quinta-feira, outubro 31, 2013

37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - Parte 1

É uma pena que eu só tenha tido dois dias para desfrutar da programação da Mostra deste ano. A rigor, se eu considerar o final de semana no MIS, em companhia dos filmes de Kubrick, foram três dias. Passado os dias de vivência in loco, resta apenas a cobertura impressa e/ou eletrônica. Acompanhar o dia-a-dia do Evento nos diversos blogs e sites especializados é tão estimulante quanto frustrante. Estimulante porque o entusiasmo da cobertura contagia o leitor, ávido pela oportunidade de poder assistir aos títulos que mereceram uma análise; e frustrante porque a experiência não se limita apenas ao instante em que os olhos encontram a tela do cinema: existem as filas, os curtos intervalos que separam as sessões, os poucos momentos de reflexão devido ao corre-corre da programação, os trade-offs, as caminhadas, as refeições, etc. Enfim, pra quem gosta, é um prato cheio.

Meu primeiro dia foi bastante proveitoso, facilitado pela concentração atrativa de filmes em um único espaço, evitando que eu fizesse deslocamentos entre as sessões. Esses filmes estarão nesse post. No próximo post eu abordo o segundo dia, que me forçou a fazer escolhas difíceis, abrindo mão de boas promessas. Enfim, vamos ao que interessa.


Providence (1977), Alain Resnais

O rapaz responsável pela legendagem quase melou a festa dos presentes na sessão. Levou um tempo para que ele sincronizasse as falas às imagens correspondentes – dando margem para a distração. Em um filme de Resnais, que demanda atenção redobrada, isso pode comprometer a experiência. Prejudicou, mas não foi capaz de confiscar o encanto proporcionado pelos últimos 25 minutos de projeção – quando o jogo de encenação, caro ao seu autor, é desnudado magnificamente sob a regência do pouco lembrado John Gielgud (um excelente ator normalmente mal aproveitado). A presença de Dirk Bogarde me trouxe lembranças do Despair (1978), de Rainer Werner Fassbinder, exibido há dois anos na mesma sala, sem a mesma leveza do filme de Resnais. Leva um tempo para que o espectador mergulhe no labiríntico pesadelo do escritor Clive Langham (John Gielgud), cheio de imagens e situações (aparentemente) desconexas. Assim que a ficha cai, sobressai-se o humor refinado de Resnais e a elegância costumeira da sua direção. O personagem do jogador de futebol é impagável. A fluidez narrativa do mestre francês, que fez do sonho e da memória a matéria prima do seu cinema, contrasta com o calculismo exacerbado de Christopher Nolan no elogiado Inception (2010).



Escudo de Palha (2013), Takeshi Miike

Os orientais sempre souberam extrair bons exemplares do cinema de gênero norte-americano. Este é um deles. A rigor, o filme não traz nada de novo – a escolta de um assassino em primeiro grau mobiliza a força armada (a fim de garantir o seu julgamento e integridade física), que luta contra uma oferta volumosa de dinheiro feita pelo milionário avô da vítima a quem se dispuser a matá-lo. O argumento tem sido comparado com o de O Preço de um Resgate (1996), de Ron Howard, mas eu diria que está mais para um híbrido deste com o ótimo Rota Suicida (1977), de Clint Eastwood. Takeshi Miike segura bem o ritmo do filme, investindo em situações que colocam à prova a integridade moral dos responsáveis pela custódia do homicida.



A Rotina Tem Seu Encanto (1962), Yasujirô Ozu

Diz-se deste exemplar de Ozu que se trata de uma refilmagem de Pai e Filha (1949). De fato, o ponto de partida de ambos é o mesmo: pai (viúvo) e filha dividem o mesmo espaço, até que começam a ser “pressionados” por parentes e amigos a encontrar um pretendente para garantir o matrimônio da menina. No primeiro exemplar, a narrativa alterna melhor entre a rotina de ambos, fazendo com que dividam proporcionalmente o tempo de cena e o protagonismo do filme. No canto do cisne de Ozu, a rotina do pai é mais bem investigada, se valendo, inclusive, de uma inclinação cômica do relato, muito bem explorada pelo diretor para atenuar os transtornos inerentes à velhice. Mas não se engane: junto ao riso despretensioso das situações abordadas paira um tom de melancolia que insiste em permanecer conosco muito depois de findada a sessão.



A Garota do 14 de Julho (2013), Antonin Peretjatko

Eu desconhecia por completo a proposta do filme, mas fui vê-lo influenciado pelas sugestões de blogs que fariam a cobertura. No final das contas, descobri que a melhor alternativa para terminar a jornada da Mostra é uma comédia. O diretor apresentou o filme na abertura da sessão alertando o público para o caráter franco-francese (palavras dele) da produção, e mostrou-se entusiasmado com a oportunidade de presenciar a reação da plateia a um produto de universo restrito. Peretjatko retoma o tom libertário que caracterizou as primeiras produções da nouvelle vague, influenciado sobretudo por Godard (O Demônio das Onze Horas), para esculhambar o politicamente correto e o legado político e financeiro do ex-presidente Nicolas Sarkozy. Como bem pontuou Bruno Cursini em seu breve texto para o filme na Revista Interlúdio, Peretjatko “faz de seu primeiro filme algo livre, excitante, de uma inventividade anárquica bastante ingênua, ora dando vazão a uma selvageria satírica debochada, ora brincando ingenuamente com a linguagem cinematográfica”. 

terça-feira, outubro 22, 2013

Stanley Kubrick na 37ª Mostra

Por uma feliz coincidência, o show do Black Sabbath me levou a São Paulo no mesmo final de semana em que a Exposição Stanley Kubrick começava no MIS, juntamente com a exibição de todos os seus filmes em versão restaurada -  incluindo os curtas do início de carreira, exceto o longa de estreia, Medo e Desejo (1953). A curadoria da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nesta 37ᵃ Edição, decidiu destacar o trabalho do diretor homenageando-o com essa preciosa programação além de promover o lançamento do livro, Conversas com Kubrick, do renomado crítico francês Michel Ciment.

A priori, minha ida a capital estava programada para o fim de semana passado, quando eu já havia negociado com a patroa a minha participação nos dois primeiros dias do aguardado Evento. Acabei sacrificando um pouco mais a paciência dela para estender a minha estadia por mais um final de semana (anterior à abertura), justificado pela oportunidade de assistir em primeira mão alguns dos filmes de Kubrick, sobretudo aquele que me faltava, Barry Lyndon (1975). A intensa procura por ingressos antecipados, contudo, me fez perder a exibição que eu mais ensejava ver, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968). Para compensar a perda, foi preciso uma sessão seguida de O Estranho Caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira, e Las Acacias (2011), de Pablo Giorgelli – sorte que a programação da capital me reservou essas duas preciosidades. Ainda rolou o Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón, a que devo voltar em outra ocasião – mas já adianto que gostei do filme.

Como a fila para a Exposição estava quilométrica e esta permanece em cartaz até 12 de janeiro de 2014, vou aguardar a poeira baixar para visitá-la (na companhia da esposa, de preferência, para ela entender melhor a razão do favor prestado). Em 2011, essa mesma Exposição estava de passagem por Paris, na Cinemateca Francesa, bem como eu. Visitei-a e prometi que voltaria a ela caso viesse ao Brasil. Pretendo cumprir a promessa. Na época, até postei uma mensagem com as fotos (meia boca) que eu consegui tirar.





Doutor Fantástico (1964)

Dr. Strangelove’s humor is generated by a basic comic principle: people trying to be funny are never as funny as people trying to be serious and failing.
Roger Ebert

Na primeira vez em que eu o vi, em meados da década de 90 (cópia VHS), o impacto proporcionado pelo absurdo da proposta foi tamanho que meu riso mal se manifestava, numa situação típica de quem sente vergonha alheia por um mico que outra pessoa está pagando. Um riso nervoso, cheio de remorso. Eu não estava preparado para ver um assunto sério tratado com tal grau de sarcasmo. Acho que foi a minha primeira experiência com um verdadeiro exemplar da comédia de humor negro. Inesquecível, pra dizer o mínimo. A sessão no MIS me proporcionou uma verdadeira catarse. Dei gargalhadas junto com o público sem nenhum constrangimento. O filme continua afiadíssimo (especialmente no que tange o discurso), repleto de interpretações magistrais. Normalmente, o enfoque das abordagens fica voltado para o desempenho triplo de Peter Sellers e seu memorável Dr. Strangelove - curiosamente, o personagem com o menor tempo de cena. Desta vez, minha atenção ficou toda voltada para George C. Scott e seu General Buck Turgidson, o mais anárquico de todos. Como bem observou Roger Ebert, “Scott´s work is hidden in plain view. His face here is so plastic and mobile it reminds you of Jerry Lewis or Jim Carrey (in completely different kinds of movies). Yet you don´t consciously notice his expressions because Scott sells them with the energy and conviction of his performance. He means what he says so urgently that the expressions accompany his dialogue instead of distracting from it”. Meu Kubrick preferido junto com 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Obra-prima absoluta.





Nascido para Matar (1987)

Dei uma segunda chance para um dos filmes de Kubrick que sempre me despertou pouco interesse. Nem a ocasião especial, com direito a cópia restaurada e toda a pompa da exibição, foi capaz de alterar a minha percepção. É um filme desigual, com uma primeira parte interessante e uma segunda parte decepcionante. Kubrick chegou tarde para dar o seu testemunho sobre a Guerra do Vietnã. O filme não chega aos pés dos seus outros exemplares que tiveram a guerra como objeto principal, Glória feita de sangue (1957) e Dr. Fantástico (1964). Muita estilização para pouco resultado.





Barry Lyndon (1975)

Os filmes históricos têm em comum com os filmes de ficção científica o fato de tentarmos recriar neles alguma coisa que não existe. E as descrições, que são as partes mais enfadonhas dos romances, não exigem, na tela, nenhum esforço do público, mas exigem muito dos cineastas!
Stanley Kubrick

Como eu já disse no início deste texto, Barry Lyndon era o único filme de Kubrick que me faltava. Hipercontrolado, longo e com um ritmo lento de condução. Tinha tudo para ser uma experiência pouco memorável, percepção essa que parece ter prevalecido na ocasião do seu lançamento. Por mais frio e distante que seja, acusação que sempre pautou a opinião dos seus detratores, é uma experiência que exige um tanto de paciência do espectador. Não cabe na tela pequena das TVs domésticas, cujas exibições estão sujeitas a constantes interrupções. Requer devoção absoluta. Um dos melhores Kubricks; muito mais do que “um filme de época”.

segunda-feira, outubro 14, 2013

Boa sorte, meu amor (Daniel Aragão, 2012)



Foi o texto de José Geraldo Couto em seu blog do IMS que me levou a Boa sorte, meu amor. Tivesse eu de escolher entre as diversas opções de sessões no Espaço Itaú do Frei Caneca sem a prévia consulta ao seu blog, minha predisposição dificilmente teria me levado a esse filme. Embora o texto de Zé Geraldo atribua à película uma impressão positiva, ele não deixa de apontar as fraquezas da proposta, “o filme ocasionalmente resvala, sobretudo em seu terço final, para um certo inchaço estético (distorções de luz e som, enquadramentos oblíquos, vertiginosos plongées) e para rupturas frontais com o realismo que, a meu ver, nem sempre se justificam. A tendência à alegoria corre o risco de afrouxar o impacto de uma narrativa contundente”. A oportuna comparação com O Som ao Redor (2012) foi o gatilho responsável por despertar o meu interesse, “Os bons filmes de uma safra costumam iluminar uns aos outros, nem que seja por contraste. Dessa perspectiva, O Som ao Redor e Boa sorte, meu amor são opostos que se complementam. Se o filme de Kléber Mendonça Filho é um prodígio de equilíbrio e sutileza, o de Daniel Aragão é “petulante, ambicioso, desgovernado”, como escreveu o jovem crítico Fábio Andrade na melhor críticaque li a respeito. É dessa desmesura que ele extrai sua força, ainda que exponha também suas fragilidades”.

Enfim, Boa sorte, meu amor é mais um filho legítimo da safra de filmes pernambucanos que se dispõe a tratar da herança que o passado remoto colonialista exerce sobre a vida urbana contemporânea. Daniel Aragão trabalha esse mote no cerne de uma relação amorosa, praticamente transpondo Romeu e Julieta para o inóspito agreste nordestino (com um final mais ameno). A “volta às origens”, que representa um episódio dentro da estrutura narrativa do próprio filme, escancara esse legado maldito reforçando a impossibilidade de subvertê-lo – depois de um desentendimento, Maria (Christiana Ubach) deixa Dirceu (Vinicius Zinn) e se refugia no interior, forçando-o a procurá-la; esse regresso repentino “às origens” levanta uma poeira indesejada há muito tempo assentada. Enquanto o romance de ambos se desenvolve sob as sombras dos arranha céus de Recife, protegidos pela impessoalidade das relações que caracterizam as aproximações urbanas contemporâneas, tudo vai bem - até então, aflora apenas os interesses convenientes à manutenção da ligação afetiva. Na hora do confronto com as tradições, em que as máscaras são obrigatoriamente deixadas de lado e a configuração das peças assumem outras perspectivas, todas as alternativas levam ao mesmo fim: o destino desses amantes já estava selado muito antes de eles aportarem no mundo.

sexta-feira, outubro 04, 2013

Miyamoto Musashi (Hiroshi Inagaki, 1954, 1955, 1956)


Eu estava disposto a escrever alguma coisa sobre o Elysium (2013), de Neill Blomkamp, mas calhei de ver a trilogia Musashi no mesmo final de semana e desisti - embora a recepção por parte da crítica tenha sido morna, minha impressão é mais positiva do que negativa, mas longe do encantamento proporcionado por Distrito 9. Eu desconhecia completamente a trilogia samurai, nome pela qual ela passou a ser conhecida, oportunamente recuperada pela Versátil Home Video. O cinema japonês anda em alta na distribuidora que não tardou a lançar o Portal do Inferno (1953), de Teinosuke Kinugasa, e cinco títulos do mestre Yasujiro Ozu (para o desgosto do cinéfilo, a Continental reinava absoluta nessa seara até então). Aos poucos, o cinema oriental ganha o destaque que lhe foi confiscado durante muito tempo. À medida que os títulos mais lembrados começam a apresentar sinais de esgotamento (inclusive alguns deles sendo laçados por mais de uma distribuidora), sobra espaço para os lançamentos com menor apelo comercial, nem por isso menos importantes. Quem é digno de uma bela revisão é o cinema chinês, recentemente lembrado pelo Filipe Furtado em uma lista pessoal de 100Filmes de Hong Kong.

A estrutura narrativa da trilogia assemelha-se à de um folhetim, com inúmeros personagens que vem e vão e reviravoltas que se sucedem aos montes, repletas de coincidências. À parte o aspecto cultural que distingue as duas produções, que vai além da dicotomia ocidente/oriente, a saga de Musashi guarda semelhanças com o recente Mistérios de Lisboa (2010), de Raoul Ruiz. A rigor, essa observação remonta às produções literárias de Eiji Yoshikawa e Camilo Castelo Branco cujos filmes em questão são adaptações. Ambas as produções, literárias e cinematográficas, criam fiéis caracterizações dos tipos que representam o japonês e o português, respectivamente. Sendo assim, não espanta que Mistérios de Lisboa seja irônico e debochado, enquanto Musashi opte pela rigidez e o respeito irrestrito às tradições (o papel da mulher é simbólico nesse sentido).

O eixo dramático concentra-se na trajetória do famoso espadachim, interpretado pelo inigualável Toshiro Mifune, e suas relações com o amigo desorientado Honiden Matahachi, a senhora interesseira Osugi e sua filha Akemi, os discípulos Joutaro e Iori e a apaixonada Otsu. O vai e vem de todos esses personagens é entrecortado pelos duelos que elevaram Musashi à condição de mito. O último deles, contra Kojiro Sasaki (Kôji Tsuruta) na ilha de Ganryûjima, é digno de antologia. A fotografia de Kazuo Yamada exerce um papel superlativo na produção, contribuindo definitivamente para fixar o memorável duelo na retina do espectador.

Um comentário do usuário foxfirebrand no IMDB, em junho de 2009, reforça a importância do filme como “peça de propaganda” para disseminar a cultura japonesa em pleno pós-guerra, quando o Japão se esforçava para reerguer-se depois da hecatombe proporcionada pelas duas bombas nucleares. “The importance of the Miyamo Musashi saga has been lost somewhat today, even in Japan. These were not just early high-quality color samurai movies, not just great films – they were a nationwide event, and a milestone in Japanese social evolution. The early 50s were a time of postwar healing, and there were unsettled questions about the national character. The Miyamoto Musashi saga used the past to dramatize issues of morality – and, even more important at the time, morale. Japan had no problem westernizing and living under the rules of law under terms imposed by victors in war – the knotty issue was, how much of the past do we keep alive in our daily thoughts and actions, and just how much of the real Japan, the one we remember, will our children and grandchildren inherit, once the aftermath of global war has subsided? Watch these films with such then-important issues in mind, and your experience will be deepened and enriched”.

Coincidentemente, um dos livros do Vicente Falconi que mantenho em casa, Gerenciamento pelas Diretrizes, começa com uma nota do próprio autor comparando as artes gerenciais às artes marciais. Ele abre o primeiro capítulo com nove mandamentos de Miyamoto Musashi, fundamentais para o exercício das artes (e, consequentemente, do bom gerenciamento):

1.      Não pense com desonestidade.
2.      O Caminho está no treinamento.
3.      Trave contato com todas as artes.
4.      Conheça o Caminho de todas as profissões.
5.      Aprenda a distinguir ganho de perda nos assuntos materiais.
6.      Desenvolva o julgamento intuitivo e a compreensão de tudo.
7.      Perceba as coisas que não podem ser vistas.
8.      Preste atenção até no que não tem importância.
9.      Não faça nada que de nada sirva.