Se dependêssemos da abordagem recorrente
que o cinema nos legou dos anos de fogo da ditadura, seriamos levados a pensar
que a vida não passava de um engenhoso roteiro de filme policial norte americano:
tudo terminava em perseguições, traições e torturas. No intuito de criticar a
postura governamental da época e ajustar contas com os excessos praticados
pelos milicos, o cidadão comum ficava sempre relegado ao segundo plano (quando
não ao terceiro, quarto,...). Nesse contexto, os personagens retratados mais
pareciam ativistas políticos de formação - em constante exercício de suas
convicções - sem interesse algum pelo que girava fora da esfera do
enfrentamento ideológico vigente. Eu, que nasci nesse período, em 1977, sempre
tentei imaginar como era a vida dos meus pais na capital paulista no início dos
anos 70, muito certo de que suas trajetórias não moldaram nem refletiram a dos
personagens que fizeram fama na ocasião.
Pois bem, Cara ou Coroa (2012), de
Ugo Giorgetti, praticamente centrou o foco da sua narrativa no comportamento
dessas pessoas comuns, e de lambuja criou um dos mais interessantes, honestos e
calorosos retratos do cidadão médio brasileiro durante o período ditatorial.
Talvez seja o relato mais fiel do que, de fato, tenha sido viver naquele
momento. Entre perseguições, traições e torturas, as pessoas planejavam,
aspiravam e sonhavam, em suma, viviam. Havia tempo para um café da manhã, uma
cervejinha, assistir à televisão, um namoro, etc. Nem tudo se resumia a
maquinações ou paranóias, muito embora os seus efeitos fossem compartilhados
até mesmo por aqueles que não estavam formalmente envolvidos com a causa (seja
ela pró ou contra). Desse rol de caracterizações criadas por Giorgetti destaca-se
o general aposentado vivido por Walmor Chagas e, sobretudo, o taxista vivido
por Otávio Augusto. Ambos gozam de pouco tempo em cena, mas deixam a impressão
definitiva sobre o longa-metragem.
Existe algo de ridículo no
retrato do taxista direitista que financia a contragosto a peça do sobrinho “comunista”
e ainda alimenta expectativas de reaver o dinheiro investido. O relato de suas
impressões sobre a noite de estreia da peça é impagável e reflete com precisão cirúrgica
a aversão às manifestações culturais difundida a partir do Ato Institucional № 5.
Tudo o que era ousado ou desafiador tornou-se ultrajante, sem mais nem menos.
Daí que a cultura marginalizou-se (mas isso é outra história). Giorgetti ainda
faz o milagre de nos conduzir ao exato momento em que Paulo Maluf representava
uma real possibilidade de mudança – situação essa favorecida pelo clima asfixiante imposto pela repressão ditatorial. A cena, curta e grossa, e de uma ironia fina, vale
um filme inteiro.
Valeu a dica!
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Pois é Nahud, a típica pérola pouco vista que renderia uma ótima discussão. Belo filme!
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