“... Se eu ainda tenho energia é porque cada filme que vejo me
acrescenta alguma coisa, eu sinto que posso continuar sendo útil. E eu quero
propagar essas ideias. Acho que a essência da democracia é isso. É um exercício
para nunca se ser egoísta. Também faz parte da minha vida de repórter, de
jornalista de um tempo em que havia ditadura militar e tudo o que você podia
escrever era como um ato de resistência. Poder passar nas entrelinhas alguma
mensagem já era uma vitória, com toda a censura que existia nas redações.”
“O cinema constrói muito da nossa matéria inconsciente. A coisa mais
forte, que eu valorizo muito, e a Mostra sempre traz, são os filmes antigos
restaurados. É o registro do passado, uma forma de respeitar as gerações
anteriores. O crítico precisa ser mais tolerante e generoso. Deixar o
julgamento para outras pessoas. Deve dizer quem é o autor, em que circunstância
o filme foi feito e do que se trata. A avaliação fica por conta de cada um.
Resumindo: não acho que exista um só filme que faça a nossa cabeça. São muitos
e esse aprendizado é infinito.”
Leon Cakoff, Os Filmes da Minha Vida
Eu já havia me programado para
passar uma semana em São Paulo, por ocasião da Mostra, quando a notícia do
falecimento de Cakoff foi divulgada. Embora eu nunca tenha trocado uma palavra
sequer com ele (oportunidades não me faltaram nos intervalos das sessões das
Mostras), cultivo, bem como uma legião numerosa de cinéfilos, um respeito e
admiração pelo idealizador do maior evento cultural da capital paulista: a
Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, que este ano completou 35 anos sob
sua responsabilidade e curadoria.
Meu interesse pelo cinema defendido
e difundido por Cakoff só começou a partir de 1995, quando residi em São Paulo
por um ano – essa vivência na capital foi fundamental para estabelecer meu
gosto, minhas preferências e prioridades cinematográficas. Minha infância e
adolescência em São José dos Campos nos anos 80 não foram muito diferentes das
dos meus colegas da mesma geração: Sessão da Tarde, Tela Quente e muito VHS. Cinema
(de rua, ainda) era programa família de final de semana. Quem dava as cartas eram
as produções assinadas por Spielberg, Lucas e Zemeckis, as franquias recém
formatadas dos filmes de terror juvenil (Sexta-feira
13, A Hora do Espanto, A Hora do Pesadelo), os filmes de ação (Top Gun – Ases Indomáveis, Duro de Matar,
Máquina Mortífera) e as ficções científicas (O Predador, O Exterminador do Futuro). Antes de chegar a São Paulo minhas referências cinéfilas mais arrojadas
eram os dramas indicados ao Oscar: eles representavam os verdadeiros bons
filmes, os ditos “filmes relevantes”.
Ainda hoje me recordo da minha
primeira sessão no Espaço Unibanco da Augusta, em 1995, assistindo ao vencedor
do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1994: Antes da Chuva, do macedônio Milcho Manchevski. O filme havia sido
a vedete do público na edição da Mostra de 94 (Prêmio do Público – Melhor Filme
de Ficção Internacional da Mostra de 1994). Deixei a sala estupefato. Subi a
Rua Augusta rumo ao metrô redesenhando todo o filme na minha cabeça. Na minha
ignorância, eu não concebia que um filme de tamanha qualidade pudesse ser
produzido na Macedônia. Foi a primeira vez que um filme em língua estrangeira
(como se o inglês não fosse!) me despertava a atenção – desconsiderando,
naturalmente, o vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro de 1990: o aclamado e
emotivo Cinema Paradiso, do italiano
Giuseppe Tornatore. O drama daqueles macedônios era tão verdadeiro, intenso e
envolvente que a língua, a ausência de astros e o abismo cultural que nos
separa não foram capazes de me desmotivar a segui-los. Na verdade, aquela
sessão representou pra mim uma quebra de preconceito, abrindo-me as portas para
um exercício de cinefilia mais apurado, refinado e seletivo.
Coincidentemente no ano de 1995,
o mundo inteiro celebrava o centenário do cinema. Os jornais impressos e as
revistas especializadas publicavam listas e mais listas dos filmes mais
importantes da história (posteriormente, até revistas não especializadas elaborariam
as suas listas). A Folha de S.Paulo
publicou um caderno especial (volumoso) com os 10 filmes mais importantes segundo
100 críticos de cinema de todo o mundo. O caderno não só destinava uma página
para cada um dos dez melhores filmes como listava os dez filmes selecionados
por cada crítico. Eu cansei de consultar as listas individuais a procura de
algum filme que eu já tivesse visto que não fosse de Charles Chaplin. Embora eu
conhecesse muito dos filmes relacionados por nome, ainda não havia visto qualquer
um deles.
A minha relação com a crítica também
se estabeleceu a partir desse momento: Inácio Araújo, Luiz Carlos Merten, Luis
Zanin Oricchio, José Geraldo Couto, Cássio Starling Carlos, Paulo Santos Lima
(e eventualmente outros colaboradores da Folha
de S.Paulo, como Leon Cakoff e Walter Salles). A internet levaria mais alguns
anos para consolidar-se, facilitando o acesso aos textos do crítico norte-americano
do jornal Chicago Sun-Times, Roger Ebert – autor de uma das frases que me vem à
cabeça sempre que alguém me confessa que desconhece um dos clássicos do cinema
mundial (frequentemente se aplica a mim mesmo), “If you do not know his work, I envy you, because you have some of your
most sublime movigoing experiences ahead of you.”
A introdução acabou saindo maior
do que eu havia planejado. Nem eu imaginava que haveria tanta coisa pra ser
colocada em um texto – e olha que ele poderia ser maior ainda. Enfim, escrevo
esse post depois da Mostra deste ano
tentando prestar uma homenagem, ainda que singela, ao trabalho do Cakoff –
afinal, meu “batismo” (e de praticamente todo cinéfilo no Brasil) se deu por
meio de uma de suas escolhas. Coincidentemente, uma das retrospectivas deste
ano foi a do armênio Sergei Paradjanov, cujos filmes eu desconhecia - até
então, ouvira a respeito de A Cor da Romã
(1968), lançado recentemente em DVD pela Lume Filmes. A Mostra (ela
novamente!) me presenteou com as projeções em 35 mm de O Primeiro Rapaz (1959) e A
Lenda da Fortaleza Suram (1986) e em digital do curta Hagop Hovnatanian (1967) e A
Cor da Romã. Tivesse meu tempo em São Paulo sido mais extenso, teria me
programado para assistir a todos os filmes de Paradjanov. Eu sabia que outra
oportunidade como esta seria improvável, pra não dizer impossível.
A escolha dos trechos que abrem
este post não foi nem um pouco
arbitrária; a meu ver, eles representam bem o espírito humano, contestatório, resistente
e determinado que nortearam os esforços de Cakoff pra viabilizar a Mostra desde
sua primeira edição (no livro Os Filmes
da Minha Vida ele menciona, orgulhoso, inúmeras situações dignas de
registro em que não fosse por sua persistência, ousadia e coragem, fica claro
que o evento não teria chegado muito longe). O que mais me chama a atenção
nesses trechos selecionados (em especial o primeiro) é que, curiosamente, eles
dialogam perfeitamente com a obra/vida de Paradjanov: censura, ato de resistência,
ditadura militar (no universo do armênio
seriam representadas pelas autoridades soviéticas). Ambos lutaram, cada um a
sua maneira e se valendo do talento e das habilidades que lhe foram conferidos
– suas verdadeiras “armas” -, para que seus trabalhos fossem compreendidos,
difundidos e apreciados. O segundo trecho parece uma encomenda póstuma de
Paradjanov a Cakoff. Não estou certo de que Cakoff, que também era armênio, se
orgulharia dessas aproximações, mas tampouco acredito que ele se incomodaria.
Pra terminar: os próximos posts serão dedicados a Paradjanov e aos
filmes vistos na Mostra deste ano.
Salve Cakoff (e a Mostra)!