Faz pouco menos de uma semana que
vi Cosmópolis e ainda estou tentando
digerir a experiência. Num primeiro momento achei o filme OK, levemente desconfiado
do clima de celebração com que a crítica brasileira abraçou a causa, repleta de
elogios maiores. Cada dia que passa, contudo, o filme cresce na minha memória,
e aos poucos a imagem da limusine-caixão com seus personagens tortos e bizarros
começa a ganhar forma. Uma forma disforme é verdade, mas plenamente sintonizada
com os dias de hoje.
Embora eu goste dos relatos mais
sóbrios a respeito da crise financeira que nos assola, Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme (Oliver Stone, 2010), Margin Call –
O Dia Antes do Fim (J.C. Chandor, 2011) e Trabalho Interno (Charles H. Ferguson, 2010), sendo menos do
primeiro e bem mais dos dois últimos, desconfio que o lirismo sombrio de Cosmópolis seja mais apropriado para descrever
a insanidade e irracionalidade de certo comportamento característico
contemporâneo, não circunscrito apenas ao métier
dos financistas. Curioso é que o livro de Don DeLillo, que foi fielmente adaptado
por Cronenberg para o cinema (observação feita por quem leu o livro), foi
escrito em 2003, bem antes da quebradeira generalizada. A contra capa do
exemplar editado pela Companhia das Letras tem uma passagem categórica, “A história revela mais do que a falta de
sentido de uma existência individual: ela aponta para o caráter perigosamente
ilusório das bases que sustentam o mundo contemporâneo”.
A crítica de Pedro Henrique Ferreira para a Revista Cinética é
precisa e contribuiu sobremaneira pra estabelecer a minha conexão com o filme.
Vale uma conferida. Abaixo, rascunho algumas passagens que me chamaram a
atenção.
-
o travelling
da cena de abertura é primoroso: o movimento de câmera se assemelha ao de um
réptil rondando a limusine, palco de toda a narrativa.
-
na primeira cena ambientada dentro da limusine
Eric Parker (Robert Pattinson) conversa com o jovem Shiner (Jay Baruchel). O
que se vê pelas janelas do automóvel mais parece uma projeção em slide digital,
que ao serem sobrepostas aos rostos dos atores, resulta totalmente fake. O efeito é o mesmo das tomadas feitas
em interiores de veículos nos filmes das décadas de 40 e 50. De início, pensei
que fosse um problema da projeção da sala de cinema. Só entendi o propósito da
questão quando a limusine emparelha com um taxi e Eric Parker visualiza sua
esposa sentada no banco de trás do veículo vizinho. Chega a ser surreal o
momento em que ele abre a porta da limusine para encontrá-la e nos damos conta
de que o mundo visualizado pela janela do automóvel é palpável. É um choque
visual. Uma verdadeira televisão digital sintonizada 24 horas por dia com o
mundo exterior.
-
Cronenberg parece bem à vontade com o material,
resgatando a estranheza dos personagens que ele já desenvolvera em outras
oportunidades: Crash – Estranhos Prazeres
(1996), Mistérios e Paixões (1991)
e no ato final de Marcas da Violência
(2005). Samantha Morton, como Vija Kinsky, é a única lúcida de toda a
trupe. Ela destoa do restante. É justamente no discurso dela que o espectador
encontra um porto seguro, uma referência confiável para estabelecer as devidas relações
pretendidas pelo roteiro. A sua prosa é que estabelece a ligação entre o
universo dos magnatas e o dos meros mortais – a relação de causa e efeito que
culmina na violência. Não é por acaso que a limusine sofre um ataque do “mundo
externo” enquanto ela se encontra em cena. Ela coloca todo ser humano na mesma
condição, ampliando o âmbito da questão além da mera disputa de classes. A
derrocada de Eric Parker começa depois de sua conversa com Vija Kinsky. Um
discurso poderoso que estabelece o vértice compreensivo do filme.
-
a cena no barbeiro é ótima. De alguma forma
Cronenberg consegue inserir no espaço elementos que transmitem uma sensação de
segurança ao protagonista, um conforto aparente, ilusório, que o prepara para o
confronto final. É o único momento em que o segurança (ou motorista) que faz a
sua escolta abre a guarda e o seu discurso não se reduz a poucas linhas que só
fazem aumentar o desconforto do protagonista.
- Psicopata Americano (2000), de Mary Harron, me veio à cabeça durante boa
parte da projeção. Não que seja um filme que eu aprecie, muito pelo contrário,
é que a semelhança entre os dois protagonistas é muito grande (ao menos, ambos
habitam o "mesmo mundo”). A diferença crucial entre os filmes - e é justamente
a parte que cabe ao cinema - é que Cronenberg consegue ambientar bem melhor o
seu longa-metragem. O “mundo externo” é palpável em Cronenberg e influencia o seu
protagonista – ele interage com ele por meio da janela da sua limusine (são as
imagens que chegam a nós). Embora Patrick Bateman (Christian Bale) leve o mesmo
tipo de vida que Eric Parker, o seu apartamento asséptico e totalmente
impessoal não comporta toda essa grandeza, dimensão ou significância. O “mundo
externo” em Psicopata não chega a
nós, é inexistente, apenas intuído, e isso faz toda a diferença.
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