quarta-feira, novembro 28, 2012

Cosmópolis (David Cronenberg, 2012)



Faz pouco menos de uma semana que vi Cosmópolis e ainda estou tentando digerir a experiência. Num primeiro momento achei o filme OK, levemente desconfiado do clima de celebração com que a crítica brasileira abraçou a causa, repleta de elogios maiores. Cada dia que passa, contudo, o filme cresce na minha memória, e aos poucos a imagem da limusine-caixão com seus personagens tortos e bizarros começa a ganhar forma. Uma forma disforme é verdade, mas plenamente sintonizada com os dias de hoje.

Embora eu goste dos relatos mais sóbrios a respeito da crise financeira que nos assola, Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme (Oliver Stone, 2010), Margin Call – O Dia Antes do Fim (J.C. Chandor, 2011) e Trabalho Interno (Charles H. Ferguson, 2010), sendo menos do primeiro e bem mais dos dois últimos, desconfio que o lirismo sombrio de Cosmópolis seja mais apropriado para descrever a insanidade e irracionalidade de certo comportamento característico contemporâneo, não circunscrito apenas ao métier dos financistas. Curioso é que o livro de Don DeLillo, que foi fielmente adaptado por Cronenberg para o cinema (observação feita por quem leu o livro), foi escrito em 2003, bem antes da quebradeira generalizada. A contra capa do exemplar editado pela Companhia das Letras tem uma passagem categórica, “A história revela mais do que a falta de sentido de uma existência individual: ela aponta para o caráter perigosamente ilusório das bases que sustentam o mundo contemporâneo”.

A crítica de Pedro Henrique Ferreira para a Revista Cinética é precisa e contribuiu sobremaneira pra estabelecer a minha conexão com o filme. Vale uma conferida. Abaixo, rascunho algumas passagens que me chamaram a atenção.


-        o travelling da cena de abertura é primoroso: o movimento de câmera se assemelha ao de um réptil rondando a limusine, palco de toda a narrativa.

-        na primeira cena ambientada dentro da limusine Eric Parker (Robert Pattinson) conversa com o jovem Shiner (Jay Baruchel). O que se vê pelas janelas do automóvel mais parece uma projeção em slide digital, que ao serem sobrepostas aos rostos dos atores, resulta totalmente fake. O efeito é o mesmo das tomadas feitas em interiores de veículos nos filmes das décadas de 40 e 50. De início, pensei que fosse um problema da projeção da sala de cinema. Só entendi o propósito da questão quando a limusine emparelha com um taxi e Eric Parker visualiza sua esposa sentada no banco de trás do veículo vizinho. Chega a ser surreal o momento em que ele abre a porta da limusine para encontrá-la e nos damos conta de que o mundo visualizado pela janela do automóvel é palpável. É um choque visual. Uma verdadeira televisão digital sintonizada 24 horas por dia com o mundo exterior.

-        Cronenberg parece bem à vontade com o material, resgatando a estranheza dos personagens que ele já desenvolvera em outras oportunidades: Crash – Estranhos Prazeres (1996), Mistérios e Paixões (1991) e no ato final de Marcas da Violência (2005). Samantha Morton, como Vija Kinsky, é a única lúcida de toda a trupe. Ela destoa do restante. É justamente no discurso dela que o espectador encontra um porto seguro, uma referência confiável para estabelecer as devidas relações pretendidas pelo roteiro. A sua prosa é que estabelece a ligação entre o universo dos magnatas e o dos meros mortais – a relação de causa e efeito que culmina na violência. Não é por acaso que a limusine sofre um ataque do “mundo externo” enquanto ela se encontra em cena. Ela coloca todo ser humano na mesma condição, ampliando o âmbito da questão além da mera disputa de classes. A derrocada de Eric Parker começa depois de sua conversa com Vija Kinsky. Um discurso poderoso que estabelece o vértice compreensivo do filme.

-        a cena no barbeiro é ótima. De alguma forma Cronenberg consegue inserir no espaço elementos que transmitem uma sensação de segurança ao protagonista, um conforto aparente, ilusório, que o prepara para o confronto final. É o único momento em que o segurança (ou motorista) que faz a sua escolta abre a guarda e o seu discurso não se reduz a poucas linhas que só fazem aumentar o desconforto do protagonista.

-       Psicopata Americano (2000), de Mary Harron, me veio à cabeça durante boa parte da projeção. Não que seja um filme que eu aprecie, muito pelo contrário, é que a semelhança entre os dois protagonistas é muito grande (ao menos, ambos habitam o "mesmo mundo”). A diferença crucial entre os filmes - e é justamente a parte que cabe ao cinema - é que Cronenberg consegue ambientar bem melhor o seu longa-metragem. O “mundo externo” é palpável em Cronenberg e influencia o seu protagonista – ele interage com ele por meio da janela da sua limusine (são as imagens que chegam a nós). Embora Patrick Bateman (Christian Bale) leve o mesmo tipo de vida que Eric Parker, o seu apartamento asséptico e totalmente impessoal não comporta toda essa grandeza, dimensão ou significância. O “mundo externo” em Psicopata não chega a nós, é inexistente, apenas intuído, e isso faz toda a diferença.

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