sexta-feira, novembro 30, 2012

O Sol Brilha na Imensidão (John Ford, 1953)



O Sol Brilha na Imensidão é menos uma mensagem que a transposição poética de certo realismo social.

Jean Mitry
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Como Depois do Vendaval (John Ford, 1952), O Sol Brilha na Imensidão é uma comédia de costumes, não raro imbuída de elementos da sátira, mesmo ao acercar-se da realidade social e, otimística e pertinentemente, envolvê-la em sua poesia. A Irlanda verdejante e semi-elegíaca de Depois do Vendaval cede lugar à pequena cidade de Fairfield, no interior do Kentucky, onde se desenrola a ação, anos depois de terminada, mas não esquecida pelos “veteranos”, a Guerra Civil. Um desses veteranos é o juiz Priest, homem conservador e bom, que, à frente de sua “brigada”, relembra e cultua os feitos militares dos bravos de Fairfield, tão sacudidos na velhice quanto o foram no campo de batalha – e que está aguardando o pleito que decidirá entre a sua permanência no posto e a eleição de um candidato moço, que faz questão de exibir o seu dinamismo por meio de uma propaganda “moderna”, tão estridente quanto demagógica.

O filme é o relato sempre fascinante do que ocorre nos dias que precedem a eleição, quando a generosidade e o sentimento de justiça de Priest o vão impelindo a tomar as atitudes mais impopulares, como impedir o linchamento de um negro acusado de estupro de uma menina branca e, a seguir, receber em sua residência a dona do prostíbulo local, que vem solicitar-lhe ajuda no que diz respeito ao enterro cristão, a que também tinha direito uma prostituta. O sentimentalismo que se descobre nessa história é o mesmo que existe, ora ultrapassado pelo sentido épico, ora controlado pela “malícia irlandesa”, em quase todas as obras de Ford. O cineasta não teme, nem o repele – até o aprecia. E sabe fazer com que também o espectador o aprecie.
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Há muitas cenas dignas de menção – a da sessão do tribunal que o juiz transforma em sessão de “Dixie”, acompanhando com uma corneta o banjo do réu (U.S.) e a gaita de seu criado (Fetchit); a chegada da mãe de Lucy Lee ao povoado. Mas as duas sequências mais trabalhadas, ambas excepcionais, são: 1) a do pânico dos negros ante a aproximação da turba de linchadores brancos, na qual Ford usa, numa sucessão cadenciada de close-ups, cinco negros apenas, que lhe dão dez imagens – estabelecendo com a décima primeira, que focaliza Fetchit correndo, a ligação do incidente com o juiz Priest, que, advertido pelo criado, vai postar-se à porta da cadeia, onde enfrenta sozinho a multidão enfurecida; 2) a do enterro da prostituta, que corta a rua principal de Fairfield, interrompendo o comício do candidato renovador, com Priest acompanhando à pé o carro fúnebre, e, atrás, na carruagem de aluguel do preto Zac (Clarence Muse), Mallie Crump e suas “moças”, todas de luto. Ao escândalo que o fato provoca, sucede o inesperado: o general da União (Henry O’Neill) entra no cortejo, ao lado de Priest, e, pouco a pouco, a fila se vai tornando maior, com a solidariedade dos “veteranos”, dos negros, da respeitável Mrs. Ratchitt (Jane Darwell). É uma sequência memorável, pontilhada de um humor que conduz a platéia da lágrima ao riso – e que prossegue na igreja, onde o juiz, assumindo o lugar do pastor, relê o trecho bíblico da mulher adúltera.

Antônio Moniz Vianna

quarta-feira, novembro 28, 2012

Cosmópolis (David Cronenberg, 2012)



Faz pouco menos de uma semana que vi Cosmópolis e ainda estou tentando digerir a experiência. Num primeiro momento achei o filme OK, levemente desconfiado do clima de celebração com que a crítica brasileira abraçou a causa, repleta de elogios maiores. Cada dia que passa, contudo, o filme cresce na minha memória, e aos poucos a imagem da limusine-caixão com seus personagens tortos e bizarros começa a ganhar forma. Uma forma disforme é verdade, mas plenamente sintonizada com os dias de hoje.

Embora eu goste dos relatos mais sóbrios a respeito da crise financeira que nos assola, Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme (Oliver Stone, 2010), Margin Call – O Dia Antes do Fim (J.C. Chandor, 2011) e Trabalho Interno (Charles H. Ferguson, 2010), sendo menos do primeiro e bem mais dos dois últimos, desconfio que o lirismo sombrio de Cosmópolis seja mais apropriado para descrever a insanidade e irracionalidade de certo comportamento característico contemporâneo, não circunscrito apenas ao métier dos financistas. Curioso é que o livro de Don DeLillo, que foi fielmente adaptado por Cronenberg para o cinema (observação feita por quem leu o livro), foi escrito em 2003, bem antes da quebradeira generalizada. A contra capa do exemplar editado pela Companhia das Letras tem uma passagem categórica, “A história revela mais do que a falta de sentido de uma existência individual: ela aponta para o caráter perigosamente ilusório das bases que sustentam o mundo contemporâneo”.

A crítica de Pedro Henrique Ferreira para a Revista Cinética é precisa e contribuiu sobremaneira pra estabelecer a minha conexão com o filme. Vale uma conferida. Abaixo, rascunho algumas passagens que me chamaram a atenção.


-        o travelling da cena de abertura é primoroso: o movimento de câmera se assemelha ao de um réptil rondando a limusine, palco de toda a narrativa.

-        na primeira cena ambientada dentro da limusine Eric Parker (Robert Pattinson) conversa com o jovem Shiner (Jay Baruchel). O que se vê pelas janelas do automóvel mais parece uma projeção em slide digital, que ao serem sobrepostas aos rostos dos atores, resulta totalmente fake. O efeito é o mesmo das tomadas feitas em interiores de veículos nos filmes das décadas de 40 e 50. De início, pensei que fosse um problema da projeção da sala de cinema. Só entendi o propósito da questão quando a limusine emparelha com um taxi e Eric Parker visualiza sua esposa sentada no banco de trás do veículo vizinho. Chega a ser surreal o momento em que ele abre a porta da limusine para encontrá-la e nos damos conta de que o mundo visualizado pela janela do automóvel é palpável. É um choque visual. Uma verdadeira televisão digital sintonizada 24 horas por dia com o mundo exterior.

-        Cronenberg parece bem à vontade com o material, resgatando a estranheza dos personagens que ele já desenvolvera em outras oportunidades: Crash – Estranhos Prazeres (1996), Mistérios e Paixões (1991) e no ato final de Marcas da Violência (2005). Samantha Morton, como Vija Kinsky, é a única lúcida de toda a trupe. Ela destoa do restante. É justamente no discurso dela que o espectador encontra um porto seguro, uma referência confiável para estabelecer as devidas relações pretendidas pelo roteiro. A sua prosa é que estabelece a ligação entre o universo dos magnatas e o dos meros mortais – a relação de causa e efeito que culmina na violência. Não é por acaso que a limusine sofre um ataque do “mundo externo” enquanto ela se encontra em cena. Ela coloca todo ser humano na mesma condição, ampliando o âmbito da questão além da mera disputa de classes. A derrocada de Eric Parker começa depois de sua conversa com Vija Kinsky. Um discurso poderoso que estabelece o vértice compreensivo do filme.

-        a cena no barbeiro é ótima. De alguma forma Cronenberg consegue inserir no espaço elementos que transmitem uma sensação de segurança ao protagonista, um conforto aparente, ilusório, que o prepara para o confronto final. É o único momento em que o segurança (ou motorista) que faz a sua escolta abre a guarda e o seu discurso não se reduz a poucas linhas que só fazem aumentar o desconforto do protagonista.

-       Psicopata Americano (2000), de Mary Harron, me veio à cabeça durante boa parte da projeção. Não que seja um filme que eu aprecie, muito pelo contrário, é que a semelhança entre os dois protagonistas é muito grande (ao menos, ambos habitam o "mesmo mundo”). A diferença crucial entre os filmes - e é justamente a parte que cabe ao cinema - é que Cronenberg consegue ambientar bem melhor o seu longa-metragem. O “mundo externo” é palpável em Cronenberg e influencia o seu protagonista – ele interage com ele por meio da janela da sua limusine (são as imagens que chegam a nós). Embora Patrick Bateman (Christian Bale) leve o mesmo tipo de vida que Eric Parker, o seu apartamento asséptico e totalmente impessoal não comporta toda essa grandeza, dimensão ou significância. O “mundo externo” em Psicopata não chega a nós, é inexistente, apenas intuído, e isso faz toda a diferença.

quinta-feira, novembro 15, 2012

Cara ou Coroa (Ugo Giorgetti, 2012)



Se dependêssemos da abordagem recorrente que o cinema nos legou dos anos de fogo da ditadura, seriamos levados a pensar que a vida não passava de um engenhoso roteiro de filme policial norte americano: tudo terminava em perseguições, traições e torturas. No intuito de criticar a postura governamental da época e ajustar contas com os excessos praticados pelos milicos, o cidadão comum ficava sempre relegado ao segundo plano (quando não ao terceiro, quarto,...). Nesse contexto, os personagens retratados mais pareciam ativistas políticos de formação - em constante exercício de suas convicções - sem interesse algum pelo que girava fora da esfera do enfrentamento ideológico vigente. Eu, que nasci nesse período, em 1977, sempre tentei imaginar como era a vida dos meus pais na capital paulista no início dos anos 70, muito certo de que suas trajetórias não moldaram nem refletiram a dos personagens que fizeram fama na ocasião.

Pois bem, Cara ou Coroa (2012), de Ugo Giorgetti, praticamente centrou o foco da sua narrativa no comportamento dessas pessoas comuns, e de lambuja criou um dos mais interessantes, honestos e calorosos retratos do cidadão médio brasileiro durante o período ditatorial. Talvez seja o relato mais fiel do que, de fato, tenha sido viver naquele momento. Entre perseguições, traições e torturas, as pessoas planejavam, aspiravam e sonhavam, em suma, viviam. Havia tempo para um café da manhã, uma cervejinha, assistir à televisão, um namoro, etc. Nem tudo se resumia a maquinações ou paranóias, muito embora os seus efeitos fossem compartilhados até mesmo por aqueles que não estavam formalmente envolvidos com a causa (seja ela pró ou contra). Desse rol de caracterizações criadas por Giorgetti destaca-se o general aposentado vivido por Walmor Chagas e, sobretudo, o taxista vivido por Otávio Augusto. Ambos gozam de pouco tempo em cena, mas deixam a impressão definitiva sobre o longa-metragem.

Existe algo de ridículo no retrato do taxista direitista que financia a contragosto a peça do sobrinho “comunista” e ainda alimenta expectativas de reaver o dinheiro investido. O relato de suas impressões sobre a noite de estreia da peça é impagável e reflete com precisão cirúrgica a aversão às manifestações culturais difundida a partir do Ato Institucional № 5. Tudo o que era ousado ou desafiador tornou-se ultrajante, sem mais nem menos. Daí que a cultura marginalizou-se (mas isso é outra história). Giorgetti ainda faz o milagre de nos conduzir ao exato momento em que Paulo Maluf representava uma real possibilidade de mudança – situação essa favorecida pelo clima asfixiante imposto pela repressão ditatorial. A cena, curta e grossa, e de uma ironia fina, vale um filme inteiro.

domingo, novembro 11, 2012

Isto Não é um Filme (Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, 2011)



Jafar Panahi: Sei lá, talvez eu esteja tentando passar o tempo. Sinto que estamos aqui criando uma mentira. Como naquela primeira sequência que fizemos, o resto também será uma mentira, não importa o que façamos. Veja o filme O Círculo, por exemplo. 
Mojtaba Mirtahmasb: Mas você não pode fazer um filme agora. 
Jafar Panahi: Por isso pedi para você me filmar. Acha que será um grande filme? 
Mojtaba Mirtahmasb: Bem, você me disse... 
Jafar Panahi: O que eu disse? 
Mojtaba Mirtahmasb: Me pediu para eu vir aqui. Disse que tinha filmado um pouco e que tinha ficado ruim. Jafar, você está esperando a confirmação do veredito por causa do filme que estava fazendo. Pode ficar 6 anos preso e 20 anos proibido de trabalhar. 
Jafar Panahi: E daí? 
Mojtaba Mirtahmasb: O que estamos fazendo não deixa de ser cinema. O que estamos fazendo agora. 
Jafar Panahi: O que? 
Motjaba Mirtahmasb: Este filme que estamos fazendo. 
Jafar Panahi: Chama isto de filme? 
Motjaba Mirtahmasb: Não sei. Você é quem sabe.

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Jafar Panahi: Como posso expressar o que eu quero? Não é possível. Vamos continuar. Talvez meu humor melhore. Vamos ver o que dá pra fazer.

Por Filipe Furtado (03/12/11)

É um tanto inevitável que Isto Não é Um Filme receba o valor de um evento, mas há duas características contraditórias muito interessantes na sua recepção. Primeira há a supressão quase completa de Mojtaba Mirtahmasb, o amigo documentarista de Jafar Panahi que co-dirigiu o filme com ele. Muitos anos atrás escrevi para um site americano um artigo (sobre McG e Kiarostami) chamado autorismo na era do supermercado; quando se nota que na crítica do Ricardo Calil na Folha de hoje não se menciona a existência de Mirtahmasb (inclusive vale dizer nas informações de serviço no pé do texto!) percebe-se exatamente como uma idéia de autorismo é sutilmente cooptada por uma lógica de mercado. De Isto Não é Um Filme importa sobretudo a figura de Panahi cineasta algo conhecido no ocidente cuja situação atual desperta nas platéias do circuito de arte uma grande curiosidade. O que é muito interessante nisso é justamente o outro dado que me parecer merecer destaque: o filme que é vendido até nos numa lógica em que é natural suprimir a co-autoria de Mirtahmasb, é muito mais o filme que interessa ao próprio Mirtahmasb do que ao Panahi. É o amigo que procuro o tempo todo guiar Isto Não é um Filme na direção da denuncia enquanto o próprio Panahi tem outras preocupações. A grande força de Isto Não é um Filme é justamente de que ele não é um filme de Jafar Panahi ou de Mojtaba Mirtahmasb, mas uma obra conjunto em que ambas as partes o tempo inteiro estão em troca de olhares e concessões. A potência política do filme vem justamente de que sua denuncia existe não como lamento de uma situação, mas em meio a uma troca de diálogos de dois artistas que concorda sobre muita coisa, mas não tem necessariamente a mesma idéia de qual filme fazer sobre aquele tema. Panahi não é só um artista desafiando um regime autoritário quando pega sua câmera, mas um que esta no processo nos mostrando o exato oposto deste regime. A lógica do nosso circuitinho como supermercado porém não tem nenhum interesse disso a sua maneira ela não deixa de ser extremamente autoritária. Nada surpreendente já que ao mercado, qualquer mercado, nunca interessa a política.