quarta-feira, agosto 26, 2020

Pandemia III

Chocolat (Claire Denis, 1988) a minha porta de entrada para o universo de Claire Denis foi por meio de Minha Terra, África (2009), igualmente resultante da experiência infantil da diretora em continente africano. Denis pratica um cinema de observação aguda, sugestivo, fundamentado em gestos, em que prevalece a linguagem corporal. Num contexto colonial decadente, ultrapassado, ela explora a relação de uma família de colonizadores (pai, mãe e filha) com seus vassalos nativos, em que pese a atração sexual velada existente entre a matriarca e um dos jovens serviçais. Duas cenas antológicas: 1) a recusa da investida da matriarca sobre o serviçal, que, ciente do seu lugar na relação, prega-lhe um “ponha-se no seu lugar”, erguendo-a e endireitando-a como a uma criança quando recebe uma advertência por má conduta; e 2) o sacrifício físico que o serviçal deliberadamente se aplica, encerrando pungentemente o relacionamento harmonioso, porém subordinado, mantido com a criança: ele dissimula intencionalmente a dor da queimadura provocada pelo calor da tubulação fervente da caldeira, que acabara de causar dano à criança, caminhando em direção à sombra até desaparecer na escuridão.

Master Z: IP Man Legacy (Yuen Woo-Ping, 2018)filme redondo e despretensioso, perfeito para uma matinê de quarentena, valorizado pelo elenco estrelar (Michelle Yeoh e Dave Bautista) e pelas lutas coreografadas que conservam um toque cartunesco. Meu filho de 7 anos ficou vidrado com a proposta e a produção. O roteiro é muito bem amarrado, sem firulas e sobressaltos, tampouco sofisticação, embora misture questões contemporâneas (a bem vinda sensibilidade feminina na condução da liderança empresarial, por exemplo) com um tempo narrativo mais remoto (provavelmente a década de 1960 - isso não é muito preciso). A Hong Kong artificial e imaginária do filme, registrada em sets de estúdio limpos e coloridos, reforça a impressão de sonho representado, atenuando essa dissonância temporal. Lembra um Tarantino pelo aspecto tangível do prazer de filmar.

Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996) um dos filmes emblemáticos da retomada (pelo menos, o início dela), figurante no DossiêBrasil: 1992 – 2012 da Revista digital de cinema Interlúdio, que só consegui assistir agora, no início da pandemia, quando o Spcine Play foi lançado, disponibilizando alguns filmes gratuitamente por um curto período de tempo. Conhecia a sua fama, mas não o encontrava para apreciá-lo. Ele reforça o clima característico de desesperança que permeia as obras produzidas nesse período, em que personagens comumente manifestam o desejo de deixar o país, confinados no espaço físico de uma casa, neste caso, cujo drama leva pouco mais de uma hora para se consumar e subitamente se decompor. Dois atores em cena tentando conciliar a agenda turbulenta dos seus personagens, pressionados pela hostilidade interna (família) e externa (a escalada da violência urbana) dos seus entornos, governados por seus instintos primários, sexuais e autodestrutivos. O final é realmente de tirar o chapéu num plano-sequência captado por uma reportagem televisiva que assume a função de “agente dramatizador, tornando-se o veículo mediador entre espectador e filme, numa genial manobra de resolução” (Leandro Schonfelder, Revista Interlúdio).

quinta-feira, agosto 13, 2020

Pandemia II

 

Toni Erdmann (Maren Ade, 2016) – numa postagem recente eu vi que o Sérgio Alpendre não gostou do filme – chega a classifica-lo como medíocre. Acho que depois que Hollywood elaborar o seu “remake” ele deve reavaliá-lo. São quase três horas de filme tentado explorar uma relação “interrompida” entre duas pessoas, no caso um pai e filha, com estratégias de aproximação da parte dele que beiram o grotesco. O abismo que separa os dois mundos só pode ser contornado pelo escracho. O filme é igualmente eficiente em retratar relações pessoais, o choque geracional, ou a selvageria capitalista contemporânea. Eu ficaria horas a fio assistindo aos dois talentosos atores, Sandra Hüller e Peter Simonischek, tentando ajustar as contas – a partir das circunstâncias pensadas e exploradas pela diretora/roteirista. Detalhe: eles quase não conversam.


O Direito da Mais Forte é a Liberdade (Rainer Werner Fassbinder, 1975) – mais um Fassbinder para a conta. Talvez esse seja o filme mais reconhecido do diretor, sobretudo por sua elogiadíssima participação como protagonista. O inferno do personagem equivale ao do diretor: financeiras ou criativas, suas fortunas atraíram um rol de parasitas que sugaram mais do que emprestaram energias para manter a sanidade/o discernimento da caminhada. Quanto mais o protagonista mergulha nas relações, guiado por suas emoções primárias, mais aguda é a sua queda. O espectador assiste passivo a essa derrocada, numa releitura da “crônica de uma morte anunciada”.


A Besta Deve Morrer (Claude Chabrol, 1969) – meu primeiro exemplar da fase áurea da carreira de Chabrol. Já estava tudo lá: o interior da França, a hipocrisia burguesa, a determinação/teimosia do personagem central, etc. O ator Jean Yanne, interpretando Paul Decourt, incarna o pior da espécie humana: expansivo, inconveniente, pouco confiável, o deplorável bem sucedido que usa do seu status para tirar proveito das pessoas. É notável como sua influência tóxica reverbera em seu entorno: tudo o que ele toca vira pedra. Quando o espectador passa a conhecê-lo (em pessoa), as intenções trucidantes do protagonista se tornam mais do que justificadas. Chabrol joga com essa expectativa criando um suspense a partir dela – as cenas são muito bem resolvidas -, culminando com uma resolução bem a sua maneira.

domingo, julho 19, 2020

Pandemia I

O que me manteve longe deste espaço por mais de 4 meses não foi a pandemia. Ultimamente, por mais que eu tivesse coisas a acrescentar a respeito das produções a que assisti, me faltou inspiração e determinação para escrever. Os últimos suspiros da dissertação de mestrado drenaram as minhas energias intelectuais de forma que manter este espaço me pareceu mais uma obrigação do que uma necessidade. Não foram poucas as vezes que ensaiei retomar o ritmo. Além disso, o período contou com a nossa mudança para a cidade de Nazaré Paulista, a fim de dar vazão a um projeto familiar, competindo da mesma forma pelo foco da minha atenção. Agora que as coisas começam a assentar, me sinto mais preparado para dar continuidade às escritas cinematográficas.

Já que o período de exclusão vem se estendendo quase que indefinidamente, vou me programar para registrar parte das produções que me trouxeram alguma necessidade de reflexão. Todas de forma bem breve.


Nascido em 4 de Julho (Oliver Stone, 1989) – o filme é bem melhor do que eu era capaz de me lembrar. Tom Cruise começa representando a si mesmo, mas se metamorfoseia visceralmente para encarar o petardo que caracterizou uma virada categórica em sua carreira. Primeiramente seu personagem desce ao inferno para só então se recuperar da ressaca moral em que se vê envolvido. A narrativa assume o seu ponto de vista (o filme é adaptado das memórias do verdadeiro Ron Kovic) do recrutamento ao regresso. Uma espécie de Os Melhores Anos de Nossa Vida (1946, William Wyler), só que bem mais cru – enquanto a II Guerra Mundial foi travada longe dos EUA, as famílias jantavam com as cenas do Vietnã. Ainda não vi Amargo Regresso (Hal Ashby, 1978) que deve lhe fazer uma bela companhia. A Guerra do Vietnã é a cicatriz aberta norte-americana que ainda não parece esgotada, vide a última investida de Spike Lee, Destacamento Blood (2020), que encontra novos caminhos para ser explorada.


Calafrios (David Cronenberg, 1975) – estou retornando ao início da carreira de Cronenberg, que ainda não havia explorado. É impressionante como o viço da sua marca já se fazia presente desde os primórdios. Um filme de terror B, com uma trama fantástica (embora a pandemia tenha redefinido o significado de absurdo), que funciona perfeitamente bem nas mãos de quem sabe o que está fazendo. Ainda que eu o tenha assistido no início do período de reclusão, só agora que consegui fazer a ponte com o Corrente do Mal (2014), de David Robert Michell - havia visto mais John Carpenter inicialmente, mas me parece ser mais Cronenberg, ou melhor, a temática de Cronenberg com o estilo de Carpenter. Que filme sensacional! Não é para todos os gostos, é verdade, mas é cinema em estado puro.


O Estripador de Nova York (Lucio Fulci, 1982) – meu primeiro Fulci. As sessões de filme de terror andam em alta aqui em casa – só de minha parte, já que minha esposa não gosta. Só esse gênero mesmo para lidar melhor com a realidade. Parte do que escrevi para Calafrios vale aqui também. A estilização dos quadros contrasta com a pobreza da narrativa. Tudo não passa de uma grande desculpa para enfileirar uma morte espetacular atrás da outra. A voz de Pato Donald do assassino é tão estúpida, mas há que se reconhecer que ela funciona bem nesse contexto. Quem se pauta pelo conteúdo, deve sair frustrado, já quem se pauta pela forma, a experiência é absolutamente recompensadora.

domingo, março 15, 2020

Soldados da Morte (Karel Reisz, 1978)

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A vida real está dificultando as minhas passagens neste espaço, e desta vez, influenciando o exercício da minha cinefilia. Embora eu não tenha suprimido por completo minhas sessões, elas foram razoavelmente reduzidas. Mas esse tempo há de passar. A conclusão do meu mestrado em breve deve desanuviar minha programação ociosa, que pretende ser ocupada com sessões mais frequentes.

Por enquanto, algumas produções acumuladas nesse período de escassez, mesmo que rarefeitas, causaram um impacto duradouro.

Começa pelo Soldados da Morte (1978), de Karel Reisz, título traduzido para o Brasil que consta no IMDB, cuja designação original oscila entre Dog Soldiers e Who´ll Stop the Rain.  Esta última é uma clara referência à famosa música do Creedence Clearwater Revival que constitui a base sonora do filme. Embora o enredo sugira o tráfico de cocaína como desdobramento verídico da Guerra do Vietnã, é o mal estar e a desesperança dos envolvidos que realmente importa. As ações envolvendo essa prática censurável servem de pano de fundo perfeito para descrever o abatimento generalizado que cercava o ambiente civil norte americano. A transgressão é a única opção viável de reinserção social – como nos clássicos de Raoul Walsh da Warner Bros. da década de 1930. O lobo solitário vivido por Nick Nolte é o retrato fiel da desilusão enfrentada pelos soldados que retornaram do front de guerra, desencantados com o país que encontraram e sem perspectiva alguma de levar uma vida dita “normal”. O Rambo de Stallone é mais taciturno, reservado e o filme de Ted Kotcheff permanece o tempo inteiro prestes a explodir – a perseguição a ele é mais espetacular e dura quase a metragem toda do longa. Soldados da Morte até ensaia um não-romance entre Nolte e a personagem de Tuesday Weld, numa espécie de evocação das memórias de um tempo que não volta mais, coisa que O Franco Atirador (1978), de Michael Cimino, se presta a dedicar uma porção mais prolongada do premiado filme. O final é absolutamente fantástico, com o personagem de Nolte externando toda a perturbação que ele passara o filme inteiro tentando evitar. O embate final se passa numa locação hippie abandonada que representa o fim de uma era – o eco de um EUA que havia deixado a ingenuidade para trás. A violência sempre esteve presente e os efeitos nefastos dela permanecem os mesmos, só cambiaram as armas.