E mais uma vez Kléber Mendonça Filho nos
entrega um filme memorável. Eu o assisti já faz uma semana e meia e, a prior,
nem escreveria nada sobre ele. Mas a experiência permanece crescendo na minha
memória de forma que pretendo registrar algumas impressões.
É sempre estimulante quando um filme
brasileiro autoral “cai nas graças” do público e vira motivo de conversa de
botequim. O autoral aqui não deve ser levado ao pé da letra, já que Kléber
divide a direção com Juliano Dornelles, o que pode anuviar os limites da
influência de cada um dos colaboradores no resultado final. O emprego do termo
é só para distinguir a produção daquelas que gozam de um cunho mercadológico
mais explícito.
Quando a crítica já mencionava o cinema
de John Carpenter como referência para explorar algumas partes de O Som ao Redor (2012) eu confesso que
achava um pouco forçado, muito embora a minha aproximação com a produção do
cineasta norte-americano só tenha começado a aflorar de fato nessa mesma época.
Foi só a partir do segundo semestre de 2012 que comecei a correr atrás da
filmografia de Carpenter com mais afinco. Sendo assim, eu não dispunha de
repertório suficiente para refutar essa afinidade que hoje me salta aos olhos.
Bacurau
deixa essa referência bem visível, bebendo na fonte de Assalto ao 13º DP (1976), ainda que a
temática explorada por Carpenter nele já fosse uma releitura de Onde Começa o Inferno (1959), de Howard
Hawks, que parodiava o Matar ou Morrer
(1952), de Fred Zinnemann. Além da música emprestada de forma escancarada -
os famosos sintetizadores das trilhas compostas pelo próprio John Carpenter -,
o flerte com um filme B de terror intercalado por momentos de humor é outra
marca registrada. A postura política bem definida é outro ponto de
convergência, que assume um posicionamento mais agudo nas mãos de Kléber
Mendonça Filho: ele se apropria muito bem das convenções do western em favor da cultura interiorana pernambucana
(talvez nordestina, mas aí eu não tenho propriedade para afirmar). Tendo a
acreditar, inclusive, que esse “diálogo” com o cinema de gênero seja um dos
grandes responsáveis pela boa recepção do filme junto ao público. A despeito de
a embalagem ser essencialmente americana, o conteúdo é essencialmente
brasileiro.
Contudo, mais do que essa notória herança
carpenteriana, outra referência mais contemporânea me invadiu a memória
enquanto assitia a Bacurau: a
trilogia criada até então por James DeMonaco, que explora um “expurgo humano” (The Purge) legitimado pelo Congresso
norte-americano em que “todo e qualquer crime é legal em um período de 12 horas”.
Os títulos são Uma Noite de Crime (2013),
Uma Noite de Crime: Anarquia (2014) e 12
Horas para Sobreviver: O Ano da Eleição (2016). Sempre considerei a ideia
bem inspirada, um excelente ponto de partida, muito embora a execução e os desdobramentos
dela sejam absolutamente decepcionantes. Nenhum dos filmes consegue romper a
barreira da premissa e assumir a responsabilidade pela alta carga política que
eles sugerem. Todos eles têm momentos interessantes, que infelizmente não se
convertem em experiências memoráveis.
Em Bacurau
essa premissa é alçada a outro patamar e ganha vida na insurreição perpetrada
pelos seus habitantes (o filme leva o nome da cidade) contra um bando de sádicos
estrangeiros e brasileiros, inclusive, que querem exterminá-los em nome de
diversão/entretenimento/adrenalina. A composição dos tipos que habitam os dois
grupos, embora estereotipada - condição que o cinema de gênero acolhe com naturalidade
-, vem junto com uma boa dose de humor que contrabalanceia a gravidade da
proposta, potencializando o seu caráter irônico (a cena do casal cômico de
idosos nus que se defendem de uma investida e a estrangeira agonizando enquanto
se comunica por intermédio de um aparelho sonoro que traduz suas falas
representam o ápice dessa intenção). Esses aspectos bizarros só provocam mais
simpatia pelos personagens representados e acionam o “modo” gostei do público.
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