quinta-feira, junho 30, 2011

No Silêncio da Noite (Nicholas Ray, 1950)

Toda e qualquer resenha ou crítica feita ao filme No Silêncio da Noite que eu li ao longo dos anos, sempre deu uma ênfase desmedida à locação na qual o filme foi rodado. Isso sempre me chamou muito a atenção: o que esse espaço cênico teria de tão extraordinário pra despertar tanto o olhar das pessoas? Como poderia um filme que se desenrola dentro de um “condomínio”, sobretudo no interior do apartamento de Dixon Steele (Humphrey Bogart), ser lembrado, dentre outros trunfos, por sua locação? Só assistindo pra entender.

Roger Ebert começa sua resenha (como parte da série Great Movies), escrita em 13 de agosto de 2009, da seguinte forma:

The courtyard of the Hollywood building occupied by Humphrey Bogart in “In a Lonely Place”(1950) is one of the most evocative spaces I’ve seen in a movie. Small apartments are lined up around a Spanish-style courtyard with a fountain. Each flat is occupied by a single person. If you look across from your window, you can see into the life of your neighbor.

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Photographed with masterful economy by Burnett Guffey (“Knock on Any Door”, “Bonnie and Clyde”), it understands space and uses the apartments across the courtyard to visualize the emotional relationship between Dixon and Laurel (Gloria Grahame). Visible to each other, dependant on each other, they never officialy move in together but remain enclosed, and no matter what they say, apart. Notice the way Guffey focuses light on Bogart’s eyes during a frightening speech when he imagines how Mildred was murdered.



Plano: a luz de Burnett Guffey no rosto de Humphrey Bogart (Dixon Steele) conforme comentário de Rogert Ebert (acima)
 

Contra-Plano: a versão de Dixon Steele (Humphrey Bogart) a respeito do assassinato que lhe é atribuído é tão enfática, que incita seus ouvintes a praticá-lo
 
Além dos adjetivos muito bem empregados por Ebert há dois detalhes - sendo um deles um tanto quanto sórdido - que ajudam a entender a fascinação que este espaço cênico desperta em seus espectadores (se considerarmos que de alguma forma eles conseguiram ser incorporados a aura do filme): 1) o apartamento do roteirista auto destrutivo, alcoólatra e com tendências violentas (Humphrey Bogart como Dixon Steele ou Dixon Steele como Humphrey Bogart?) pertencia a Nicholas Ray e 2) Gloria Grahame se divorciou do cineasta no meio das filmagens, quando ele a encontrou na cama com o seu filho de outro casamento, Tony, então com 13 anos – ela e o garoto foram casados de 1960 a 1974.

Como terá sido as filmagens em meio a tantos distúrbios emocionais? Cada qual contribuiu com a parte que lhe coube e deste furacão saiu esta obra-prima do cinema. Imperdível!

terça-feira, junho 28, 2011

Acaso (Krzysztof Kieslowski, 1981)


Todos os blogs relacionados ao lado são unanimes em considerar a atual safra cinematográfica de baixíssimo nível - pelo menos a safra dos filmes que chegam à capital. Se na capital do estado mais rico do Brasil o negócio está feio, imagina no interior. Em Ribeirão, que pode ser considerado um dos expoentes do interior paulista, cada filme lançado ultimamente – apenas blockbusters! - toma no mínimo quatro salas: dublado, dublado 3D, legendado e legendado 3D. São ao todo 27 salas de cinema: Cinemark 8, UCI 11 e Cinépolis 8. Como, infelizmente, todos se programam para passar os mesmos filmes (salvo algumas exceções) não sobra muita coisa fora do circuito ultra-comercial. É verdade, existe o Cauim, porém eu o desconsiderei propositalmente já que o mesmo não passa por um momento digno de nota. Sendo assim, sobram os DVDs (que anda melhor do que nunca) e a programação do SESC.

Calhou de a programação do SESC no último mês ser dedicada ao cineasta Krzysztof Kieslowski, com atenção especial para os seus longas menos conhecidos que vão Além da Trilogia das Cores (esse foi o nome dado a programação numa clara referência aos seus três últimos filmes: A Liberdade é Azul (1991), A Igualdade é Branca (1994) e A Fraternidade é Vermelha (1994) - depois dessa trilogia seu nome rodou o mundo e seus filmes anteriores ganharam maior visibilidade).

Assisti ao belíssimo Acaso (1981), que recentemente ganhou uma edição caprichada em DVD (ele de novo!) pela Videofilmes. Que bela descoberta! Conforme consta no encarte da edição, o filme acompanha Witek (Boguslaw Linda, numa complexa caracterização), um jovem estudante de medicina que, após a morte do seu pai, corre para tentar alcançar o último trem para Varsóvia. A partir desse evento, Kieslowski propõe três desfechos para a história de Witek: como membro do Partido Comunista, como dissidente político e ativista comunitário, ou como pai de família burguês. Segundo Kieslowski, o cidadão polonês do início dos anos 80 só dispunha de duas opções de vida: ou se rendia ao comunismo ou vivia uma vida condenada ao limbo. Quem detinha o oxigênio para a sobrevivência do cidadão era o regime, fora dele só respirava quem optava pelo retiro espiritual – e adotava o catolicismo por conseqüência. Uma vida materialista estava fadada ao fracasso (a maneira como Kieslowski resolve essa questão é sublime, o plano final é de cortar o fôlego - curto e grosso). As cenas memoráveis se sucedem e duas em especial me chamaram muito a atenção: 1. a lembrança do momento do nascimento de Witek (uma das primeiras cenas do filme, repetida em outras ocasiões) em que o sangue que realmente importa é o de uma pessoa arrastada pelos corredores de um hospital (o contexto histórico é estabelecido) e 2. a famosa cena da maça (filosofia, política e religião magnificamente representadas no mesmo plano).

Os três desfechos, apesar de serem apresentados em seqüência, se entrelaçam ao longo da projeção. A atenção para os detalhes, o cuidado em apresentar ao espectador cada evento no momento certo, valorizam o trabalho de Kieslowski sobremaneira. Uma ideia relativamente simples (o livro A Christmas Carol (1843), de Charles Dickens, já trabalhava uma variação desse mote) executada de maneira criativa, inteligente e competente ganha contornos políticos, filosóficos e religiosos. Temas caros a obra do diretor como o acaso, o destino, a coincidência e as escolhas individuais são bem explorados e muito bem resolvidos. O filme ressoa na nossa cabeça por muito tempo depois de visto.

Hoje será a vez de A Dupla Vida de Veronique (1991) do mesmo Kieslowski, depois um ciclo de quatro filmes de John Cassavetes. Salve o SESC!

segunda-feira, junho 20, 2011

John Ford


Já que o post anterior foi basicamente sobre John Ford, segue um perfil (profile) bem elaborado do diretor pelo crítico Richard A. Blake (integra o livro After Image, de autoria do próprio Blake).

By Richard A. Blake

John Ford has long been recognized as the most cinematic of America’s great directors. He had the eye of a painter and preferred to move his narrative forward in pictures rather than with words. These magnificent images, so filled with sacramental meaning, can be seductive, however. Their very beauty makes one hesitate to go beyond their surfaces to their spiritual meanings and to the imagination that created them. What gives Ford’s images their unique power is a spiritual vision that remains constant through five decades of filmmaking and over 120 films, and much of that vision comes from his Catholic background.

Ford’s Catholicism, the source of much of his strenght, also imposed some limitations on his perspective. His Catholic understanding of Church and family gave him an extraordinary sensitivity to the value of communion in human affairs. This may have been a liability in a world grown more accustomed to social fragmentation in the years since Ford’s career ended. To modern eyes, his films often appear naive and simplistic. In his world, good people acting in concert can resolve their differences, but as experience has shown in the last three decades this is not always the case. For John Ford, strong women found the root of their strenght in their families, and as a result he provides little room for a woman who is both strong and independent outside the home. For Ford, at least until his final years, questioning the policies of the United States government was as sacrilegious as questioning the authority of the hierarchy of the Church, and again, through the years the nation and the Church have learned the importance of public debate on complex issues.

To try to excuse Ford’s limitations as “being a child of his time” strikes me as a bit condescending. More profitable, I believe, is a critical strategy that appreciates the life experiences that colored Ford’s imagination and led him to view the world as he did. One need not endorse his viewpoint on each issue in order to respect him as an artist of extraordinary integrity. Unlike many lesser filmmakers of his day, he did have a coherent vision and was thoroughly honest in giving his audience a series of film that were true to that vision.

Captain Nathan Brittles, in She Wore a Yellow Ribbon (Legião Invencível, 1948), provides a perfect concluding remark for his study of John Ford: “Don’t apologize. It’s a sign of weakness.” Ford was not a weak man, and he has no need to apologize. He was a strong man, an artist, and a Catholic.

sexta-feira, junho 17, 2011

O Delator, Domínio de Bárbaros e Terra Bruta



The connection between religious and imagination, which influences perception and behavior, is a fascinating area of inquiry. Even in post–Christian America – for those willing to accept the term – religious imaginations in their many diverse forms continue to shape the lines of discourse and give rise to prejudice and conflict. Understanding the ways religion influences the imagination may at long last help people of conflicting faiths and those who claim no faith at all, to appreciate their differences. The movies can provide a fruitful, if modest, contribuition to that enterprise.

Richard A. Blake

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Há dois posts atrás, tratando de Homens e Deuses (Xavier Beauvois, 2010), eu comentava sobre o cristianismo de Beauvois (ou o que restou do cristianismo no mundo contemporâneo, como abordá-lo hoje em dia?) quando comparado à visão católica de mundo de Bresson, Dreyer e Bergman retratada em seus respectivos filmes. Ao assistir Terra Bruta (1961), Domínio de Bárbaros (1947), e O delator (1935), todos de John Ford, o post me veio à cabeça novamente - como eu já imaginava que seria.

O cinema norte americano também foi capaz de nos brindar com grandes cineastas que filtravam seus dramas por meio das lentes do cristianismo. Numa vertente mais narrativa e menos contemplativa (diferente do cinema europeu, menos narrativo e mais contemplativo), resultando, normalmente, em formas menos diretas de retratação, também é possível encontrar indícios de sua prática em produções de cunho mais comercial – John Ford, Alfred Hitchcock, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Frank Capra e Brian de Palma, pra ficar em alguns nomes mais representativos. É curioso notar que alguns desses autores, não raro, negavam essa influência sobre seus trabalhos. Seja pela escola, pela educação, pelos pais ou pelo meio, seus filmes não desmentem: o catolicismo configura o prisma sob o qual cada um desses mundos – entenda-se, filmes - chegou até nós.

Quem me faz retomar esse assunto aqui é o cineasta John Ford e os seus três filmes listados acima. Tratando-se de John Ford, é praticamente impossível conversar a respeito de um de seus filmes sem mencionar seus outros. Ford se nutria de um imaginário cristão (mais precisamente católico) para compor o caráter de seus personagens e as vastas planícies de seus filmes. Na maioria das vezes, a presença do cristianismo se dava de forma sutil, discreta, quase imperceptível (não é o caso de Domínio de Bárbaros). Porém, o fato de não haver uma menção explícita ao catolicismo, em algumas de suas produções, não significa que ele esteja ausente. Para enxergarmos a influência do cristianismo em sua obra, quando este não se apresenta de forma tão evidente, devemos treinar o olhar para juntar as peças desse quebra-cabeça. Quando se pensa em John Ford uma coisa é certa: seus filmes enriquecem quando analisados em conjunto. A coerência de sua obra permite que encontremos respostas para nossas perguntas em outras produções com a sua assinatura. Isto é uma das bases para se entender a politique des auters. Não menos freqüente, alguns filmes operam como se fossem continuação de outros. Um raro exemplo de artista (um dos maiores do século XX, produziu dos anos 10 aos 60) que deixou uma marca indelével na história do cinema. Seus filmes registram o amadurecimento e a evolução de um homem como ser humano e artista.

Sua respeitada reputação foi conquistada por meio de uma notável consistência de temas que refletem a sua percepção do dilema católico: uma permanente tensão entre a vida material que levamos e a vida futura de perfeição espiritual que almejamos. Seus personagens se esforçam para deixar este "vale de lágrimas", onde se encontram cercados por todos os tipos de perigo, e aguardam a entrada num porto seguro idealizado de felicidade, reconhecido como o seu verdadeiro lar – “a casa”. A viagem envolve uma luta contra os poderes das trevas deste mundo, no entanto, como o universo material de Ford é sacramental, a presença de Deus e a salvação estão sempre a trabalhar no aqui e agora. Como muitos pensadores e artistas católicos, Ford vê a viagem não como uma aventura solitária, mas como algo que se passa dentro de uma comunidade constituída por uma enorme variedade de indivíduos. O centro da ação de seus filmes, quase sempre, gira em torno do deslocamento de um grupo de pessoas: passageiros de uma diligência; uma tropa de cavalaria; um vagão de trem; a tripulação de um navio; um grupo de fiéis, de um lugar perigoso para outro de segurança relativa. A expedição envolve um perigo extremo, mas manter-se no ponto de partida é uma opção impensável: na ausência de um porto seguro, resta ao grupo apenas a alternativa de seguir sempre adiante.

A sobrevivência do grupo depende da sua união e da liderança de um herói solitário. O isolamento da comunidade ou a excomunhão traz a morte, literalmente ou metaforicamente. A relação entre ambos é recíproca, uma vez que a comunidade depende do indivíduo para a sua sobrevivência. Muitas vezes o herói solitário deve sacrificar seus próprios interesses para o bem do grupo e essa atitude, freqüentemente, significa conduzir essa comunidade ao seu destino escolhido ou "a casa". Ford envolve suas histórias com cerimonial e mito; freqüentemente, os líderes da comunidade atingem o status de santos, cuja bravura maior-que-a-vida, como lembrada e recontada, é muito mais importante do que suas façanhas reais, ou historicamente comprovadas, para a identidade do grupo. Para John Ford, a vida na Terra não passa de uma Viagem de regresso a eterna “casa”.

Agora aos filmes propriamente ditos:

O Delator – o filme envelheceu um pouco. A recriação em estúdio confisca parte da urgência do assunto (a retratação do conflito entre o IRA e o governo Britânico). O dilema moral do protagonista ganha contornos cristãos e afasta o discurso político da história. O grandalhão Victor McLaglen ganha o público com seu carisma. Duas décadas depois Elia Kazan faria o filme definitivo da delação, O Sindicato dos Ladrões (1954) – contando com a presença de um padre (Karl Malden) para estabelecer a crise de consciência.

Domínio de Bárbaros – conforme anuncia o narrador no início do filme: “Este é um filme atemporal. A história é real. É também uma história muito antiga, contada pela primeira vez na Bíblia. É atemporal e atual e continua acontecendo em muitas partes do mundo. Seu cenário é fictício. Este é um mero estado há 1.600 km ao norte ou ao sul do Equador. Quem sabe?” O que diferencia esta história das outras contadas desde a sua primeira vez é a fotografia de Gabriel Figueroa. As imagens são poderosas e contribuem para perpetuar o imaginário cristão pregado por Ford. Catolicismo ao extremo numa releitura da história bíblica.

Terra Bruta – um filme de Ford considerado menor, o que é uma pena. A verdade é que ele não tem nada de pequeno, muito pelo contrário. É belíssimo o confronto moral que ele estabelece entre os brancos resgatados da dominação indígena (Linda Cristal e David Kent) e a comunidade que os esperava para reintegrá-los aos seus costumes. O homem e seus preconceitos. Uma pena que a cena do baile não se desenrole sem diálogos como em O Leopardo (1965), de Luchino Visconti. Ainda assim, ela retém sua força no discurso poderoso de James Stewart (roteiro do habitual colaborador de Ford, Frank S. Nugent). Pode ser visto como uma continuação de Rastros de Ódio (1956).