quarta-feira, agosto 26, 2020

Pandemia III

Chocolat (Claire Denis, 1988) a minha porta de entrada para o universo de Claire Denis foi por meio de Minha Terra, África (2009), igualmente resultante da experiência infantil da diretora em continente africano. Denis pratica um cinema de observação aguda, sugestivo, fundamentado em gestos, em que prevalece a linguagem corporal. Num contexto colonial decadente, ultrapassado, ela explora a relação de uma família de colonizadores (pai, mãe e filha) com seus vassalos nativos, em que pese a atração sexual velada existente entre a matriarca e um dos jovens serviçais. Duas cenas antológicas: 1) a recusa da investida da matriarca sobre o serviçal, que, ciente do seu lugar na relação, prega-lhe um “ponha-se no seu lugar”, erguendo-a e endireitando-a como a uma criança quando recebe uma advertência por má conduta; e 2) o sacrifício físico que o serviçal deliberadamente se aplica, encerrando pungentemente o relacionamento harmonioso, porém subordinado, mantido com a criança: ele dissimula intencionalmente a dor da queimadura provocada pelo calor da tubulação fervente da caldeira, que acabara de causar dano à criança, caminhando em direção à sombra até desaparecer na escuridão.

Master Z: IP Man Legacy (Yuen Woo-Ping, 2018)filme redondo e despretensioso, perfeito para uma matinê de quarentena, valorizado pelo elenco estrelar (Michelle Yeoh e Dave Bautista) e pelas lutas coreografadas que conservam um toque cartunesco. Meu filho de 7 anos ficou vidrado com a proposta e a produção. O roteiro é muito bem amarrado, sem firulas e sobressaltos, tampouco sofisticação, embora misture questões contemporâneas (a bem vinda sensibilidade feminina na condução da liderança empresarial, por exemplo) com um tempo narrativo mais remoto (provavelmente a década de 1960 - isso não é muito preciso). A Hong Kong artificial e imaginária do filme, registrada em sets de estúdio limpos e coloridos, reforça a impressão de sonho representado, atenuando essa dissonância temporal. Lembra um Tarantino pelo aspecto tangível do prazer de filmar.

Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996) um dos filmes emblemáticos da retomada (pelo menos, o início dela), figurante no DossiêBrasil: 1992 – 2012 da Revista digital de cinema Interlúdio, que só consegui assistir agora, no início da pandemia, quando o Spcine Play foi lançado, disponibilizando alguns filmes gratuitamente por um curto período de tempo. Conhecia a sua fama, mas não o encontrava para apreciá-lo. Ele reforça o clima característico de desesperança que permeia as obras produzidas nesse período, em que personagens comumente manifestam o desejo de deixar o país, confinados no espaço físico de uma casa, neste caso, cujo drama leva pouco mais de uma hora para se consumar e subitamente se decompor. Dois atores em cena tentando conciliar a agenda turbulenta dos seus personagens, pressionados pela hostilidade interna (família) e externa (a escalada da violência urbana) dos seus entornos, governados por seus instintos primários, sexuais e autodestrutivos. O final é realmente de tirar o chapéu num plano-sequência captado por uma reportagem televisiva que assume a função de “agente dramatizador, tornando-se o veículo mediador entre espectador e filme, numa genial manobra de resolução” (Leandro Schonfelder, Revista Interlúdio).

quinta-feira, agosto 13, 2020

Pandemia II

 

Toni Erdmann (Maren Ade, 2016) – numa postagem recente eu vi que o Sérgio Alpendre não gostou do filme – chega a classifica-lo como medíocre. Acho que depois que Hollywood elaborar o seu “remake” ele deve reavaliá-lo. São quase três horas de filme tentado explorar uma relação “interrompida” entre duas pessoas, no caso um pai e filha, com estratégias de aproximação da parte dele que beiram o grotesco. O abismo que separa os dois mundos só pode ser contornado pelo escracho. O filme é igualmente eficiente em retratar relações pessoais, o choque geracional, ou a selvageria capitalista contemporânea. Eu ficaria horas a fio assistindo aos dois talentosos atores, Sandra Hüller e Peter Simonischek, tentando ajustar as contas – a partir das circunstâncias pensadas e exploradas pela diretora/roteirista. Detalhe: eles quase não conversam.


O Direito da Mais Forte é a Liberdade (Rainer Werner Fassbinder, 1975) – mais um Fassbinder para a conta. Talvez esse seja o filme mais reconhecido do diretor, sobretudo por sua elogiadíssima participação como protagonista. O inferno do personagem equivale ao do diretor: financeiras ou criativas, suas fortunas atraíram um rol de parasitas que sugaram mais do que emprestaram energias para manter a sanidade/o discernimento da caminhada. Quanto mais o protagonista mergulha nas relações, guiado por suas emoções primárias, mais aguda é a sua queda. O espectador assiste passivo a essa derrocada, numa releitura da “crônica de uma morte anunciada”.


A Besta Deve Morrer (Claude Chabrol, 1969) – meu primeiro exemplar da fase áurea da carreira de Chabrol. Já estava tudo lá: o interior da França, a hipocrisia burguesa, a determinação/teimosia do personagem central, etc. O ator Jean Yanne, interpretando Paul Decourt, incarna o pior da espécie humana: expansivo, inconveniente, pouco confiável, o deplorável bem sucedido que usa do seu status para tirar proveito das pessoas. É notável como sua influência tóxica reverbera em seu entorno: tudo o que ele toca vira pedra. Quando o espectador passa a conhecê-lo (em pessoa), as intenções trucidantes do protagonista se tornam mais do que justificadas. Chabrol joga com essa expectativa criando um suspense a partir dela – as cenas são muito bem resolvidas -, culminando com uma resolução bem a sua maneira.

domingo, julho 19, 2020

Pandemia I

O que me manteve longe deste espaço por mais de 4 meses não foi a pandemia. Ultimamente, por mais que eu tivesse coisas a acrescentar a respeito das produções a que assisti, me faltou inspiração e determinação para escrever. Os últimos suspiros da dissertação de mestrado drenaram as minhas energias intelectuais de forma que manter este espaço me pareceu mais uma obrigação do que uma necessidade. Não foram poucas as vezes que ensaiei retomar o ritmo. Além disso, o período contou com a nossa mudança para a cidade de Nazaré Paulista, a fim de dar vazão a um projeto familiar, competindo da mesma forma pelo foco da minha atenção. Agora que as coisas começam a assentar, me sinto mais preparado para dar continuidade às escritas cinematográficas.

Já que o período de exclusão vem se estendendo quase que indefinidamente, vou me programar para registrar parte das produções que me trouxeram alguma necessidade de reflexão. Todas de forma bem breve.


Nascido em 4 de Julho (Oliver Stone, 1989) – o filme é bem melhor do que eu era capaz de me lembrar. Tom Cruise começa representando a si mesmo, mas se metamorfoseia visceralmente para encarar o petardo que caracterizou uma virada categórica em sua carreira. Primeiramente seu personagem desce ao inferno para só então se recuperar da ressaca moral em que se vê envolvido. A narrativa assume o seu ponto de vista (o filme é adaptado das memórias do verdadeiro Ron Kovic) do recrutamento ao regresso. Uma espécie de Os Melhores Anos de Nossa Vida (1946, William Wyler), só que bem mais cru – enquanto a II Guerra Mundial foi travada longe dos EUA, as famílias jantavam com as cenas do Vietnã. Ainda não vi Amargo Regresso (Hal Ashby, 1978) que deve lhe fazer uma bela companhia. A Guerra do Vietnã é a cicatriz aberta norte-americana que ainda não parece esgotada, vide a última investida de Spike Lee, Destacamento Blood (2020), que encontra novos caminhos para ser explorada.


Calafrios (David Cronenberg, 1975) – estou retornando ao início da carreira de Cronenberg, que ainda não havia explorado. É impressionante como o viço da sua marca já se fazia presente desde os primórdios. Um filme de terror B, com uma trama fantástica (embora a pandemia tenha redefinido o significado de absurdo), que funciona perfeitamente bem nas mãos de quem sabe o que está fazendo. Ainda que eu o tenha assistido no início do período de reclusão, só agora que consegui fazer a ponte com o Corrente do Mal (2014), de David Robert Michell - havia visto mais John Carpenter inicialmente, mas me parece ser mais Cronenberg, ou melhor, a temática de Cronenberg com o estilo de Carpenter. Que filme sensacional! Não é para todos os gostos, é verdade, mas é cinema em estado puro.


O Estripador de Nova York (Lucio Fulci, 1982) – meu primeiro Fulci. As sessões de filme de terror andam em alta aqui em casa – só de minha parte, já que minha esposa não gosta. Só esse gênero mesmo para lidar melhor com a realidade. Parte do que escrevi para Calafrios vale aqui também. A estilização dos quadros contrasta com a pobreza da narrativa. Tudo não passa de uma grande desculpa para enfileirar uma morte espetacular atrás da outra. A voz de Pato Donald do assassino é tão estúpida, mas há que se reconhecer que ela funciona bem nesse contexto. Quem se pauta pelo conteúdo, deve sair frustrado, já quem se pauta pela forma, a experiência é absolutamente recompensadora.

domingo, março 15, 2020

Soldados da Morte (Karel Reisz, 1978)

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A vida real está dificultando as minhas passagens neste espaço, e desta vez, influenciando o exercício da minha cinefilia. Embora eu não tenha suprimido por completo minhas sessões, elas foram razoavelmente reduzidas. Mas esse tempo há de passar. A conclusão do meu mestrado em breve deve desanuviar minha programação ociosa, que pretende ser ocupada com sessões mais frequentes.

Por enquanto, algumas produções acumuladas nesse período de escassez, mesmo que rarefeitas, causaram um impacto duradouro.

Começa pelo Soldados da Morte (1978), de Karel Reisz, título traduzido para o Brasil que consta no IMDB, cuja designação original oscila entre Dog Soldiers e Who´ll Stop the Rain.  Esta última é uma clara referência à famosa música do Creedence Clearwater Revival que constitui a base sonora do filme. Embora o enredo sugira o tráfico de cocaína como desdobramento verídico da Guerra do Vietnã, é o mal estar e a desesperança dos envolvidos que realmente importa. As ações envolvendo essa prática censurável servem de pano de fundo perfeito para descrever o abatimento generalizado que cercava o ambiente civil norte americano. A transgressão é a única opção viável de reinserção social – como nos clássicos de Raoul Walsh da Warner Bros. da década de 1930. O lobo solitário vivido por Nick Nolte é o retrato fiel da desilusão enfrentada pelos soldados que retornaram do front de guerra, desencantados com o país que encontraram e sem perspectiva alguma de levar uma vida dita “normal”. O Rambo de Stallone é mais taciturno, reservado e o filme de Ted Kotcheff permanece o tempo inteiro prestes a explodir – a perseguição a ele é mais espetacular e dura quase a metragem toda do longa. Soldados da Morte até ensaia um não-romance entre Nolte e a personagem de Tuesday Weld, numa espécie de evocação das memórias de um tempo que não volta mais, coisa que O Franco Atirador (1978), de Michael Cimino, se presta a dedicar uma porção mais prolongada do premiado filme. O final é absolutamente fantástico, com o personagem de Nolte externando toda a perturbação que ele passara o filme inteiro tentando evitar. O embate final se passa numa locação hippie abandonada que representa o fim de uma era – o eco de um EUA que havia deixado a ingenuidade para trás. A violência sempre esteve presente e os efeitos nefastos dela permanecem os mesmos, só cambiaram as armas.

sábado, novembro 30, 2019

Parasita (Boog Joon-Ho, 2019)


É inegável que o filme de Bong Joon-Ho exerce um vigoroso poder de sedução no espectador, com um viés para o entretenimento que é invejável. O miolo do filme, que se passa praticamente todo na casa dos patrões, tem alguns episódios que são realmente inspirados – uma parte dessa vocação para o espetáculo lembra-me muito Steven Spielberg, cuja filmografia mais recente demonstra um espírito crítico mais aguçado. Nesse meio do caminho, os personagens da família do “andar de baixo” já exploraram a amplitude dramática dos seus papéis, exatamente quando um elemento “externo” (posteriormente, esse adjetivo assume a condição de "interno") aparece para desestabilizar as conquistas desse núcleo central de tipos. Embora as análises do filme acabem se pautando pelo discurso social que ele provoca, confesso que não é exatamente isso que me chama a atenção nele - o que não quer dizer que essa questão seja desprezível.

Filipe Furtado, mais uma vez, descreve com desenvoltura o que mais me chamou a atenção no conjunto do filme. O odor, o cheiro, que, por razões óbvias, costuma ser negligenciado pelos cineastas, encontra uma abordagem muito criativa nas mãos de Bong Joon-Ho. Curioso que quem desperta a atenção para esse ponto é uma criança – taí um dos pontos de contato com a obra de Spielberg!

Por Filipe Furtado

“É esta noção de teatro social que o filme retoma o tempo todo e a sua força vem das implicações que ele retira dela. Há uma ideia recorrente por todo Parasita que é a do cheiro. O odor separa patrões e trabalhadores e ameaça denuncia-los quando os segundos se escondem dentro da casa. “O motorista fede”, o patrão reclama para a esposa e nesse momento não só a distância entre eles aumenta e a possibilidade reconciliação de classes se desfaz, mas qualquer encanto com a figura dos patrões se vai com ela, daquele momento em diante Parasita deixa de ser uma alegoria pretensamente equilibrada, a constatação de que o odor do outro incomoda equivale a uma declaração de guerra e o filme toma um lado. Como o crítico americano Steven Erickson mencionou numa conversa comigo, o cheiro é algo que escapa da mímese cinematográfica. Se tudo aqui reproduz uma lógica social, o cheiro não pode ser representado. É o único elemento que não pode ser encenado no teatro social. Os gestos reproduzem a ordem social, mas o odor agride. Um bug no sistema, uma quebra no aparato cinematográfico.”

sábado, outubro 12, 2019

A impossibilidade do encontro (Michelangelo Antonioni e Paul Schrader)


O Dono da Noite (Paul Schrader, 1992)

O Eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962)

A impossibilidade do encontro, a barreira física que separa os casais! A segunda imagem eu já havia usado no post de O Eclipse.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019)


E mais uma vez Kléber Mendonça Filho nos entrega um filme memorável. Eu o assisti já faz uma semana e meia e, a prior, nem escreveria nada sobre ele. Mas a experiência permanece crescendo na minha memória de forma que pretendo registrar algumas impressões.

É sempre estimulante quando um filme brasileiro autoral “cai nas graças” do público e vira motivo de conversa de botequim. O autoral aqui não deve ser levado ao pé da letra, já que Kléber divide a direção com Juliano Dornelles, o que pode anuviar os limites da influência de cada um dos colaboradores no resultado final. O emprego do termo é só para distinguir a produção daquelas que gozam de um cunho mercadológico mais explícito.

Quando a crítica já mencionava o cinema de John Carpenter como referência para explorar algumas partes de O Som ao Redor (2012) eu confesso que achava um pouco forçado, muito embora a minha aproximação com a produção do cineasta norte-americano só tenha começado a aflorar de fato nessa mesma época. Foi só a partir do segundo semestre de 2012 que comecei a correr atrás da filmografia de Carpenter com mais afinco. Sendo assim, eu não dispunha de repertório suficiente para refutar essa afinidade que hoje me salta aos olhos.

Bacurau deixa essa referência bem visível, bebendo na fonte de Assalto ao 13º DP (1976), ainda que a temática explorada por Carpenter nele já fosse uma releitura de Onde Começa o Inferno (1959), de Howard Hawks, que parodiava o Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann. Além da música emprestada de forma escancarada - os famosos sintetizadores das trilhas compostas pelo próprio John Carpenter -, o flerte com um filme B de terror intercalado por momentos de humor é outra marca registrada. A postura política bem definida é outro ponto de convergência, que assume um posicionamento mais agudo nas mãos de Kléber Mendonça Filho: ele se apropria muito bem das convenções do western em favor da cultura interiorana pernambucana (talvez nordestina, mas aí eu não tenho propriedade para afirmar). Tendo a acreditar, inclusive, que esse “diálogo” com o cinema de gênero seja um dos grandes responsáveis pela boa recepção do filme junto ao público. A despeito de a embalagem ser essencialmente americana, o conteúdo é essencialmente brasileiro.

Contudo, mais do que essa notória herança carpenteriana, outra referência mais contemporânea me invadiu a memória enquanto assitia a Bacurau: a trilogia criada até então por James DeMonaco, que explora um “expurgo humano” (The Purge) legitimado pelo Congresso norte-americano em que “todo e qualquer crime é legal em um período de 12 horas”. Os títulos são Uma Noite de Crime (2013), Uma Noite de Crime: Anarquia (2014) e 12 Horas para Sobreviver: O Ano da Eleição (2016). Sempre considerei a ideia bem inspirada, um excelente ponto de partida, muito embora a execução e os desdobramentos dela sejam absolutamente decepcionantes. Nenhum dos filmes consegue romper a barreira da premissa e assumir a responsabilidade pela alta carga política que eles sugerem. Todos eles têm momentos interessantes, que infelizmente não se convertem em experiências memoráveis.

Em Bacurau essa premissa é alçada a outro patamar e ganha vida na insurreição perpetrada pelos seus habitantes (o filme leva o nome da cidade) contra um bando de sádicos estrangeiros e brasileiros, inclusive, que querem exterminá-los em nome de diversão/entretenimento/adrenalina. A composição dos tipos que habitam os dois grupos, embora estereotipada - condição que o cinema de gênero acolhe com naturalidade -, vem junto com uma boa dose de humor que contrabalanceia a gravidade da proposta, potencializando o seu caráter irônico (a cena do casal cômico de idosos nus que se defendem de uma investida e a estrangeira agonizando enquanto se comunica por intermédio de um aparelho sonoro que traduz suas falas representam o ápice dessa intenção). Esses aspectos bizarros só provocam mais simpatia pelos personagens representados e acionam o “modo” gostei do público.

terça-feira, setembro 24, 2019

Tucker: Um Homem e Seu Sonho (Francis Ford Coppola, 1988)




Ainda me falta assistir alguns filmes de Francis Ford Coppola, sobretudo as primeiras produções, quando a sombra de Roger Corman se fazia mais presente. Das produções oitentistas, Tucker sempre me despertou a atenção, embora eu enfrentasse dificuldades em encontrá-lo em boas condições para assistir. Tucker nunca foi um filme muito celebrado, de fácil disponibilidade e, curiosamente, muito comentado. É certo que a sombra dos Chefões e a saga prolongada de Apocalypse Now foram capazes de ofuscar o brilho desta obra-prima elegante (fotografia de Vittorio Storaro e production design de Dean Tavoularis) e verdadeiramente energizante. Um tour de force impressionante de Jeff Bridges como alter ego de Coppola, interpretando o sonhador independente Preston Tucker, num embate memorável da criatividade, persistência e determinação contra as forças inabaláveis do status quo. O discurso final de Preston Tucker no tribunal defendendo-se da acusação de uso irresponsável de dinheiro público para construir um protótipo de carro do futuro é absolutamente antológico: uma daquelas circunstâncias em que a defesa do sonho americano encontra terreno fértil para expandir o seu verdadeiro legado. Martin Landau é outro dos trunfos da produção, humanizando o papel do habitual homem-do-dinheiro.

sábado, julho 27, 2019

Shampoo (Hal Ashby, 1975) e Regras Não Se Aplicam (Warren Beatty, 2016)


As filmagens de Shampoo começaram em janeiro de 1974. Se Shampoo era o trabalho autoral de alguém, esse alguém é provavelmente Beatty. Ashby estava em desvantagem desde o começo. Beatty tinha colocado pessoas de sua confiança em todos os postos-chave da equipe e Hal não tinha aliados, somente o montador Bob Jones. “Hal odiava autoridade e nesse filme Warren representava a autoridade”, diz Charles Mulvehill (produtor executivo). “Era o filme dele. Hal era um maníaco por controle, só que sem controle.”
Como a Geração Sexo, Drogas e Rock n´Roll Salvou Hollywood, Peter Biskind (pg. 202)

Foi coincidência enfileirar dois filmes de Warren Beatty (embora Shampoo seja dirigido por Hal Ashby, a sombra de Warren Beatty se faz muito presente na produção – a introdução do post explora um pouco essa questão). Primeiro veio Regras Não Se Aplicam, uma semana depois Shampoo – involuntariamente inverti a ordem das coisas. Duas produções separadas por aproximadamente 40 anos que, curiosamente, proporcionam uma avaliação crítica da misoginia em suas respectivas épocas. E, no que diz respeito a elas, refiro-me ao zeitgeist de suas produções, não ao período em que se passam as suas respectivas narrativas. Sendo assim, Regras Não Se Aplicam vale para o ano de 2016 e adjacências, não para a década de 1940. Shampoo se passa no crepúsculo do governo de Richard Nixon, justamente quando o filme estava sendo produzido – espírito da época da produção coincide com o da narrativa.

Naturalmente, os filmes não se prestam apenas a isso. Eles valem mais do que essa observação a que me dedico fazer alguns comentários.

Warren Beatty (diretor) explora a misoginia de Howard Hughes em Regras Não Se Aplicam pela via mais branda, retratando o milionário empresário/produtor/aviador/industrial como um homem pitoresco, infantil, difícil, ainda que divertido, absolutamente suavizado pela caracterização impagável de Warren Beatty (ator). As excentricidades do personagem não são exatamente negativas, são elas que proporcionam os momentos de alívio cômico da produção, mesmo em situações mais graves (spoiler) - como na gravidez indesejada de uma personagem importante na trama. Esse distanciamento temporal da narrativa com o tempo presente permite a Warren Beatty “brincar” com a questão sem se ver “envolvido” com ela.

Shampoo chama a atenção pela forma escancarada com que o personagem de Warren Beatty, principalmente, e o personagem de Jack Warden, da mesma forma, manifestam sua indiferença pelas mulheres. A narrativa do filme busca uma possível encenação para dar conta dos tempos sombrios que se avizinhavam (a eleição de Richard Nixon no plano narrativo e o exercício do seu mandato no momento da produção, já desgastado pelo escândalo de Waltergate), ao mesmo tempo em que joga uma pá de cal no movimento de contracultura e liberação sexual, vivenciados em sua plenitude na década anterior. Essa sensação de reprovação experimentada hoje, de abuso da condição patriarcal, teve nos anos 70 o auge do seu exercício. Existe uma tensão curiosa que se manifesta “fora” do filme, e de certa forma enriquece a sua fruição, que diz respeito ao próprio Warren Beatty: o narcisismo do ator que encomendou o projeto, se divertindo com as mulheres à custa de seu personagem (embora o “discurso da produção” vá em direção contrária a essa postura, ou pelo menos sugere ir). Documento comportamental precioso de uma época que estabeleceu o apogeu criativo de uma geração de cineastas.

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Involuntariamente, sem me dar conta dessas conexões, emendei uma semana depois o Corações Loucos (1971), do Bertrand Blier. Aí o bicho pega! Que filmaço, gostei demais. A liberdade, tão almejada e valorizada em sua escassez, se veste de desconcertante e perturbadora quando em abundância. Interpretação antológica de Gérard Depardieu, em estado de graça, que estabeleceu o seu lugar junto aos grandes atores franceses. Embora o seu personagem e o de Patrick Dewaere sejam misóginos, estúpidos, o entorno deles não oferece salvação/redenção alguma. O isolamento e a alienação são experimentados por todos os personagens, embora essa percepção só amadureça da metade do filme pra frente. A cena da amamentação no trem chega a ser deprimente por isso e a empatia do espectador em relação à mãe parte da indignação, num primeiro momento, para a piedade/compaixão, num segundo momento. Esse pêndulo emocional perpassa toda a narrativa, de um impacto inicial intenso, acentuado, para uma atenuação gradativa da ira, da inconformação.

Duas gigantes atrizes habitam o filme: Jeanne Moreau, enigmática como de hábito, em clima de despedida, provoca uma espécie de relaxamento nos personagens do filme, um apaziguamento do ímpeto libertário exacerbado (sua marca registada de outrora), oposto ao efeito lesivo despertado em sua personagem; Isabelle Huppert, em início de carreira, já carregava o gene da transgressão.

domingo, julho 07, 2019

Results (Andrew Bujalski, 2015)




Levei um tempo para entrar no clima de Results. O filme não se entrega tão facilmente ao espectador. Leva mais de hora para entendermos que se trata de uma comédia (romântica???); o transtorno comportamental do personagem de Kevin Corrigan e a rigidez da personagem de Cobie Smulders reforçam a impressão de um drama, dissipada apenas pelo otimismo exasperado do personagem de Guy Pearce. Porém, pouco a pouco, o arranjo de relacionamentos proposto por Andrew Bujalski começa a tomar forma, reservando uma grata surpresa após a outra, ao optar por caminhos narrativos absolutamente inesperados.

Os atores abraçam a proposta com tanta paixão e desenvoltura que, findada a sessão, já estava eu buscando outras produções de Kevin Corrigan e Cobie Smulders, tamanha a minha admiração pelo trabalho dos dois e a vontade de acompanhar a evolução de suas carreiras. Guy Pearce não fica atrás, mas a sua trajetória já goza de uma exposição midiática mais ampla. Esse foi o meu primeiro filme de Andrew Bujalski, que já entrou no meu radar de prioridades da mesma forma.

Os três personagens exibem logo de cara as suas fraquezas, expondo de forma transparente os conflitos gerados pela sua interação. Essa opção reforça no espectador a representação estereotipada dos mesmos, de forma que algumas das suas ações tendem a ser vistas pelo lado grotesco (em algum ponto entre o mau gosto e o constrangedor). Quando a corda rompe de vez, em razão da dificuldade de relacionamento entre as partes (todas as relações são mediadas por contratos: trabalhista; usuário x prestador de serviços; cliente x fornecedor), o filme quase sai dos trilhos. Só posteriormente percebemos o quanto Andrew Bujalski estava no controle de toda a situação.

No final das contas, os personagens só existem por suas imperfeições. O pay off dessas diferenças não vem de súbito, como uma espécie de revelação bombástica, ele vai sendo gestado aos poucos num nó que leva tempo para desatar. Em nenhum momento Bujalski vende o que não consegue entregar: não esqueçamos que se trata de um filme, não da vida real; uma criação artística que necessita “dialogar” com o público o tempo todo a fim de não perdê-lo. Mas ninguém pode acusá-lo de covardia, Bujalski aposta alto, explora as convenções do gênero de forma inusitada, para no fim chegar ao mesmo ponto (ou, alcançar o mesmo resultado). Aqui, o caminho alternativo é que faz a diferença!