segunda-feira, setembro 30, 2019

Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019)


E mais uma vez Kléber Mendonça Filho nos entrega um filme memorável. Eu o assisti já faz uma semana e meia e, a prior, nem escreveria nada sobre ele. Mas a experiência permanece crescendo na minha memória de forma que pretendo registrar algumas impressões.

É sempre estimulante quando um filme brasileiro autoral “cai nas graças” do público e vira motivo de conversa de botequim. O autoral aqui não deve ser levado ao pé da letra, já que Kléber divide a direção com Juliano Dornelles, o que pode anuviar os limites da influência de cada um dos colaboradores no resultado final. O emprego do termo é só para distinguir a produção daquelas que gozam de um cunho mercadológico mais explícito.

Quando a crítica já mencionava o cinema de John Carpenter como referência para explorar algumas partes de O Som ao Redor (2012) eu confesso que achava um pouco forçado, muito embora a minha aproximação com a produção do cineasta norte-americano só tenha começado a aflorar de fato nessa mesma época. Foi só a partir do segundo semestre de 2012 que comecei a correr atrás da filmografia de Carpenter com mais afinco. Sendo assim, eu não dispunha de repertório suficiente para refutar essa afinidade que hoje me salta aos olhos.

Bacurau deixa essa referência bem visível, bebendo na fonte de Assalto ao 13º DP (1976), ainda que a temática explorada por Carpenter nele já fosse uma releitura de Onde Começa o Inferno (1959), de Howard Hawks, que parodiava o Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann. Além da música emprestada de forma escancarada - os famosos sintetizadores das trilhas compostas pelo próprio John Carpenter -, o flerte com um filme B de terror intercalado por momentos de humor é outra marca registrada. A postura política bem definida é outro ponto de convergência, que assume um posicionamento mais agudo nas mãos de Kléber Mendonça Filho: ele se apropria muito bem das convenções do western em favor da cultura interiorana pernambucana (talvez nordestina, mas aí eu não tenho propriedade para afirmar). Tendo a acreditar, inclusive, que esse “diálogo” com o cinema de gênero seja um dos grandes responsáveis pela boa recepção do filme junto ao público. A despeito de a embalagem ser essencialmente americana, o conteúdo é essencialmente brasileiro.

Contudo, mais do que essa notória herança carpenteriana, outra referência mais contemporânea me invadiu a memória enquanto assitia a Bacurau: a trilogia criada até então por James DeMonaco, que explora um “expurgo humano” (The Purge) legitimado pelo Congresso norte-americano em que “todo e qualquer crime é legal em um período de 12 horas”. Os títulos são Uma Noite de Crime (2013), Uma Noite de Crime: Anarquia (2014) e 12 Horas para Sobreviver: O Ano da Eleição (2016). Sempre considerei a ideia bem inspirada, um excelente ponto de partida, muito embora a execução e os desdobramentos dela sejam absolutamente decepcionantes. Nenhum dos filmes consegue romper a barreira da premissa e assumir a responsabilidade pela alta carga política que eles sugerem. Todos eles têm momentos interessantes, que infelizmente não se convertem em experiências memoráveis.

Em Bacurau essa premissa é alçada a outro patamar e ganha vida na insurreição perpetrada pelos seus habitantes (o filme leva o nome da cidade) contra um bando de sádicos estrangeiros e brasileiros, inclusive, que querem exterminá-los em nome de diversão/entretenimento/adrenalina. A composição dos tipos que habitam os dois grupos, embora estereotipada - condição que o cinema de gênero acolhe com naturalidade -, vem junto com uma boa dose de humor que contrabalanceia a gravidade da proposta, potencializando o seu caráter irônico (a cena do casal cômico de idosos nus que se defendem de uma investida e a estrangeira agonizando enquanto se comunica por intermédio de um aparelho sonoro que traduz suas falas representam o ápice dessa intenção). Esses aspectos bizarros só provocam mais simpatia pelos personagens representados e acionam o “modo” gostei do público.

terça-feira, setembro 24, 2019

Tucker: Um Homem e Seu Sonho (Francis Ford Coppola, 1988)




Ainda me falta assistir alguns filmes de Francis Ford Coppola, sobretudo as primeiras produções, quando a sombra de Roger Corman se fazia mais presente. Das produções oitentistas, Tucker sempre me despertou a atenção, embora eu enfrentasse dificuldades em encontrá-lo em boas condições para assistir. Tucker nunca foi um filme muito celebrado, de fácil disponibilidade e, curiosamente, muito comentado. É certo que a sombra dos Chefões e a saga prolongada de Apocalypse Now foram capazes de ofuscar o brilho desta obra-prima elegante (fotografia de Vittorio Storaro e production design de Dean Tavoularis) e verdadeiramente energizante. Um tour de force impressionante de Jeff Bridges como alter ego de Coppola, interpretando o sonhador independente Preston Tucker, num embate memorável da criatividade, persistência e determinação contra as forças inabaláveis do status quo. O discurso final de Preston Tucker no tribunal defendendo-se da acusação de uso irresponsável de dinheiro público para construir um protótipo de carro do futuro é absolutamente antológico: uma daquelas circunstâncias em que a defesa do sonho americano encontra terreno fértil para expandir o seu verdadeiro legado. Martin Landau é outro dos trunfos da produção, humanizando o papel do habitual homem-do-dinheiro.