William James
Quanto será que existe de John Cassavetes em seus personagens? Não digo dos personagens que ele interpretou ao longo da carreira como ator sob a batuta de outro diretor, mas sim dos personagens que ele escreveu – às vezes para si, às vezes para seus amigos/parceiros - para os filmes que dirigiu. À medida que acumulamos experiências de seus filmes, essa pergunta surge naturalmente. Todos eles - o casal Richard e Maria Forst de Faces (1968), o casal Nick e Mabel Longhetti de Uma Mulher sob Influência (1974), o clubowner Cosmo Vitelli de A Morte do Bookmaker Chinês (1976), o casal Myrtle Gordon e Maurice Arons de A Noite de Estreia (1977), os irmãos Sarah e Robert de Amantes (1984), etc. - são movidos por uma paixão intensa, quase beirando a loucura (serão alguns deles verdadeiramente loucos?), que se manifesta ora como amor desmedido/inconsolável, ora como raiva/ódio, e os leva a se comportar inconsequentemente, sem nunca perder a candura e/ou a ternura. São todos seres humanos tentando lidar com os seus desejos, frustrações, preconceitos, diferenças e as agruras do dia-a-dia.
São lobos solitários, seres de hábitos noturnos, que se relacionam, sobretudo, quando estão sob o efeito do álcool e/ou da nicotina (são memoráveis as cenas em que dois pais, Peter Falk em Uma Mulher sob Influência e o próprio Cassavetes em Amantes (se a memória não me falha, essa cena existe!), oferecem bebidas aos seus filhos – embora a atitude seja reprovável). A vontade de se comunicar, de se fazer entender, de ser aceito e/ou compreendido, requer a companhia de um copo de bebida na mão e um cigarro na boca. A intensidade das emoções exprimidas pelos seus personagens exige o estado alterado de consciência proporcionado pela combinação de cigarros + bebidas; no entanto, Cassavetes trabalha num registro que se afasta do estereótipo do “bêbado”/tabagista – seus filmes não são sobre alcoólatras ou viciados, como Farrapo Humano (1945), de Billy Wilder, ou Vício Maldito (1962), de Blake Edwards. Eles vão muito além dessa abordagem.
Curioso que mesmo sob esse estado constante de embriaguez, seus personagens estão sempre dispostos a enfrentar os dilemas conjugais ou fraternais que regem suas relações. Normalmente, encaram esse processo na ressaca que os acomete após um longo período de imersão alcoólica e tabagista. Em Cassavetes, a cumplicidade nos relacionamentos é fruto desses momentos de exagero, impetuosidade e veemência afetiva.
Recentemente assisti a Faces e A Morte do Bookmaker Chinês na programação do SESC. Em todos os filmes de Cassavetes, a identificação com os seus personagens custa a acontecer: pelo menos pra mim, leva um (bom) tempo depois de começada a película. Seus roteiros não seguem a cartilha hollywoodiana, que se esforça para deixar o espectador confortável desde o início; seus filmes são duros, por vezes chatos, às vezes difíceis, embora nunca desinteressantes. São, na verdade, necessários. Durante a projeção, experimento os mais diversos estados de espírito: indiferença, chateação, alívio, tensão, alegria, tristeza, ansiedade, impaciência, frustração, admiração, satisfação, medo, etc. Basicamente, compartilho das emoções dos personagens. Terminado o filme, fortes lembranças permanecem na minha memória. Abaixo, faço uma breve relação delas.
- a luz do dia cega (a “luz estourada” nas tomadas de dia reforça o efeito da ressaca dos personagens), chega a arder os olhos;
- todos os filmes de Cassavetes poderiam se chamar Faces, dado o número de closes que ele realiza;
- as belíssimas cenas que ele consegue realizar em escadas (o final sublime de Faces e o longo plano-sequência de Uma Mulher sob Influência);
- as tomadas dentro do taxi em A Morte do Bookmaker Chinês;
- o chão como tabuleiro de xadrez em Faces (lembra o primeiro curta de Glauber Rocha, Pátio (1959));
- o longo plano-sequência de Faces em que Seymour Cassel se desdobra para acordar Lynn Carlin – emoção a flor da pele, intensidade pura;
- a cena em que Ben Gazzara leva suas “funcionárias” para passear em uma limusine, regrado a champanhe;
- a patética e melancólica apresentação de Mr. Sophistication em A Morte do Bookmaker Chinês;
- o momento em que Peter Falk deixa a festa que se passa em sua própria casa pra tomar um ar fresco do lado de fora (Uma Mulher sob Influência);
- a cena bizarra em que Gena Rowlands leva pra dentro de casa um bando de animais (Amantes).
OBS: quando assisti a Turnê (2010), de Mathieu Amalric, a associação com o universo do diretor norte americano foi imediata. Minha referência eram as cenas de pai e filho em Amantes. Agora, depois de ter visto A Morte do Bookmaker Chinês, a fonte que Amalric bebeu ficou mais clara.
O ótimo Namorados para Sempre (2010), de Derek Cianfrance, é um filhote talentoso de Cassavetes.