra o narrador adequado (a pequenina Maria Margarita) para suavizar a jornada dos relatados.

O pequeno trecho impresso nas costas da publicação dá uma boa ideia da excelência do conteúdo da narrativa:

“Certa vez li por aí, ou vi num filme, que quando os judeus eram levados pelos alemães naqueles vagões fechados, de transportar gado – com apenas uma ranhura na parte alta que entrasse um pouco de ar -, enquanto iam atravessando campos com cheiro de capim úmido, escolhiam o melhor narrador entre eles e, subindo-o em seus ombros, o elevavam até a ranhura para que fosse descrevendo a paisagem e contando o que via conforme o trem avançava.
Eu agora estou convencida de que entre eles deve ter havido muitos que preferiam imaginar as maravilhas contadas pelo companheiro a ter o privilégio de olhar pela ranhura.”

domingo, dezembro 21, 2014

O Sabor da Melancia (Tsai Ming-liang, 2005)


O final de ano vai se aproximando e as listas começam a proliferar na internet. Cães Errantes (2013), de Tsai Ming-liang, encontrou espaço em algumas delas, sobretudo naquelas elaboradas por brasileiros. Antes de preparar a minha seleção eu gostaria de reforçar a impressão que tive dele no ano passado (eu o vi na Itinerância da Mostra em Ribeirão Preto), aprofundando-me no universo explorado por seu realizador. Eu tenho gravado desde 2011 O Sabor da Melancia (2005), que figurou na grade de programação do Telecine Cult por algum tempo. De lá pra cá eu ainda consegui baixar O Rio (1997) e O Buraco (1999), mas nenhum deles recebeu a minha devida atenção. O Sabor da Melancia foi o primeiro passo para tentar reparar essa lacuna.

O extenso dossiê que a Revista Interlúdio dedicou ao diretor coloca este filme como uma espécie de parêntesis em sua obra, causando descontentamento naqueles que já o seguiam, ao mesmo tempo em que serviu de porta de entrada para novos seguidores interessados em seu estilo. Embora a ambientação deste longa-metragem seja mais solar e vigorosa - com um uso bem mais expressivo de cores, valorizadas pelos números musicais excepcionais -, engana-se quem pensa que a narrativa ruma para um acerto de contas conciliatório nos moldes de uma comédia romântica (hollywoodiana talvez, mas não somente). O apaziguamento do espírito e do desejo (carnal) vem com um choque. Num "ímpeto irracional" do personagem do seu ator-fetiche Lee Kang-sheng, Tsai Ming-liang "alcança um efeito inimaginável, rearranjado os mesmos elementos da sua obra de forma a obter mais do que o novo", conforme passagem do texto de Wellington Sari para a Revista Interlúdio.

A abertura do texto do Cléber Eduardo para a Revista Cinética esclarece melhor as coisas, embora o seu conteúdo completo seja menos reverente:

Na primeira sequência de O Sabor da Melancia, duas mulheres cruzam em sentido contrário, em um corredor público, sem olhar uma para a outra. É como se não existissem. A imagem seguinte é a de um casal fazendo sexo com uma melancia entre eles. Mal se tocam diretamente, estão perto e separados. Na última sequência, o protagonista sem nome, o mesmo da cena de sexo com melancia, cumpre sua função como ator pornô. Transa com uma mulher morta (pornô = necrofilia), olhando para outra, à sua frente, em uma janela gradeada – levando-a a um orgasmo à distância, provocado só pela imagem. Sexo sem contato físico, com um corpo morto a intermediar o prazer. No momento clímax, ele larga a atriz morta e goza na boca da  mulher na janela, moça com quem tem uma relação silenciosa ao longo do filme (retomada de uma obra anterior de Tsai Ming-liang, Que Horas São Ai?). Seu olhar não se dirige ao dela, pois, entre eles, há uma parede. Expressão de sofrimento: a dela é de dor profunda, rosto colado na genitália dele, lágrimas nos olhos, sêmen na boca.

O filme é praticamente mudo, salvo pelos números musicais que rompem absolutamente com a cadência da narrativa e com o silêncio reinante, injetando humor e alegria onde não existem. Todas as letras musicais são melancólicas, contrastando com o ritmo alegre das melodias. O tom desesperançoso logo se impõe, assim que a epifania musical de caráter fortemente erótico termina. Aliás, é nesse contexto sexual, agravado pela escassez de água e comunicabilidade, mas repleto de desejos carnais e espirituais ocultos, que a melancia se encaixa como um vetor a preencher o vácuo existencial dos personagens. Um ato de coragem e criatividade em produzir um filme inteiro dependente de uma metáfora contestável, cujos significados nos conduzem a outra esfera de compreensão a partir de uma experiência cinematográfica absolutamente incomum.

segunda-feira, dezembro 15, 2014

Avanti Popolo (Michael Wahrmann, 2012)


Os dois parágrafos abaixo foram extraídos do texto de Victor Guimarães para a Revista Cinética a respeito de Avanti Popolo. A crítica original, que pode ser acessada aqui, tem mais três parágrafos que antecedem esse trecho. Recomendo a versão integral sem sombra de dúvidas, em que o raciocínio não é interrompido e a profundidade da abordagem segue um crescendo. Seja como for, as palavras de Victor contribuem muito para valorizar o filme, cujas exibições não foram capazes de atrair muito público. Uma pena!

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Por Victor Guimarães

Avanti Popolo (e a ironia do título é um dos principais sinais disto) é um filme cuja figura central é o luto, em suas múltiplas possibilidades. Luto vivido pelos dois protagonistas, que respondem – cada um à sua maneira – ao passado do desaparecimento. E um luto mais profundo, em relação às utopias políticas que atravessaram a história do país. A sutileza com que o comentário político do filme se produz é uma das características mais notáveis: na ironia aos hinos nacionais que marca o encontro de André com o taxista, na canção-título interrompida já perto do final ou no desvario da comédia “Recuerdos da República”, mostrada ao protagonista pelo cineasta Marcos Bertoni, o filme afirma uma contundente irreverência (no sentido forte) em relação ao romantismo do passado, no mesmo movimento em que expõe um profundo desencanto em relação ao esvaziamento de um presente pós-utópico. Quando André coloca para tocar o disco de cantos do Exército Vermelho enviado pelo irmão, o volume da música (que mais parece um rap) sobe progressivamente – de forma antinaturalista – e retumba sobre o espaço da sala, como se os fantasmas voltassem a ameaçar o presente do protagonista, e como se o filme apertasse um parafuso nos ouvidos do espectador.

Mas há ainda um denso luto pelo fim do cinema (ou por uma forma de fazer e viver o cinema). Não uma nostalgia inócua e paralisante, mas um verdadeiro luto, trabalhado de forma intensa durante todo o filme: nomear Baleia a cadelinha das obsessões do pai, fazer com que o espectador tenha de esperar até que um rolo de película seja rebobinado, filmar as ruínas de um cinema desativado como última imagem antes da palavra Fim não são apenas comentários fortuitos, mas uma maneira de trabalhar o luto até extrair dele suas potências de arte. A cegueira do pai (não por acaso, interpretado por Carlos Reichenbach) diante das imagens projetadas do filho é o momento em que todas as camadas se encontram, e a beleza pode existir por si mesma.

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A minha contribuição, menos reputada, se faz em dois breves itens:

- a cena do Eduardo Valente como taxista vidrado em hinos nacionais me trouxe a lembrança instantânea do Bang Bang (1970), de Andrea Tonacci. Não exatamente pelo rigor/simetria da composição dos quadros, que é uma das memórias que permanece com qualquer espectador que já tenha vivenciado a experiência, mas pela angulação da câmera e a quase-conversa travada dentro de um automóvel em movimento - o humor é quase involuntário.

- a cena muito breve que se passa em um ponto de ônibus, logo após o retorno do personagem de Carlos Reichenbach da delegacia. É a cena mais impactante do longa-metragem no meu ponto de vista, inversamente proporcional à sua duração. Algumas pessoas aguardam no ponto a chegada da sua condução, todas de descendência negra, salvo Carlão, claramente fora do contexto daquela situação. Ao que uma passageira se aproxima e se senta ao seu lado, dirige-lhe a palavra reclamando da espera na fila da delegacia para aguardar instruções sobre o seu filho que se encontra sumido. Carlão emenda sem hesitar que ainda aguarda notícias do seu filho desaparecido desde 1974. Esse hiato temporal é a base da construção do seu personagem, que vive praticamente prostrado, profundamente afetado pelo desaparecimento do seu primogênito, em decorrência da repressão ditatorial.