quinta-feira, novembro 26, 2015

Weekend à francesa (Jean-Luc Godard, 1967)



Por Ethan de Seife

Weekend à francesa pode ser o mais selvagem e obscuro de todos os filmes de Jean-Luc Godard, o que quer dizer alguma coisa. É também uma de suas obras mais audaciosas. Vale tudo na tela. Uma conversa telefônica mundana se transforma em um número musical absurdamente encantador, nossos heróis se encontram com personagens de contos de fadas no bosque, e protagonistas podem ter finais horríveis a qualquer hora. A decisão de Godard de avançar do episódico para o episódico e bizarro foi ousada e de grande repercussão. Cineastas radicais de todas as tendências devem muito a essa obra.

Mas “radical” seria um rótulo bem infeliz para a película, pois conota uma politização simplista e falta de humor. Pode ter certeza de que Weekend não padece desses males. Na realidade, é um filme extremamente engraçado, em parte por conta das suas atitudes políticas. A capacidade de misturar o sério, o cômico, o belo e absurdo era apenas um dos muitos dons de Godard.

Nenhuma discussão sobre Weekend estaria completa sem a menção a sua tomada mais famosa, provavelmente uma das mais famosas do cinema. Talvez o esteio do filme seja a tomada panorâmica de mais ou menos 10 minutos sobre o pior engarrafamento de trânsito do mundo, interrompida pelo gosto de Godard por subtítulos didáticos e elípticos. Mas não se trata de um engarrafamento comum: a versão assustadora mas hilariante de Godard inclui animais de zoológico, barcos, um piquenique ocasional e um bocado de sangue. Mas, como o diretor disse uma vez, não é nada para se preocupar. É tudo tinta vermelha.

sexta-feira, novembro 20, 2015

A Costa do Mosquito (Peter Weir, 1986)


Eu acho que o nome do filme nunca me despertou o devido interesse quando eu frequentava locadoras nas décadas de 80 e 90. Era sempre um título disponível, que, embora estrelado por um astro em ascensão / consolidado na ocasião (Harrison Ford em ótima performance), não foi capaz de romper a barreira da minha curiosidade. A comodidade de acesso ao Netflix me trouxe ele numa bandeja que eu não pude recusar: dois ou três cliques e o brasão da Warner Bros. já estava girando no centro do meu televisor.

Honestamente, foi a descoberta de que Paul Schrader roteirizava o filme que me levou a ele, ainda que possa ser considerado um autêntico Peter Weir (a relação de autoria também funciona para a parceria Schrader-Scorsese, no sentido de que o universo abordado funciona para ambos os cineastas).

A relação do homem branco "civilizado" com outra cultura permeia a filmografia de Peter Weir. O espectador descobre junto com o protagonista (o tal homem branco) a extensão da sua insignificância à medida que sua curiosidade avança sobre a outra cultura (sobrepondo-se a ela). O instinto predatório de dominação, contrário à ideia de aproximação e compreensão do outro, culmina fatalmente com a violência. A religião, que talvez pudesse apaziguar os ânimos dos envolvidos, escamoteia as reais intenções dos seus pregadores, cujas investidas "civilizatórias" se justificam como a manifestação voluntária da vontade de Deus. Por fim, prevalece a máxima de Thomas Hobbes: "o homem é o lobo do homem".

Cada um puxa a sardinha para o seu lado em detrimento dos interesses alheios. Allie Fox (Harrison Ford) se torna uma vítima da sua própria obsessão, perdendo de vista seus próprios ideais e sendo levado por um senso de propósito distorcido. Ele abandona um ambiente que considera ofensivo (os EUA dos anos 80), levando toda a família em busca do sonho de poder erguer sua própria cultura (ao exercer sua influência sobre um meio ambiente "virgem", a Costa do Mosquito do título). A seu ver, sua inteligência (extremamente valorizada pelos outros personagens do filme) e senso civilizatório seriam suficientes para garantir o bem estar de seus pares bem como de quem fosse influenciado por ele. Allie só não contava encontrar com outros indivíduos com a mesma intenção que a sua.

sábado, novembro 07, 2015

Ponte dos Espiões (Steven Spielberg, 2015)

Duelo de interpretações memoráveis entre Tom Hanks e Mark Rylance - a interação entre os dois atores sustenta boa parte do filme

No balanço da filmografia de Steven Spielberg é muito provável que Ponte dos Espiões apareça como um filme menor do diretor. O lançamento modesto da produção que aborda a espionagem na extinta Guerra Fria, em que os diálogos são mais relevantes para a construção dramática do filme do que o próprio ato de espionar, pode levar a falsa impressão de inferioridade. O que poderia se tornar um thriller corriqueiro de espionagem nas mãos de outro cineasta, com Spielberg se torna uma aula de cidadania. Desde já é um dos meus preferidos do diretor. A postagem do Luiz Carlos Merten a seu respeito, intitulada “Spielberg, pensador da América”, reserva boa parte das minhas impressões, trazendo a lembrança da influência vívida de John Ford em suas últimas produções.

Já escrevi mil vezes no blog que existe um Spielberg antes e um depois da trilogia sobre o 11 de Setembro. O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique elevaram, para mim, o cinema dele a um outro patamar, o que foi confirmado por Lincoln. Spielberg não apenas cineasta, mas pensador político. Ei-lo que volta em Ponte dos Espiões. Tom Hanks, que se chama Donovan, é chamado a defender Frank Relyance, um espião russo preso da ‘América’. A expectativa de todo o mundo é de um julgamento pró-forma, com sentença (de morte) antecipada, mas Donovan leva a defesa a sério, e a um custo elevado – a segurança da própria família -, faz de tudo para inocentar Abel. Quando isso é impossível, luta para preservar sua vida. Queria saber o nome do estudante e fiz há pouco uma pesquisa na rede. Não encontrei o que procurava e, em contrapartida, vi que muita gente que acha o filme patrioteiro, uma defesa do sistema de Justiça norte-americano etc etc. Não foi o que vi. Donovan usa o argumento de que os olhos do mundo estão sobre a América como pretexto para um julgamento honesto, mas o circo está armado e o clima de linchamento moral – do acusado, do advogado – é muito forte. Abel vai definir Donovan como o Sr. Obstinado, e ele é. Chamado para negociar com a URSS a troca de Abel pelo piloto cujo avião de espionagem foi abatido em território inimigo, Donovan obstina-se, de novo, em conseguir a libertação de Gary Powers e a do estudante preso em, Berlim Oriental. Para a CIA, o estudante não importa. O governo dos EUA só quer o piloto, que pode revelar segredos importantes, como Abel também, poderia, mas não fez. Só a obstinação de Donovan salva o garoto e, no fim, quando Powers, no voo de volta, senta-se ao lado do negociador – e percebendo como todos o evitam – diz em tom choroso “Eu não contei nada, nada’, toda a arquitetura dramática do filme converge para a frase que diz Tom Hanks. “Não importa o que os outros pensem ou digam. O que vale é a tua (sua) consciência.” É uma frase fordiana. A grandeza ética dos derrotados – dos acusados, dos que são colocados sob suspeita. Spielberg tem feito esses filmes grandes, e grandes filmes, para pensar a América no pós-11 de Setembro, colocando em discussão o que quase se perdeu com George W. Bush e seus asseclas do Departamento de Estado e do Pentágono.
Gostei muito de Ponte dos Espiões e, mesmo assim, me decepcionei. Gostei talvez menos que da trilogia, e do que Lincoln... Pode estar na tendência de Spielberg ao melodrama. No trem, em Berlim, Donovan vê os alemães que tentam fugir ser fuzilados no Muro. De volta à casa, no metrô, seu olhar acompanha as crianças que pulam muros. A América é melhor, sem dúvida, mas certamente não é por sua covarde maioria silenciosa, mas por homens que fazem a diferença. Como Donovan, como Spielberg. Creio que, mais que nunca, John Ford permanece com ‘o’ mestre’. Tem inspirado Clint, na medida em que Sniper Americano retoma a tragédia do solitário de Rastros de ÓdioPonte dos Espiões me lembrou mais Liberty Valance, O Homem que Matou o Facínora. A lição de democracia daquele filme, na escola, é repetida aqui no encontro de Donovan com o agente da CIA. Um, irlandês, o outro, alemão. O que os une senão o respeito ao código de leis, à Constituição? O próprio nome, se não fosse real, teria de ser inventado. Existem personagens de Ford que se chamam Donovan em Depois do Vendaval e O Aventureiro do Pacífico/Donovan’s Reef. Dou-me conta de que achava que não tinha gostado tanto – a la folie, como dizem os franceses – de Ponte dos Espiões. Mas gostei, sim.