quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Inside Llewyn Davis (Joel e Ethan Coen, 2013)


Um respiro de dois anos depois de uma séria ininterrupta de quatro filmes em quatro anos - Onde os Fracos não Tem Vez (2007), Queime Depois de Ler (2008), Um Homem Sério (2009) e Bravura Indômita (2010) - parece ter feito muito bem aos irmãos Coen. Sobretudo depois do sucesso alcançado com um western, gênero pouco valorizado nos dias de hoje, que, ironicamente, acabou tornando-se a maior bilheteria da dupla – uma adaptação do livro de Charles Portis, True Grit, clássico da literatura norte-americana, que já havia ganhado as telas em 1969, com John Wayne no papel do xerife Rooster Cogburn, lhe rendendo o único Oscar de sua carreira. Inside Llewyn Davis trilha um caminho inverso, bem menos promocional, mais próximo das produções low profile da dupla, como Gosto de Sangue (1984), Fargo (1996) e O Homem que Não Estava Lá (2001).

Inside Llewyn Davis promove o encontro dos Coen com o universo da música folk (na verdade é o segundo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (2000) já abordara essa aproximação), numa tentativa de registrar o efervescente cenário nova-iorquino dos anos 60, celeiro de nomes importantes que despontariam posteriormente. A dupla, no entanto, evita os holofotes inerentes à abordagem de uma figura icônica como Dylan, direcionando a sua câmera para um personagem bem menos afortunado, embora dotado de enorme talento e personalidade forte, pra não dizer difícil, o Llewyn Davis do título (Oscar Isaac, em ótima interpretação).

A galeria de tipos secundários, uma marca inconfundível dos seus filmes, aposta menos no tom caricatural das caracterizações e mais na naturalidade das circunstâncias. Um desvio de rota, já que os Coen costumam adotar mais a outra via para representar suas criações, incentivando o exagero das interpretações a fim de potencializar a estupidez do comportamento humano. Em Llewyn Davis todos os atores incorporam tipos reais, críveis, prováveis seres existentes daqueles tempos tempestuosos. Mesmo os atores que gozam de pouco tempo em cena, como F. Murray Abraham na pele de Bud Grossman, ou John Goodman encarnando um músico junkie, contribuem para elevar a qualidade da produção a outro patamar – as intervenções de todos eles são absolutamente necessárias para o desenvolvimento da trama, sem qualquer resquício de gratuidade. Todos interpretam personagens memoráveis, dignos de nota.

No meio do filme, numa sequência crucial que cria uma falsa expectativa no espectador, Llewyn Davis viaja de Nova Iorque a Chicago para tentar a sorte no lendário The Gate of Horn, ambiente cultural valorizado por celebrar a música folk americana, administrado pelo empresário Bud Grossman. A viagem em si é uma espécie de simulacro dos beatnicks, movimento sócio-cultural dos anos 50 e princípio dos anos 60, cujo livro de estrada, On the Road, de Jack Kerouac, acabou se firmando como a influência definitiva sobre a juventude que “colocava a mochila nas costas e botava o pé na estrada” (Wikipédia). O trajeto é percorrido em pleno inverno norte-americano, em rota fronteiriça ao território canadense, com temperaturas baixíssimas. Em Chicago, a entrada de Llewyn Davis no The Gate of Horn não é nem um pouco triunfal, pelos fundos (se não me falha a memória), mais relevante para garantir a sua sobrevivência corporal, devido ao aquecimento do estabelecimento, do que para lhe trazer frutos comerciais. O comentário de Bud Grossman, ao conceder alguns minutos do seu tempo para uma avaliação musical de Llewyn Davis, é desolador: “Não vejo muito dinheiro nisso aí”. Um golpe de misericórdia nas pretensões artísticas do talentoso músico.

A partir daí, o filme abraça de vez a vertente mais negativa do tom melancólico que vinha sendo adotado até então, sem espaço algum para a esperança. A crítica do Luiz Zanin Oricchio, do Estadão, termina com uma nota que eu pego emprestado para encerrar o meu, “Llewyn Davis é o mais notável filme do Oscar 2014. Não vai ganhar nada, ou no máximo algum prêmio de consolação – exatamente como seu protagonista”.

sábado, fevereiro 22, 2014

O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2013)


É praticamente impossível ficar indiferente às estreias dos filmes indicados ao Oscar. Nem digo isso pela suposta qualidade dos longas em questão. Nas últimas semanas uma enxurrada deles tomou as salas dos cinemas, média de duas estreias por semana, de forma que as exibidoras de Ribeirão até boicotaram as produções de menor apelo comercial, como Philomena (Stephen Frears, 2013) e Nebraska (Alexander Payne, 2013). Mesmo a chancela do Oscar não garante a exibição nos interiores do Brasil afora.

O Lobo de Wall Street (Martin Scorsese, 2013), como já fora comentado em toda a mídia impressa e digital, bebe na fonte de Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995). A estrutura dos três longas é praticamente a mesma: dois parceiros de negócios (escusos) erguem seus impérios à margem da lei, narrando suas peripécias, da ascensão (primeira metade) ao declínio das operações (segunda metade), regadas a ganância e excessos (pessoais e/ou materiais). O projeto pessoal do protagonista, relativamente careta, centrado no modelo burguês do casamento e da família, não é compatível com o estilo de vida que ele adota para tocar os seus negócios. A figura da esposa, eixo moral do protagonista (no que ela representa não necessariamente no que ela é), não raro se choca com o mundo deturpado dele. O que era pra ser o seu porto seguro se torna a sua maior ameaça.

A sombra dos dois outros filmes pesa sobre O Lobo de Wall Street. Ambos são mais bem resolvidos do ponto de vista dramatúrgico (provável contribuição do roteirista Nicholas Pileggi) – uma comparação mais do que justa, sobretudo por serem todos filmes de Scorsese. O “eixo familiar” da produção fica muito prejudicado, de modo que algumas sequências soam patéticas – exemplo: a cena em que Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), após um desentendimento com a esposa (Margot Robbie), tenta fugir com a filha e choca o próprio carro no estacionamento. A criança mal havia aparecido até então (apenas como uma recém-nascida) – e some logo após essa sequência. A própria tia da esposa (Joanna Lumley), peça importante do esquema de lavagem de dinheiro de Jordan, existe como um mero plot device (espirituoso, é verdade). Ao que tudo indica, o filme havia apresentado uma duração muito longa anteriormente, e teve de ser retalhado para ser lançado comercialmente. Provavelmente (ou não), parte do material que explorava melhor essa vertente, acabou sendo confiscada.

O histrionismo do protagonista, potencializado pela direção de Scorsese, também impede que o filme “respire” um pouco, ainda que esse aspecto esteja em completa sintonia com o modo de vida do personagem. Scorsese não economiza um centavo para retratar essa exuberância na tela. Suas últimas produções ganham em orçamento, mas perdem em concisão. Essa grandiloquência encobre a atenção que deveria ser dada aos detalhes. A fim de manter a justeza na comparação, fiquemos com outro filme do próprio Scorsese que equilibra melhor essas duas forças (aparentemente) antagônicas: A Época da Inocência (1993) – favorecido, verdade seja dita, pelo caráter contido do seu protagonista, Newland Archer (Daniel Day-Lewis). No rastro das recentes produções que abordam a irracionalidade do capitalismo, pós-quebradeira de 2008, voltadas ao relato mais sóbrio do cotidiano dessas figuras (o que exclui, por exemplo, Cosmópolis (2011), de David Cronenberg), uma proposta interessante seria uma sessão double bill de O Lobo e O Capital (Costa Gavras, 2013).

Embora eu considere a postagem do Vlademir, dono do espaço O Olhar Implícito, um tanto quanto implacável, ela está mais próxima da forma como eu enxergo O Lobo de Wall Street.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

Eduardo Coutinho (1933 - 2014)


Abaixo, dois pequenos trechos da série de publicações intitulada Encontros, A Arte da Entrevista, cuja edição voltada para o cineasta Eduardo Coutinho foi organizada por Felipe Bragança (Editora Azougue Editorial). Essa é uma coleção de qualidade superlativa, indispensável para qualquer interessado nos entrevistados que conferem seus nomes aos livros. Conforme nota que encerra as publicações: “Em cada volume da Coleção Encontros trazemos um olhar abrangente sobre o entrevistado, com uma seleção criteriosa de depoimentos de diversos momentos e contextos de sua trajetória”. O cinema conta, ainda, com edições de Rogério Sganzerla e Ismail Xavier.

As duas passagens foram extraídas do capítulo em que Valéria Macedo entrevista Eduardo Coutinho para a revista Sexta-feira, em abril de 1998. As perguntas foram suprimidas.

 “...Não existe um cinema de documentário que seja o real. Não estou preocupado se o cara que eu entrevisto está dizendo a verdade – ele conta a sua experiência, que é a memória que tem hoje de toda a sua vida, com inserções do que ele leu, do que ele viu, do que ele ouviu; e que é uma verdade, ao mesmo tempo que é o imaginário. Não estou preocupado com a realidade pedestre das coisas, por isso a palavra dele me interessa.

Se eu tiver de escolher entre dois projetos – um sobre um tema medíocre filmado no sertão do Nordeste e um sobre um tema quente filmado na cidade de São Paulo – eu escolho o do Nordeste. A linguagem oral é essencial no imaginário presente, no lugar em que a cultura industrial não penetrou tanto. Ao contrário do que se pensa, o cara que é analfabeto ou pouco alfabetizado e que vive num espaço em que a cultura oral é predominante, ele tem uma necessidade mais absoluta de se expressar bem do que o cara que vive numa cultura industrial. As pessoas da cidade de São Paulo falam mal, enquanto que no sertão a expressão é riquíssima, não só no que dizem, não só porque é eloquente, mas porque no fundo é mais precisa que a linguagem urbana. Eu me lembro de expressões do Nordeste, até da Zona da Mata, que falam coisas como: “É na dura sorte”. Essa expressão é de uma beleza extraordinária, e assim são. Essa eloquência você não vai encontrar na cidade”.

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“Eu não sou especialmente simpático com as pessoas. Quando falo com um nordestino, aparentemente não tenho nada que ver com ele. E essa diferença eu não procuro falsamente diminuir. É claro que eu uso uma linguagem coloquial, mas não tento fingir que sou igual. Eu não sou igual duplamente: porque estou atrás da câmera e porque não sou igual socialmente. Ao não fingir, você começa a limpar a área. É a partir dessa diferença assumida que certa igualdade pode se estabelecer. Então, apesar de não ter nenhum elemento prévio para criar uma relação positiva na entrevista, eu consigo criar uma certa intimidade que a maioria dos diretores não consegue.

A primeira regra é que ninguém me contará uma coisa na câmera que já tenha me contado fora. Então, de um lado, o cara está me dizendo aquilo pela primeira vez, não é um pão amanhecido. Ele pode ter dito a um assistente, mas não a mim. Para mim, o momento da filmagem é sempre o momento da relação, isso é essencial. O transe do cinema ocorre nesse momento, nem antes, nem depois. Eu não quero fazer uma sociologia da favela; por isso, é importante que, no momento da filmagem, eu não saiba o que esse cara vai dizer. Nessa hora, minha tensão é maior que a dele. De repente, o cara pode ser um chato, ou então você pensa que não vai render nada e o cara dispara e é maravilhoso. Esse tipo de coisa possui uma tensão extraordinária, tudo está em aberto.

Segunda coisa, geralmente há um set da entrevista, assim como o set da psicanálise: muitas luzes sobre uma pessoa sentada a três ou quatro metros distante do diretor, porque a câmera não pode mostrá-lo. E ninguém fala normalmente a essa distância. Então, se criou esse clima, dificilmente a conversa será boa. O que cria a tensão é chegar na casa da pessoa com a câmera ligada. Isso obriga toda a equipe a inventar: a câmera, o cara do som, porque eu tenho que estar completamente ligado na pessoa que está falando. Em muitos casos, portanto, o câmera é que tem que decidir o enquadramento”.