sexta-feira, janeiro 31, 2014

O que eu vi de melhor em 2013 - nacionais

O Som ao Redor (Kléber Mendonça Filho, 2012) – o texto de Kléber Mendonça Filho na cobertura de Cannes para o filme Trabalhar Cansa (2011), no espaço que o próprio cultivou durante um bom tempo, o extinto Cinemascópio (cinemascopio.blog.uol.com.br), já antecipava boa parte das preocupações do diretor que se fariam presentes em O Som ao Redor um ano mais tarde – especialmente o que diz respeito ao flerte com o cinema de gênero. O projeto de curtas que Kléber já fomentava há pelo menos uma década foi estendido para o formato de longa-metragem com um “exercício bem conduzido em estabelecer uma crônica de tensos costumes, muitos deles possíveis de serem observados apenas no Brasil” (palavras do próprio Kléber). Mais do que prestar-se a um estudo sociológico das raízes do nosso coronelismo e suas implicações, o que permanece é a forma como Kléber constrói o mosaico de tipos e situações, investindo suas fichas na construção (cinematográfica) do clima sugestivo, sem se curvar à violência que o tema frequentemente costuma associar-se.

Boa Sorte, Meu Amor (Daniel Aragão, 2012) – mais um filho legítimo da safra de filmes pernambucanos que se dispõe a tratar da herança que o passado remoto colonialista exerce sobre a vida urbana contemporânea. O texto entusiasmado do José Geraldo Couto em seu blog no IMS faz uma aproximação interessante, “Os bons filmes de uma safra costumam iluminar uns aos outros, nem que seja por contraste. Dessa perspectiva, O Som ao Redor e Boa sorte, meu amor são opostos que se complementam. Se o filme de Kléber Mendonça Filho é um prodígio de equilíbrio e sutileza, o de Daniel Aragão é “petulante, ambicioso, desgovernado” (trecho da crítica de Fábio Andrade para a Revista Cinética). É dessa desmesura que ele extrai sua força, ainda que exponha também suas fragilidades”.

Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) – um musical brasileiro improvável ambientado em plena ditadura militar turbinado pelo espírito libertário e transformador dos Dzi Croquettes, símbolo do movimento de contracultura. A vertente política da produção restringe-se ao conteúdo dos números encenados pelo grupo Chão de Estrelas capitaneado por Clécio (o sempre excelente Irandhir Santos), seja na prosa ou no uso do corpo como instrumento de protesto, e ao personagem de Fininho (Jesuíta Barbosa) e sua involuntária filiação às forças armadas, fruto da pressão familiar e do status que a ocupação representava na ocasião. O filme decola mesmo ao registrar a rotina do grupo, o esforço do conjunto para veicular suas produções, a interação entre seus integrantes e o show de interpretação do elenco. Tem cú, tem cú, tem cú...

O que se move (Caetano Gotardo, 2012) – um verdadeiro achado em meio a tantas estreias de filmes nacionais. Pena que o filme não foi devidamente descoberto – esse, talvez, seja o problema de todos os longas listados neste post. Um tema difícil, a perda de um filho, tratado com uma sensibilidade ímpar em um formato um tanto quanto arriscado. O recurso da cantoria, que poderia resvalar para o piegas, ao contrário, confere uma carga emocional extraordinária para o drama das mães – três histórias distintas concernindo o mesmo tema. Na terceira e última parte, quando o dispositivo já está prestes a mostrar o limite do seu alcance, correndo o risco de desgastar-se pela previsibilidade, o efeito consolador que ele assume desarma qualquer tentativa de julgamento que se faça. O encadeamento das histórias, que não surtiria o mesmo efeito caso estivesse em outra ordem, é perfeito.

Hoje (Tata Amaral, 2011) – a sessão promovida pela Feira do Livro em Ribeirão Preto, no Cine Cauim, em 2013, não foi das melhores. A cópia deixava bastante a desejar. O filme faria uma dobradinha muito boa com Nunca Fomos Tão Felizes (1984), do Murilo Salles. A ditadura militar compõe o pano de fundo de ambas as tramas, cujos desdobramentos se passam quase exclusivamente nas dependências de um apartamento. O tom sépia da fotografia de Hoje reforça o sentido de sujeira impregnada que a protagonista Vera (Denise Fraga, ótima) se esforça para remover – um acerto de contas com o passado de militante, representado no plano fantástico pelo encontro com o falecido parceiro de militância, cujo desaparecimento durante o regime militar ocasionou a indenização que lhe permitiu adquirir o imóvel.

Educação Sentimental (Júlio Bressane, 2013) – se não fosse o Canal Brasil esse filme não estaria nessa lista. A oportunidade surgiu esta semana quando ele foi selecionado para ser exibido no quadro Filme do Mês. A capacidade de Bressane de transformar a fala de seus personagens em imagens é impressionante – importante: desde sempre foi assim. Poesia literária, musical e visual (pintura e filme) combinadas em um vasto repertório de variações, sempre memoráveis. A fala de Áurea (Josi Antello), professora e personagem principal, a respeito da película é profética: “um filme, uma película; isto hoje tem um valor arqueológico, estará em breve no museu das sensibilidades perdidas”.

sábado, janeiro 25, 2014

O que eu vi de melhor em 2013 - estrangeiros

Naturalmente, não consegui ver tudo que gostaria. Cada ano que passa a sensação de que acabei deixando muita coisa pra trás vai aumentando. Este último foi mais difícil em virtude das escassas viagens a capital, mais rarefeitas depois do nascimento do meu filho. Não bastasse isso, o próprio circuito da capital paulista me pareceu menos democrático, com bons títulos sendo lançados em apenas uma sala, em apenas um horário e por apenas uma semana.

Sendo assim, eu, que nunca fui muito afeito aos downloads, passei a enxergá-los com mais simpatia. Tardou bastante, já que a minha teimosia só foi ultrapassada depois que me vi em um beco sem saída – o Alexandre do www.analiseindiscreta.wordpress.com deu um empurrãozinho para a minha estreia. Não fosse esse recurso, dois dos títulos desta lista (e outros que estarão por vir) existiriam apenas no plano das intenções. Minha insistência no formato de exibição das salas de cinema se deu sempre por uma questão de princípio, afinal, tal qual uma bela cerveja tomada em um copo de requeijão, um filme assistido em uma tela de computador não combina. Embora o conteúdo em ambas as circunstâncias seja o mesmo, a fruição plena de ambos exige o formato mais apropriado. Ao que tudo indica, agora, o tal princípio que eu tanto valorizava não passa de perfumaria. Enfim, fui vencido.

Alguns filmes importantes ficaram para trás: Um toque de pecado, A caça, Era uma vez na Anatólia, Depois de Maio, A Grande Beleza, Camille Claudel 1915, etc. A lista abaixo contempla apenas os lançamentos comerciais ocorridos em 2013.

Vocês Ainda Não Viram Nada (Alain Resnais, 2012) – além deste título, 2013 me proporcionou mais duas experiências com Resnais: Providence (1977) e Noite e Neblina (1955). Mesmo separados por um longo intervalo de tempo, todos os três filmes refletem os esforços do diretor para tentar encapsular o tempo na tentativa de resguardar a memória. Recordo, logo existo. Em Noite e Neblina a encenação do holocausto tornou-se impossível, já que o cenário foi transmutado a ponto de descaracterizar-se – só o cinema para reestabelecer a sua gravidade. Providence materializa os truques que a memória costuma nos pregar, sem a qual, contundo, somos incapazes de tirar proveito das agruras e das alegrias da vida. Vocês Ainda Não Viram Nada recria com todas as formas e cores o que só a memória é capaz de nos proporcionar; o cenário transmuta-se conforme a conveniência de quem encena, reavivando e reescrevendo experiências passadas. A encenação (da peça de Eurídice) corrente sobrepõe-se à antiga, estabelecendo novas interações e significados. A morte permeia as três produções, lhes servindo, inclusive, como ponto de partida, mas, ao fim, é a vida que prevalece.

Tabu (Miguel Gomes, 2012) – esse filme daria um belo estudo da importância da forma no cinema. Uma história relativamente banal (um triângulo amoroso) ganha novos contornos nas mãos de Miguel Gomes. O emprego do preto e branco e do mudo encontram as circunstâncias apropriadas para emergirem como se fossem novidades (um verdadeiro achado). As memórias que nos tornam únicos fundem-se às memórias coletivas criando uma experiência nova, encontrando território fértil apenas no cinema. A África afetiva de Miguel Gomes só existe projetada na tela, moldada pelas matinês de filmes americanos situados no continente, dotada, neste caso, do senso crítico que distingue o olhar do explorador (de quem escreve a história) do olhar do explorado.

O Estranho Caso de Angélica (Manoel de Oliveira, 2010) – os filmes de Manoel de Oliveira não costumam me conquistar de pronto. Eu não experimento uma verdadeira sensação de descoberta enquanto eu os assisto. Passados alguns dias da sessão, as imagens captadas e o ritmo do filme começam a influenciar a minha percepção exercendo um fascínio singular. O chamado da morte nunca recebeu um tratamento tão fantástico e angelical como aqui. O vilarejo adotado como locação (a cidade de Douro), bem como os seus habitantes, vão aos poucos enclausurando o protagonista, drenando suas energias, como que a expulsá-lo (persona non grata) deste plano existencial. Seu espírito só encontra conforto nos braços (e sorriso) de Angélica.

A Bela que Dorme (Marco Bellocchio, 2012) – Bellocchio é capaz de traçar um panorama preciso da Itália contemporânea a partir de um caso polêmico de eutanásia (verídico) que envolveu a intervenção política e religiosa da questão – do governo italiano e do Vaticano, respectivamente. Os dramas dos personagens orbitam ao redor da influência dessas entidades em suas vidas, configurando um terreno fértil para explorar os dilemas morais que acompanham esse assunto. Um grande filme.

Barbara (Christian Petzold, 2012) – o cinema alemão permanece refém do legado nazista, sem o qual suas produções são incapazes de alçar voo além de suas fronteiras territoriais. Petzold explora a herança do assunto, a partir da influência da Stasi (polícia secreta e inteligência da República Democrática Alemã – RDA), mas extrai um panorama bem mais rico da questão do que foi capaz Florian Henckel von Donnersmarck em seu A Vida dos Outros (2006). O assunto respira muito bem longe dos grandes centros urbanos, sem abrir mão da sua vocação para o suspense policial ao qual costuma filiar-se.

Las Acacias (Pablo Giorgelli, 2011) – o cinema argentino bem longe das parcerias bem sucedidas (do ponto de vista mercadológico) com o ator Ricardo Darín. O mais prosaico dos filmes listados nesta postagem – um road movie praticamente sem paradas, ambientado dentro do espaço restrito de um caminhão. A sua força advém do humanismo da história e “de um suspense que se intensifica na duração precisa das cenas e por meio de cortes, com elipses que condensam uma longa viagem em pouco menos de uma hora e meia”, de acordo com Cassio Starling Carlos em sua crítica para a Folha. Quase um filme mudo, construído apenas nos detalhes dos gestos e das expressões de seus protagonistas.

Django Livre (Quentin Tarantino, 2012) – na segunda e derradeira parte o filme quase sai dos trilhos, sobretudo depois da saída de cena de Christoph Waltz e Leonardo DiCaprio. Ainda assim, até a chegada desse momento, Tarantino explora seus dotes dramatúrgicos, calcados no exímio talento para escrever diálogos (e escalar os atores adequados para interpretá-los) e na habilidade apropriada para criar situações absurdas. Exemplo disso é a cena do Klu Klux Klan, antológica, que balanceia perfeitamente essas duas vertentes do seu ofício. Embora irregular, o filme é memorável, com um todo mais sustentável do que o anterior Bastardos Inglórios (2009).

O Mestre (Paul Thomas Anderson, 2012) – o estudo mais interessante que Paul Thomas Anderson roteirizou e dirigiu de duas pessoas (sejam eles pais e filhos, amigos ou desconhecidos, amantes ou parceiros) em uma relação instável e conturbada, de pura dependência (física, emocional e/ou financeira), pautada pelo excesso e carregada de culpa (a religião, qualquer que seja ela, exerce uma influência decisiva sobre o comportamento de suas criações). Não é o seu melhor filme, mas está perto disso. Levanta mais questões do que respostas, acertando em cheio ao não centrar o foco da narrativa no personagem de Philip Seymor Hoffman (Lancaster Dodd), livremente inspirado em L. Ron Hubbard, criador da Cientologia.

Um Estranho no Lago (Alain Guiraudie, 2013) – nas palavras do Alexandre, que me levou ao filme, “Trata-se de uma obra-prima, não só pela forma como sua história é contada – apenas um ambiente, poucos atores, mais especulação do que ação explícita – mas também pelo interessante e obscuro estudo psicológico do autor sobre os seus personagens: ao lado de Eros, o instinto da Morte; o sexo e a autodestruição; o estranho fascínio do homem com a violência, levado até as últimas consequências em um thriller hitchcockiano fascinante”.

A Filha de Ninguém (Hong Song-Soo, 2013) – a minha primeira experiência com o diretor sul coreano. É o típico filme que engana por sua singeleza e naturalidade, escondendo um controle preciso da mise-en-scène. As comparações com Rohmer não me pareceram gratuitas, ainda que o filme reverbere por mais tempo no plano da realidade. As circunstâncias exploradas parecem familiares ao universo do cineasta (próprias do seu meio), do qual ele extrai uma força extraordinária sem chamar a atenção para a sua enorme influência sobre o material. Só um olhar desatento para não reconhecer seus méritos.