As filmagens de Shampoo começaram em janeiro de 1974. Se Shampoo era o trabalho autoral de alguém, esse alguém é provavelmente Beatty. Ashby estava em desvantagem desde o começo. Beatty tinha colocado pessoas de sua confiança em todos os postos-chave da equipe e Hal não tinha aliados, somente o montador Bob Jones. “Hal odiava autoridade e nesse filme Warren representava a autoridade”, diz Charles Mulvehill (produtor executivo). “Era o filme dele. Hal era um maníaco por controle, só que sem controle.”
Como a Geração Sexo, Drogas e Rock n´Roll
Salvou Hollywood, Peter Biskind (pg. 202)
Foi coincidência enfileirar dois filmes
de Warren Beatty (embora Shampoo seja
dirigido por Hal Ashby, a sombra de Warren Beatty se faz muito presente na
produção – a introdução do post
explora um pouco essa questão). Primeiro veio Regras Não Se Aplicam, uma semana depois Shampoo – involuntariamente
inverti a ordem das coisas. Duas produções separadas por aproximadamente 40
anos que, curiosamente, proporcionam uma avaliação crítica da misoginia em suas
respectivas épocas. E, no que diz respeito a elas, refiro-me ao zeitgeist de suas produções, não ao
período em que se passam as suas respectivas narrativas. Sendo assim, Regras Não Se Aplicam vale para o ano de
2016 e adjacências, não para a década de 1940. Shampoo se passa no crepúsculo do governo de Richard Nixon,
justamente quando o filme estava sendo produzido – espírito da época da
produção coincide com o da narrativa.
Naturalmente, os filmes não se prestam
apenas a isso. Eles valem mais do que essa observação a que me dedico fazer
alguns comentários.
Warren Beatty (diretor) explora a
misoginia de Howard Hughes em Regras Não
Se Aplicam pela via mais branda, retratando o milionário
empresário/produtor/aviador/industrial como um homem pitoresco, infantil,
difícil, ainda que divertido, absolutamente suavizado pela caracterização
impagável de Warren Beatty (ator). As excentricidades do personagem não são
exatamente negativas, são elas que proporcionam os momentos de alívio cômico da
produção, mesmo em situações mais graves (spoiler)
- como na gravidez indesejada de uma personagem importante na trama. Esse
distanciamento temporal da narrativa com o tempo presente permite a Warren
Beatty “brincar” com a questão sem se ver “envolvido” com ela.
Shampoo chama a
atenção pela forma escancarada com que o personagem de Warren Beatty,
principalmente, e o personagem de Jack Warden, da mesma forma, manifestam sua
indiferença pelas mulheres. A narrativa do filme busca uma possível encenação
para dar conta dos tempos sombrios que se avizinhavam (a eleição de Richard
Nixon no plano narrativo e o exercício do seu mandato no momento da produção,
já desgastado pelo escândalo de Waltergate), ao mesmo tempo em que joga uma pá
de cal no movimento de contracultura e liberação sexual, vivenciados em sua
plenitude na década anterior. Essa sensação de reprovação experimentada hoje,
de abuso da condição patriarcal, teve nos anos 70 o auge do seu exercício. Existe
uma tensão curiosa que se manifesta “fora” do filme, e de certa forma enriquece
a sua fruição, que diz respeito ao próprio Warren Beatty: o narcisismo do ator
que encomendou o projeto, se divertindo com as mulheres à custa de seu personagem (embora o
“discurso da produção” vá em direção contrária a essa postura, ou pelo menos sugere ir). Documento comportamental precioso de uma época que estabeleceu o
apogeu criativo de uma geração de cineastas.
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Involuntariamente, sem me dar conta
dessas conexões, emendei uma semana depois o Corações Loucos (1971), do Bertrand Blier. Aí o bicho pega! Que
filmaço, gostei demais. A liberdade, tão almejada e valorizada em sua escassez,
se veste de desconcertante e perturbadora quando em abundância. Interpretação
antológica de Gérard Depardieu, em estado de graça, que estabeleceu o seu lugar
junto aos grandes atores franceses. Embora o seu personagem e o de Patrick
Dewaere sejam misóginos, estúpidos, o entorno deles não oferece
salvação/redenção alguma. O isolamento e a alienação são experimentados por
todos os personagens, embora essa percepção só amadureça da metade do filme pra
frente. A cena da amamentação no trem chega a ser deprimente por isso e a
empatia do espectador em relação à mãe parte da indignação, num primeiro
momento, para a piedade/compaixão, num segundo momento. Esse pêndulo emocional
perpassa toda a narrativa, de um impacto inicial intenso, acentuado, para uma
atenuação gradativa da ira, da inconformação.
Duas gigantes atrizes habitam o filme:
Jeanne Moreau, enigmática como de hábito, em clima de despedida, provoca uma espécie de relaxamento nos
personagens do filme, um apaziguamento do ímpeto libertário exacerbado (sua
marca registada de outrora), oposto ao efeito lesivo despertado em sua personagem; Isabelle Huppert, em início de carreira, já carregava o gene da
transgressão.
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