quarta-feira, novembro 30, 2011

A Pele que Habito (Pedro Almodóvar, 2011)



A julgar pela recepção do novo filme de Almodóvar no último festival de Cannes era de se esperar uma película mediana, não muito inspirada, e, dependendo do cronista, uma bola fora do diretor espanhol. Segundo esses relatos, Almodóvar não conseguiu encontrar o tom certo pra fazer “o filme funcionar” da forma como gostaria. Já a cobertura da imprensa nacional, quando de sua estreia há quase um mês atrás, foi bem diferente: empolgante e vibrante como as cores que fizeram a fama de seus filmes.

Normalmente, eu tendo a encontrar um ponto no meio desses dois extremos pra acomodar a minha percepção. Ao menos, foi com esse espírito que eu me dispus a encará-lo. Ao término da sessão eu estava meio neutralizado, absorto pelo intricado enredo que empilha referências cinematográficas das mais diversas possíveis sem, no entanto, abrir mão da assinatura singular de Almodóvar. Embora as cores sejam as mesmas de sempre, nesse filme ele carrega mais na atmosfera, nos tons mais escuros e flerta com o cinema B norte americano de terror e ficção científica. Como bem apontou o crítico José Geraldo Couto, o cientista interpretado por Antônio Banderas - depois de quase 20 anos ausente das produções espanholas e da colaboração com o seu mentor - é uma bela mistura do Dr. Frankenstein, o Rotwang de Metrópolis (1927, de Fritz Lang), o Morel de Bioy Casares, o Dr. Moreau e o Dr. Phibes que rivalizaram com Deus ao subverter os limites da vida.

O fio condutor da narrativa tem como referência mestra Os Olhos sem Rosto (Georges Franju, 1960), misturando-se às obsessões de Scottie Ferguson (James Stewart) em Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock, 1959) – coincidentemente, ambos são adaptações de romances dos franceses Pierre Boileau e Thomas Narcejac. Os personagens dos três filmes, dentre os quais A Pele que Habito, se contorcem, se enganam, manipulam e até mesmo matam para recriar o objeto (uma mulher) dos seus desejos. Naturalmente, no universo de Almodóvar a questão da sexualidade sempre ganha um tratamento à parte: as barreiras que estabelecem a diferença entre o sexo masculino e feminino são insondáveis. Em seus filmes, essas questões nunca se restringem apenas à genitália, tampouco são reduzidas a psicologismos baratos ou generalizações opacas. A sexualidade não é determinada pela conformação do corpo, o desejo, que orienta boa parte dos rumos de seus personagens (e até serviu de nome para um de seus filmes, A Lei do Desejo), não escolhe suas vítimas baseado em suas molduras. Seu cinema é orientado pela paixão, que, assim como o desejo, é assexuado.

Ao menos pra mim, esse filme representa o trabalho mais elaborado e complexo de Almodóvar a respeito dessa questão. Desde já, um de seus melhores.

Tomo emprestado a introdução do texto do Ricardo Calil a respeito do filme pra finalizar o meu: “Existem poucas coisas mais bonitas do que ver um artista consagrado correndo riscos. É esse espetáculo que Pedro Almodóvar nos oferece em A Pelo que Habito: depois de chegar ao topo da montanha, saltar no abismo – levando junto com ele o espectador.”

sábado, novembro 26, 2011

35ª Mostra de Cinema Internacional em São Paulo – Parte 2




Todas as fotos são de Despair (1978), de R.W. Fassbinder


Despair (1978), de Rainer Werner Fassbinder (ALEMANHA) - mais um Fassbinder pra conta e o balanço permanece o mesmo: excepcional. A cópia digital do filme, apresentada no Unibanco Arteplex do Frei Caneca, me fez repensar um pouco a discussão película X digital que dominou os bastidores da Mostra. Dava gosto de ver - parece-me que a restauração foi supervisionada pelo diretor de fotografia do filme, Michael Ballhaus. O trabalho de câmera em um filme de Fassbinder é fundamental e Ballhaus foi um de seus melhores colaboradores – senão o melhor. O emprego da luz, sem a qual a fotografia não existe, é tão importante que compõe o título original do filme em alemão: Despair – Eine Reise Ins Litch/The Trip into the Light. Lembrei-me muito de Visconti e Losey, certamente pela presença de Dirk Bogarde. Embora se trate de uma adaptação de um livro de Nabokov, realizada pelo famoso dramaturgo inglês Tom Stoppard, se encaixa como uma luva no universo de Fassbinder.

Um Mundo Misterioso (2011), de Rodrigo Moreno (ARGENTINA) - o diretor estava presente na sessão e antes de começá-la orientou o público a acionar o modo “easy” para desfrutar melhor da experiência. Na verdade, Rodrigo Moreno reconhece que seu filme não foi formatado para o circuito comercial e tentou prevenir o público do seu ritmo mais contemplativo - a julgar pela reação dos espectadores após a sessão, não diria que ele estava de todo errado. Uma pena. O filme é bom e por meio do seu personagem principal, Boris (Esteban Bigliardi), vagamos pela Buenos Aires contemporânea em estado de suspensão, sem um objetivo definido, apenas “estando” – Moreno cria situações interessantes (algumas melhores que outras), da qual o humor surge quase que despropositadamente. Como bem notou Rogério de Moraes, na Cinequanon, “Moreno, ao limar de seu filme elementos básicos da sustentação narratológica clássica, nos obriga a aceitar que o “nada”, algumas vezes, pode “ser” mais coisas que o “algo”. Note-se: “ser”, não necessariamente dizer.”

Se nós não, quem? (2011), de Andres Veiel (ALEMANHA) - o filme aborda os anos de formação de alguns dos integrantes do Grupo Baader Meinhof, num formato semelhante ao de uma prequel. Pena que a produção adote uma abordagem muito americanizada do tema, resultando em um produto diluído, sem personalidade. O melhor antídoto para esse caso é um autêntico Fassbinder: A Terceira Geração (1979).

Low Life (2011), de Nicholas Klotz e Elisabeth Perceval (FRANÇA) - minhas expectativas eram muito altas em relação ao novo filme de Klotz depois do excelente A Questão Humana (2007). Não posso dizer que foram superadas (e eu já imaginava que não seria fácil). Tive dificuldades para “entrar” no filme, que conta com uma trilha sonora tecno bem aborrecedora – ao menos condizente com o clima frio da película e o azul dominante da fotografia. Só não dá pra dizer que o filme é irrelevante: a França de Sarkozy está bem representada na tela. Jovens franceses e imigrantes se misturam e se envolvem pelas mesmas causas.

Sábado Inocente (2011), de Aleksandr Mindadze (RÚSSIA) - uma abordagem original da tragédia atômica de Chernobyl. O cinema russo em seu habitat natural: o tom sombrio, a moralidade, o legado comunista. Um membro do Estado, ciente do vazamento e de seus efeitos, diante de um dilema: como abandonar a cidade - e se livrar da radiação - sem poder comunicar os seus amigos de sua partida e do perigo que os cerca (ainda que invisível)? No final das contas, aqueles que ele se dispõe a salvar acabam por prejudicá-lo. Luiz Zanin Oricchio indicou o caminho do raciocínio em seu blog: “O interessante é como Sábado Inocente se coloca na contracorrente dos disaster movies banais. Se nestes o que se tem é sempre uma união de vários especialistas tentando (e conseguindo) debelar a ameaça, como no caso do previsível Contágio, de Steven Soderbergh, aqui os próprios ameaçados são seus piores inimigos.”

Ainda rolou a exibição de alguns filmes no interior de São Paulo, graças ao envolvimento do SESC na empreitada. Acabei vendo ainda:

Como começar seu próprio país (2010), de Jody Shapiro (CANADÁ) *
Look, Stranger (2010), de Arielle Javitch (SÉRVIA) **
As Flores de Kirkuk (2010), de Fariborz Kamkari (IRAQUE/ITÁLIA) *
Depois do Sul (2011), de Jean-Jacques Jauffret (FRANÇA) **
Irmãs Jamais (2011), de Marco Bellocchio (ITÁLIA) ****

quarta-feira, novembro 16, 2011

35ª Mostra de Cinema Internacional em São Paulo – Parte 1


Andy Griffith em Um Rosto na Multidão (1957), de Elia Kazan


A princípio eu ficaria três dias em São Paulo exclusivamente para desfrutar das opções da Mostra. O quarto dia não poderia ser de todo aproveitado: o show do Pearl Jam restringiu o meu programa ao primeiro horário. Quando eu consultei a programação e constava a exibição de dois filmes de Elia Kazan na noite anterior a que eu havia planejado viajar, me rearranjei para não perdê-las. Foi a melhor decisão que eu tomei, sobretudo porque as sessões mais marcantes acabaram sendo de filmes restaurados: Elia Kazan, Sergei Paradjanov e Rainer Werner Fassbinder. Houve a oportunidade de assistir a Taxi Driver (1976, Martin Scorsese) e a Laranja Mecânica (1971, Stanley Kubrick), contudo como se tratava de sessões concorridíssimas eu teria de sacrificar algumas escolhas para me regozijar com eles. Nada feito. Agi dessa forma na esperança de que um dia a capital paulista abrigue (a Mostra talvez?) uma retrospectiva de ambos os (super cultuados) diretores. Tomara! Vale mencionar também que os blogs que fizeram a cobertura do evento, de maneira geral, estavam massacrando as exibições em digital, dentre as quais os filmes de Scorsese e Kubrick.

Três dias é muito pouco pra aproveitar todas as opções da Mostra. Alguns dos nomes que me interessavam não se repetiriam nos dias em que eu me encontrava em São Paulo: Bruno Dumont, Marco Bellocchio, Naomi Kawase, Jafar Panahi e Hong Sang Soo – nomes que, acredito eu, não têm tanta chance de chegar ao mercado comercial. Também é verdade que abri mão de um Nanni Moretti, o elogiadíssimo Habemus Papam (2011), na certeza de que ele estreará no circuito (alternativo) no ano que vem. Pelo menos assim espero. Só me arrependo de não ter assistido à Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), de Werner Herzog. Não estou tão certo de que ele será exibido regularmente – ainda por cima em 3D.

Terra de um Sonho Distante (1963), de Elia Kazan (EUA) - o filme mais pessoal de Kazan, aquele que lhe tomou anos de preparação e coragem (reputação também) pra ser realizado. Apesar de ser um tanto desigual (com altos e baixos), são os bons momentos que fazem jus a sua fama. Como de costume nas produções de Kazan, as interpretações são impecáveis. A fotografia em preto e branco é essencial para dar a dimensão da dificuldade das vidas retratadas. Há tempos que o filme andava sumido, encontrou o lugar certo para ser projetado: na tela imensa do CINESESC.

Um Rosto na Multidão (1957), de Elia Kazan (EUA) - obra-prima surpreendente. Mesmo sabendo que Kazan era incapaz de realizar um filme irrelevante, não é possível adivinhar o rumo que ele adota para a narrativa. Começa morno, relativamente alegre e só aos poucos vai assumindo ares sombrios, deploráveis. Assim como já fizera em Viva Zapata! (1952), Kazan constrói a trajetória de uma marionete. Do longínquo México rural do início do século 20 em Zapata, diretamente para o cerne dos EUA em meados da década de 50 em Um Rosto. A melhor ferramenta que o mundo desenvolveria no século 20 para difundir (ou melhor, vender) uma ideia: a televisão. Ela transformaria a campanha de John F. Kennedy três anos após a realização deste filme – sem conotação negativa neste caso. Fiquei surpreso de constatar como o pensamento crítico já questionava, desde seus primórdios, o modo como ela poderia ser (mal) empregada – um dos melhores exemplos, diga-se de passagem. Minha reação súbita, uma vez terminada a sessão, deve ter sido a mesma de todos que já viram o filme: quem é esse tal de Andy Griffith?

Amanhã Nunca Mais (2011), de Tadeu Jungle (BRASIL) - embora eu concorde que o filme lembre Depois de Horas (1985), de Martin Scorsese, estou certo de que essa comparação prejudica (e muito) a sua apreciação. Em suma, o filme de Scorsese funciona e o de Jungle não funciona. O vilão da estória é a cidade de São Paulo e seus tipos estranhos; Lázaro Ramos segura o filme à duras penas – inacreditavelmente, o personagem passa por maus bocados por causa de um (maldito) bolo de aniversário. A busca do protagonista de Scorsese é abstrata, intangível – a imaginação do público trabalha a favor do filme, não contra ele.

Girimunho (2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr. (BRASIL) - o filme que representou o Brasil na seção Horizontes do Festival de Veneza deste ano. O começo é muito bom, muito interessante, porém tive dificuldades para “entrar” no filme. Confesso que estava bastante cansado às 22h30, depois de três sessões seguidas. Merece uma segunda conferida. Apesar de tudo, minha referência nesse tipo de narrativa ainda permanece sendo O Grão (2007), de Petrus Cariry.

Periferic (2011), de Bogdan George Apetri (ROMÊNIA) - eu sou dos que se maravilharam pela safra recente de filmes vindos da Romênia. Alguns dos meus textos mais antigos comprovam isso. A estória desse longa-metragem é de Cristian Mungiu, diretor do aclamado 4 meses, 3 semanas e 2 dias (2007). Será que o sucesso dessa nova onda romena estava restrito à abordagem deletéria do comunismo, dos anos sob o regime ditatorial de Nicolau Ciaucesco? O filme está longe de ser ruim, mas carece do diferencial que projetou os seus antecessores no mercado internacional. O estilo dos irmãos Dardenne é que dá as cartas (como nos outros exemplares da safra).

segunda-feira, novembro 14, 2011

Paradjanov, o magnífico




Reproduzo abaixo o texto que abriu a exposição Paradjanov, o magnífico no MIS de São Paulo durante a 35a Mostra de Cinema. As fotos acima foram (mal) tiradas por mim.

A liberdade criativa de um artista

Sergei Paradjanov nasce em 9 de janeiro de 1924, filho de armênios, em Tiflis, hoje Tbilisi, na Georgia. Estudou direção para cinema na TGIK (Instituto Cinematográfico do governo, em Moscou). Seus primeiros filmes rodados nos estúdios de Aleksander Dovzhenko têm a marca da estética do realismo socialista, sendo rejeitados posteriormente pelo diretor como “lixo”.

Sua obra-prima, A Cor da Romã (Sayat Nova, 1968), retrata a vida do poeta armênio Sayat Nova. A sequência de abertura do filme ressoa a própria vida do cineasta: “Eu sou o homem cuja vida e alma são tortura”.

Acusado de homossexual e com uma abordagem pouco ortodoxa do cinema, Paradjanov não é bem visto pelos oficiais soviéticos. Durante 15 anos – de 1968 a 1983 – não roda um único filme e é preso duas vezes. Os anos passados nos campos de trabalho soviético são os mais negros de sua vida.

Ainda assim, seu espírito criativo não é sufocado; pelo contrário, encontra as mais vibrantes formas de expressão por meio de colagens, desenhos e bonecas. Um dia, ele pronuncia uma frase lapidar: “Não me deixaram filmar, então comecei a fazer colagens. A colagem é um filme comprimido.” Nas obras plásticas, ele encontra uma liberdade que lhe é recusada no cinema, fortemente submetido ao controle oficial.

Suas colagens e objetos possuem ainda outro valor: eles conservam o tempo em que foram criados, são o eco de inúmeros eventos históricos de meados do século 20. E descrevem a história de um país que não existe mais: a União Soviética.

Da prisão, entre outras obras, o artista envia a colagem A Mona Lisa que chora, acrescentando uma pequena nota: “Se eu perecer no calabouço, a Mona Lisa chorará por mim”. No último ano de sua vida, ele ainda evocaria a obra de Leonardo da Vinci na série de colagens Alguns episódios na vida de Mona Lisa.

Após inúmeras intervenções de intelectuais, Paradjanov é finalmente liberado pelas autoridades soviéticas. Permanece, contudo, na lista negra dos oficiais, e apenas retoma sua carreira no cinema em meados dos anos 1980.

Como seu amigo Andrei Tarkovski, ele morre de câncer nos pulmões, em 21 de julho de 1990. Em 1991, o Museu Sergei Paradjanov é aberto em Yerevan. Ironicamente, sua casa na amada Tbilisi foi destruída. “Um profeta nunca é desonrado, exceto em sua terra e sua própria casa...”.

Segue abaixo um breve comentário dos três filmes de Paradjanov que eu vi na Mostra deste ano.

O Primeiro Rapaz (1959), de Sergei Paradjanov (RÚSSIA) - um produto típico da Guerra Fria. A bipolaridade EUA x URSS não se limitava apenas ao âmbito militar, político, tecnológico, econômico e social, havia a exploração ideológica (cultural), muito bem empregada pelos norte-americanos, que facilitou a difusão do american way of life no mundo inteiro – o cinema e a música sempre foram os seus principais alicerces. Embora os russos também dispusessem dessa “arma” pra divulgar o comunismo, alguém seria capaz de imaginar o que daria um musical soviético? Leve, inocente, solar e divertido, O Primeiro Rapaz é o oposto de tudo aquilo que fez a fama do cinema russo – o engajamento social, o Estado onipresente e os temas sombrios. Ele segue a risca o modelo do musical norte-americano, com destaque para a música e as locações (o toque autêntico da produção).

A Cor da Romã (1968), de Sergei Paradjanov (RÚSSIA/ARMÊNIA) - confesso que fico um tanto aliviado ao constatar nas resenhas, críticas e análises a respeito do filme a mesma dificuldade que eu encontrei para tentar decifrar o significado das imagens sugeridas por Paradjanov para representar a vida do poeta Sayat Nova. Não é uma tarefa fácil. Como bem apontou Luiz Carlos Oliveira Jr. “O filme não revela o olhar de alguém que sai do nosso tempo e aporta à Idade Média com uma câmera de cinema. Ele sugere, antes, como seria se alguém da Idade Média tivesse uma câmera de cinema”. Ela carrega consigo um aspecto primitivo/rudimentar impactante - nem por isso menos relevante. O efeito é impressionante, somos literalmente transportados para outra época. A experiência sem igual estabelece uma questão: pra repeti-la, só assistindo a outro filme de Paradjanov.

A Lenda da Fortaleza Suram (1986), de Sergei Paradjanov (RÚSSIA) - o fato de eu ter assistido A Cor da Romã antes me permitiu que eu chegasse à sessão “preparado”. Eu estava menos interessado em “entender” os simbolismos, alegorias, lendas e abstrações e mais concentrado no poder enigmático que as imagens de Paradjanov exercem sobre nós. Era como se eu estivesse vendo A Cor da Romã pela segunda vez. É o filme que Paradjanov dirigiu imediatamente após A Cor da Romã, depois de uma longa passagem pela prisão – foram mais de 15 anos de reclusão. As cores e locações, como de hábito, são excepcionais.

quarta-feira, novembro 09, 2011

Cakoff, a Mostra, a cinefilia e Paradjanov



“... Se eu ainda tenho energia é porque cada filme que vejo me acrescenta alguma coisa, eu sinto que posso continuar sendo útil. E eu quero propagar essas ideias. Acho que a essência da democracia é isso. É um exercício para nunca se ser egoísta. Também faz parte da minha vida de repórter, de jornalista de um tempo em que havia ditadura militar e tudo o que você podia escrever era como um ato de resistência. Poder passar nas entrelinhas alguma mensagem já era uma vitória, com toda a censura que existia nas redações.”

“O cinema constrói muito da nossa matéria inconsciente. A coisa mais forte, que eu valorizo muito, e a Mostra sempre traz, são os filmes antigos restaurados. É o registro do passado, uma forma de respeitar as gerações anteriores. O crítico precisa ser mais tolerante e generoso. Deixar o julgamento para outras pessoas. Deve dizer quem é o autor, em que circunstância o filme foi feito e do que se trata. A avaliação fica por conta de cada um. Resumindo: não acho que exista um só filme que faça a nossa cabeça. São muitos e esse aprendizado é infinito.”

Leon Cakoff, Os Filmes da Minha Vida

Eu já havia me programado para passar uma semana em São Paulo, por ocasião da Mostra, quando a notícia do falecimento de Cakoff foi divulgada. Embora eu nunca tenha trocado uma palavra sequer com ele (oportunidades não me faltaram nos intervalos das sessões das Mostras), cultivo, bem como uma legião numerosa de cinéfilos, um respeito e admiração pelo idealizador do maior evento cultural da capital paulista: a Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, que este ano completou 35 anos sob sua responsabilidade e curadoria.

Meu interesse pelo cinema defendido e difundido por Cakoff só começou a partir de 1995, quando residi em São Paulo por um ano – essa vivência na capital foi fundamental para estabelecer meu gosto, minhas preferências e prioridades cinematográficas. Minha infância e adolescência em São José dos Campos nos anos 80 não foram muito diferentes das dos meus colegas da mesma geração: Sessão da Tarde, Tela Quente e muito VHS. Cinema (de rua, ainda) era programa família de final de semana. Quem dava as cartas eram as produções assinadas por Spielberg, Lucas e Zemeckis, as franquias recém formatadas dos filmes de terror juvenil (Sexta-feira 13, A Hora do Espanto, A Hora do Pesadelo), os filmes de ação (Top Gun – Ases Indomáveis, Duro de Matar, Máquina Mortífera) e as ficções científicas (O Predador, O Exterminador do Futuro). Antes de chegar a São Paulo minhas referências cinéfilas mais arrojadas eram os dramas indicados ao Oscar: eles representavam os verdadeiros bons filmes, os ditos “filmes relevantes”.

Ainda hoje me recordo da minha primeira sessão no Espaço Unibanco da Augusta, em 1995, assistindo ao vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1994: Antes da Chuva, do macedônio Milcho Manchevski. O filme havia sido a vedete do público na edição da Mostra de 94 (Prêmio do Público – Melhor Filme de Ficção Internacional da Mostra de 1994). Deixei a sala estupefato. Subi a Rua Augusta rumo ao metrô redesenhando todo o filme na minha cabeça. Na minha ignorância, eu não concebia que um filme de tamanha qualidade pudesse ser produzido na Macedônia. Foi a primeira vez que um filme em língua estrangeira (como se o inglês não fosse!) me despertava a atenção – desconsiderando, naturalmente, o vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro de 1990: o aclamado e emotivo Cinema Paradiso, do italiano Giuseppe Tornatore. O drama daqueles macedônios era tão verdadeiro, intenso e envolvente que a língua, a ausência de astros e o abismo cultural que nos separa não foram capazes de me desmotivar a segui-los. Na verdade, aquela sessão representou pra mim uma quebra de preconceito, abrindo-me as portas para um exercício de cinefilia mais apurado, refinado e seletivo.

Coincidentemente no ano de 1995, o mundo inteiro celebrava o centenário do cinema. Os jornais impressos e as revistas especializadas publicavam listas e mais listas dos filmes mais importantes da história (posteriormente, até revistas não especializadas elaborariam as suas listas). A Folha de S.Paulo publicou um caderno especial (volumoso) com os 10 filmes mais importantes segundo 100 críticos de cinema de todo o mundo. O caderno não só destinava uma página para cada um dos dez melhores filmes como listava os dez filmes selecionados por cada crítico. Eu cansei de consultar as listas individuais a procura de algum filme que eu já tivesse visto que não fosse de Charles Chaplin. Embora eu conhecesse muito dos filmes relacionados por nome, ainda não havia visto qualquer um deles.

A minha relação com a crítica também se estabeleceu a partir desse momento: Inácio Araújo, Luiz Carlos Merten, Luis Zanin Oricchio, José Geraldo Couto, Cássio Starling Carlos, Paulo Santos Lima (e eventualmente outros colaboradores da Folha de S.Paulo, como Leon Cakoff e Walter Salles). A internet levaria mais alguns anos para consolidar-se, facilitando o acesso aos textos do crítico norte-americano do jornal Chicago Sun-Times, Roger Ebert – autor de uma das frases que me vem à cabeça sempre que alguém me confessa que desconhece um dos clássicos do cinema mundial (frequentemente se aplica a mim mesmo), “If you do not know his work, I envy you, because you have some of your most sublime movigoing experiences ahead of you.”

A introdução acabou saindo maior do que eu havia planejado. Nem eu imaginava que haveria tanta coisa pra ser colocada em um texto – e olha que ele poderia ser maior ainda. Enfim, escrevo esse post depois da Mostra deste ano tentando prestar uma homenagem, ainda que singela, ao trabalho do Cakoff – afinal, meu “batismo” (e de praticamente todo cinéfilo no Brasil) se deu por meio de uma de suas escolhas. Coincidentemente, uma das retrospectivas deste ano foi a do armênio Sergei Paradjanov, cujos filmes eu desconhecia - até então, ouvira a respeito de A Cor da Romã (1968), lançado recentemente em DVD pela Lume Filmes. A Mostra (ela novamente!) me presenteou com as projeções em 35 mm de O Primeiro Rapaz (1959) e A Lenda da Fortaleza Suram (1986) e em digital do curta Hagop Hovnatanian (1967) e A Cor da Romã. Tivesse meu tempo em São Paulo sido mais extenso, teria me programado para assistir a todos os filmes de Paradjanov. Eu sabia que outra oportunidade como esta seria improvável, pra não dizer impossível.

A escolha dos trechos que abrem este post não foi nem um pouco arbitrária; a meu ver, eles representam bem o espírito humano, contestatório, resistente e determinado que nortearam os esforços de Cakoff pra viabilizar a Mostra desde sua primeira edição (no livro Os Filmes da Minha Vida ele menciona, orgulhoso, inúmeras situações dignas de registro em que não fosse por sua persistência, ousadia e coragem, fica claro que o evento não teria chegado muito longe). O que mais me chama a atenção nesses trechos selecionados (em especial o primeiro) é que, curiosamente, eles dialogam perfeitamente com a obra/vida de Paradjanov: censura, ato de resistência, ditadura militar (no universo do armênio seriam representadas pelas autoridades soviéticas). Ambos lutaram, cada um a sua maneira e se valendo do talento e das habilidades que lhe foram conferidos – suas verdadeiras “armas” -, para que seus trabalhos fossem compreendidos, difundidos e apreciados. O segundo trecho parece uma encomenda póstuma de Paradjanov a Cakoff. Não estou certo de que Cakoff, que também era armênio, se orgulharia dessas aproximações, mas tampouco acredito que ele se incomodaria.

Pra terminar: os próximos posts serão dedicados a Paradjanov e aos filmes vistos na Mostra deste ano.

Salve Cakoff (e a Mostra)!