domingo, julho 31, 2011

Faces, o Bookmaker Chinês e o universo de Cassavetes






“A sobriedade diminui, discrimina e diz não; a embriaguez expande, une e diz sim.”
William James

Quanto será que existe de John Cassavetes em seus personagens? Não digo dos personagens que ele interpretou ao longo da carreira como ator sob a batuta de outro diretor, mas sim dos personagens que ele escreveu – às vezes para si, às vezes para seus amigos/parceiros - para os filmes que dirigiu. À medida que acumulamos experiências de seus filmes, essa pergunta surge naturalmente. Todos eles - o casal Richard e Maria Forst de Faces (1968), o casal Nick e Mabel Longhetti de Uma Mulher sob Influência (1974), o clubowner Cosmo Vitelli de A Morte do Bookmaker Chinês (1976), o casal Myrtle Gordon e Maurice Arons de A Noite de Estreia (1977), os irmãos Sarah e Robert de Amantes (1984), etc. - são movidos por uma paixão intensa, quase beirando a loucura (serão alguns deles verdadeiramente loucos?), que se manifesta ora como amor desmedido/inconsolável, ora como raiva/ódio, e os leva a se comportar inconsequentemente, sem nunca perder a candura e/ou a ternura. São todos seres humanos tentando lidar com os seus desejos, frustrações, preconceitos, diferenças e as agruras do dia-a-dia.

São lobos solitários, seres de hábitos noturnos, que se relacionam, sobretudo, quando estão sob o efeito do álcool e/ou da nicotina (são memoráveis as cenas em que dois pais, Peter Falk em Uma Mulher sob Influência e o próprio Cassavetes em Amantes (se a memória não me falha, essa cena existe!), oferecem bebidas aos seus filhos – embora a atitude seja reprovável). A vontade de se comunicar, de se fazer entender, de ser aceito e/ou compreendido, requer a companhia de um copo de bebida na mão e um cigarro na boca. A intensidade das emoções exprimidas pelos seus personagens exige o estado alterado de consciência proporcionado pela combinação de cigarros + bebidas; no entanto, Cassavetes trabalha num registro que se afasta do estereótipo do “bêbado”/tabagista – seus filmes não são sobre alcoólatras ou viciados, como Farrapo Humano (1945), de Billy Wilder, ou Vício Maldito (1962), de Blake Edwards. Eles vão muito além dessa abordagem.

Curioso que mesmo sob esse estado constante de embriaguez, seus personagens estão sempre dispostos a enfrentar os dilemas conjugais ou fraternais que regem suas relações. Normalmente, encaram esse processo na ressaca que os acomete após um longo período de imersão alcoólica e tabagista. Em Cassavetes, a cumplicidade nos relacionamentos é fruto desses momentos de exagero, impetuosidade e veemência afetiva.

Recentemente assisti a Faces e A Morte do Bookmaker Chinês na programação do SESC. Em todos os filmes de Cassavetes, a identificação com os seus personagens custa a acontecer: pelo menos pra mim, leva um (bom) tempo depois de começada a película. Seus roteiros não seguem a cartilha hollywoodiana, que se esforça para deixar o espectador confortável desde o início; seus filmes são duros, por vezes chatos, às vezes difíceis, embora nunca desinteressantes. São, na verdade, necessários. Durante a projeção, experimento os mais diversos estados de espírito: indiferença, chateação, alívio, tensão, alegria, tristeza, ansiedade, impaciência, frustração, admiração, satisfação, medo, etc. Basicamente, compartilho das emoções dos personagens. Terminado o filme, fortes lembranças permanecem na minha memória. Abaixo, faço uma breve relação delas.

- a luz do dia cega (a “luz estourada” nas tomadas de dia reforça o efeito da ressaca dos personagens), chega a arder os olhos;

- todos os filmes de Cassavetes poderiam se chamar Faces, dado o número de closes que ele realiza;

- as belíssimas cenas que ele consegue realizar em escadas (o final sublime de Faces e o longo plano-sequência de Uma Mulher sob Influência);

- as tomadas dentro do taxi em A Morte do Bookmaker Chinês;

- o chão como tabuleiro de xadrez em Faces (lembra o primeiro curta de Glauber Rocha, Pátio (1959));

- o longo plano-sequência de Faces em que Seymour Cassel se desdobra para acordar Lynn Carlin – emoção a flor da pele, intensidade pura;

- a cena em que Ben Gazzara leva suas “funcionárias” para passear em uma limusine, regrado a champanhe;

- a patética e melancólica apresentação de Mr. Sophistication em A Morte do Bookmaker Chinês;

- o momento em que Peter Falk deixa a festa que se passa em sua própria casa pra tomar um ar fresco do lado de fora (Uma Mulher sob Influência);

- a cena bizarra em que Gena Rowlands leva pra dentro de casa um bando de animais (Amantes).


OBS: quando assisti a Turnê (2010), de Mathieu Amalric, a associação com o universo do diretor norte americano foi imediata. Minha referência eram as cenas de pai e filho em Amantes. Agora, depois de ter visto A Morte do Bookmaker Chinês, a fonte que Amalric bebeu ficou mais clara.


O ótimo Namorados para Sempre (2010), de Derek Cianfrance, é um filhote talentoso de Cassavetes.

domingo, julho 24, 2011

O Estranho sem Nome

Clint Eastwood (The Stranger), na frente e atrás das câmeras, em O Estranho sem Nome (1973).

Preacher: See here, you can turn all these people out into the night. It is inhuman, brother. Inhuman!
The Stranger: I'm not your brother.
Preacher: We are all brothers in the eyes of God.
The Stranger: All these people, are they your sisters and brothers?
Preacher: They most certainly are.
The Stranger: ...Then you won't mind if they come over and stay at your place, will ya?

sexta-feira, julho 22, 2011

Mostra Hitchcock no CINECESC



Frenesi (1972) – Valeu a espera! Há tempos que penso em assistir ao filme em DVD, no conforto de casa, mas vivia postergando a ocasião. Eis que o dia em que me disponho a viajar a São Paulo pra pegar qualquer coisa que estivesse passando na Mostra, calha de ser Frenesi. P.. filme divertido! A diversão fica por conta do humor britânico do diretor, que mesmo em situações de tensão, é capaz de extrair graça com desenvoltura. Vale ressaltar a contribuição significativa para este efeito nas cenas em que o inspetor chefe de investigação da Oxford (Alec McCowen) experimenta as comidas exóticas que sua esposa (Viven Merchant) se propõe a preparar, ao por em prática os aprendizados do curso de culinária francesa que ela frequenta.

Duas cenas: 1) o clássico recuo da câmera (descendo a escadaria, atravessando a rua – sem que haja um personagem no centro da ação), momentos antes do assassino dar cabo de mais uma de suas vítimas, 2) o longo sufoco que o assassino passa ao tentar resgatar um de seus pertences na caçamba de um caminhão que transporta uma carga de batatas – e uma de suas presas.

Um Corpo que Cai (1958) – já se vão uns quinze anos desde que vi Vertigo (nome original do filme) em VHS numa televisão 29’’standard 4x3. DVDs ainda não eram uma realidade, muito menos assistir a filmes em formato original – nesse caso 1.85 : 1. Do meu DVD do filme, só vi o documentário que acompanha o longa-metragem – muito bom, por sinal. Nada como uma sessão no CINESESC em cópia 35 mm. E claro, o som, a música de Bernard Herrmann.

Na primeira vez, meu olhar estava mais voltado para a trama. Fui fisgado por Hitchcock e seus truques. A reviravolta do último terço da projeção embaralhou o meu foco. A segunda parte me pareceu muito breve e a personagem de Barbara Bel Geddes (Midge) meio deslocada do todo. Alguns caminhos adotados por Hitchcock me pareceram um tanto quanto inverossímeis (custa a aprender que o cinema não é sinônimo de verossimilhança, sobretudo nos filmes do diretor britânico - ele é o primeiro a afirmar/reconhecer isso, segundo suas palavras: “Um crítico que me fala de verossímil é um crítico sem imaginação”). Ainda assim, o tinha em alta estima – no todo, sempre considerei esses “defeitos” aceitáveis, pra ser menos pedante, menos comprometedores.

Agora, sem a preocupação da trama, meu olhar estava mais direcionado para o clima instaurado, as cores, os personagens e seus desígnios. Procurei sentir melhor o filme, decifrá-lo, interpretar as imagens sem me apegar a sua lógica falha. Sendo assim, acredito que me envolvi melhor com ele; talvez mais próximo da maneira como Hitchcock gostaria que o filme fosse aproveitado/consumido (sim, eu li Hitchcock/Truffaut – Entrevistas). Os “defeitos” se “encaixaram” melhor no todo, pra não dizer perfeitamente. Na verdade, qualquer Hitchcock deve ser visto dessa forma para que todo o seu gênio seja reconhecido. Só depois de alguns encontros com o diretor roliço é que aprendemos a enxergar o que realmente vale e o que deve ser descartado em suas produções.

Dessa vez, a personagem de Barbara Bel Geddes ficou na medida: ela estabelece o contraponto perfeito para a Judy (que se passa por Madeleine) de Kim Novak. O Sacro de Bel Geddes (quase um anjo, desglamurizada, de óculos) versus o Profano de Novak (a incorporação do desejo, a verdadeira tentação). Tenho certeza que Hitchcock desaprovaria esse comentário, entendo que ele aborda o material com o intuito de evitar essa observação: Judy não passa de uma mulher de aluguel, uma prostituta talvez. Quem humaniza a personagem é o olhar de Scottie (James Stewart), que nada mais é do que o ponto de vista adotado pelo diretor. Como um autêntico ser humano, Scottie sucumbe à tentação e paga o preço pela "sua escolha”. Suas palavras e seu desespero ao final do filme são de cortar a alma:

Did he train you? Did he rehearse you? Did he tell you what to do and what to say?

Certa estava Midge no início do filme: só um trauma poderia curar a acrofobia de Scottie; só um choque emocional é capaz de curar outro choque emocional.

Scottie: Midge, what did you mean, there’s no losing it?
Midge: What?
Scottie: My... the acrophobia.
Midge: I asked my doctor. He said only another emotional shock could do it, and probably wouldn’t. And you’re not going to go diving off another rooftop to find out.

sexta-feira, julho 15, 2011

Meia-Noite em Paris (Woody Allen, 2011)


Woody Allen é um dos poucos cineastas do qual já assisti a todos os filmes. São 43 até agora – desconsiderando curtas, documentários e televisão. Sempre me lembro do primeiro contato que mantive com ele, em 1995, quando da estréia de Tiros na Broadway. O encantamento foi imediato. Desde então, seja pelo cinema, VHS ou DVD, acompanho religiosamente seus lançamentos. Woody Allen é sempre prioridade. Felizmente houve um espaço na programação cinematográfica de Ribeirão Preto para a estréia de Meia-Noite em Paris. Já escuto dizer que se trata de sua melhor bilheteria em terras tupiniquins.

Ao contrário da sua fase inglesa, representada por Match Point (2005), Scoop (2006), O Sonho de Cassandra (2008) e Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos (2010), dominada por temas sombrios, sérios e mais negativistas (exceto por Scoop – o mais fraco da série), sempre que Paris - ou os franceses - foi retratada em sua obra, como em Todos Dizem eu te Amo (1996), brevemente no final de Dirigindo no Escuro (2002) e agora em Meia-Noite em Paris, o tom alegre, bem humorado, alto astral prevaleceu. A chuva em Paris não tem o mesmo efeito da chuva em Londres em um filme de Woody Allen! A cidade francesa desperta o lado cômico do cineasta, a nostalgia, a leveza dos seus personagens (em Todos Dizem eu te Amo eles literalmente voam!), o clima fantasioso e mágico (aqui, ele “viaja” no tempo - na Paris da década de 20 - e se encontra com as figuras do mundo artístico que habitavam a Cidade Luz de então: Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Luis Buñuel, Salvador Dalí, Gertrud Stein, Pablo Picasso, etc.).

Do embate entre fantasia e realidade – retratado outrora por Allen em A Rosa Púrpura do Cairo (1985) – é que se dá o amadurecimento do personagem principal: Owen Wilson, como Gil, em uma das melhores caracterizações do universo alleniano. No livro de entrevistas editado pela Cosacnaify intitulado Conversas com Woody Allen, o jornalista Eric Lax, em determinado ponto, lhe pergunta como foi a primeira ideia para A Rosa Púrpura do Cairo:

“Quando tive a ideia, era só um personagem que desce da tela, grandes brincadeiras, mas aí pensei, onde é que isso vai dar? E me veio a ideia: o ator que faz o personagem vem para a cidade. Depois disso, a coisa se abriu feito uma grande flor. A Cecília (Mia Farrow) precisava decidir e escolher a pessoa real, o que era um passo à frente para ela. Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona. Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar (ele faz uma pausa, solta uma pequena risada), mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa.”

Até em suas entrevistas o humor sarcástico se faz presente! O dilema enfrentado por Gil em Meia-Noite em Paris é muito semelhante ao de Cecília em A Rosa Púrpura do Cairo. A fantasia é o lugar onde os personagens gostariam de estar/habitar; é nesse universo que todos os seus desejos se materializam – suas relações são meras projeções de suas vontades. Ambos agem como se fossem senhores dos seus destinos; daí a decepção quando algo lhes foge ao controle. Quando resolvem “controlar” suas fantasias, seus sonhos, a realidade está pronta para dar as caras.

Woody Allen acaba sendo bem mais condescendente com o destino de Gil do que com o destino de Cecília. Talvez seja o efeito benéfico que a capital francesa lhe proporciona. Dito isso, o “banho de realidade” que ambos experimentam pode ser comparado ao efeito de um soco, no caso de Cecília, e um tapa, no caso de Gil: o primeiro é pra cair; o segundo é pra acordar.

Pra não passar em branco: como de hábito, os personagens secundários estão perfeitos!

domingo, julho 10, 2011