quinta-feira, julho 31, 2014

Camille Claudel, 1915 (Bruno Dumont, 2013)




Nos dois primeiros terços do filme o confronto de Camille Claudel (Juliette Binoche), e por consequência do espectador que a acompanha, é com a instituição que a abriga e seus pacientes. Grunhidos, rosnos, closes de rostos disformes e grotescos intercalam com as longas caminhadas introspectivas que ela realiza pelas belas dependências do local, atormentada pela condição imposta a que foi submetida. As razões que a levaram àquele estado, embora sejam de domínio público, são pouco exploradas, mesmo na longa conversa que Camille leva com o diretor do hospício (buscando um esclarecimento da sua condição) - a breve intervenção dele nos dá a entender que o comportamento alienado dela é rotineiro. Dumont trabalha a expectativa do público em prol da conciliação, mediada pela figura do irmão, Paul Claudel (Jean-Luc Vincent), que promete visitá-la.

Esse elemento apaziguador da história, que domina o último terço do filme, termina por reforçar o que ela tem de mais cruel. As primeiras imagens de Paul são tranquilizadoras, num registro de seu rosto buscando um contato direto com o divino, em meio à longa viagem empreendida para encontrar a sua irmã. O close duradouro em primeiro plano do seu semblante contrasta radicalmente com o horror propiciado pelos distúrbios e contorções faciais das pacientes do hospício. Paul vende, por fim, uma imagem de serenidade plena, calcada na devoção irrestrita ao catolicismo – reforçada pelos traços finos do seu rosto. A imagem que ele faz de si próprio aproxima-o de um anjo, conforme comprova a “confissão” (abaixo) que ele presta a um sacerdote, em algum ponto do trajeto da viagem para encontrá-la.

Minha ignorância a seu respeito era a mesma de um selvagem. Meu primeiro vislumbre da verdade deu-se quando li os livros de um grande poeta a quem devo minha eterna gratidão e que teve na minha formação intelectual um papel preponderante: Arthur Rimbaud. A leitura de "Iluminações" e, alguns meses depois, "Uma Temporada no Inferno" foi para mim um acontecimento decisivo. Pela primeira vez esses livros abriram uma fenda na minha prisão materialista. Eu tive uma impressão vívida, quase física do sobrenatural.  Assim era o infeliz menino que, no dia 25 de dezembro de 1886, foi à Igreja Notre Dame de Paris para assistir à Missa do Galo. Comecei então a escrever. Parecia-me que, nas cerimônias católicas, tratadas com um diletantismo superior, eu encontraria uma motivação apropriada e material para alguns exercícios decadentes. Foi com esse espírito que, perdido na multidão eu assisti à missa com um prazer medíocre. Depois, à falta de coisa melhor para fazer, voltei para as orações de Vésperas. As crianças das redondezas, todas vestidas de branco, e os alunos do seminário de Saint-du-Chardonnet cantavam o que soube mais tarde tratar-se do "Magnificat". Eu estava de pé cercado pela multidão, próximo ao segundo pilar, na entrada do coral, à direita, perto da sacristia. Foi então que se deu... o acontecimento...que domina a minha vida. Naquele momento meu coração foi tocado e eu passei a crer. Cri com tal adesão, com tal enlevo, com tamanha certeza que não deixava qualquer margem de dúvida de que, depois de todos aqueles livros, de tanta argumentação de todos os perigos de uma vida agitada, algo pudesse abalar essa fé nem sequer chegar a tocá-la. De súbito, tive a sensação avassaladora da inocência, da eterna infância em Deus, uma revelação inefável. Não me tornei cristão para poder fruir de sentimentos religiosos ou de certa voluptuosidade mística. Sempre tive horror a isso. Não foi por isso que me tornei cristão. Tornei-me cristão por obediência e por interesse, para saber o que se esperava de mim. Mas eu nunca tive a intenção de usufruir de Deus. De auferir algum tipo de prazer ou felicidade. Isso teria sido um sentimento bastante vil, não é? Pareceu-me que Deus se havia instalado solenemente no meu coração. Ele fez-me lembrar das suas graças concedidas no passado e mostrou-me que minha vocação era espalhar a sua palavra. Para tanto ele me convidou para conhecê-lo mais profunda e intimamente.
Paul Claudel (Jean-Luc Vincent)

No aguardado encontro entre os irmãos, e, sobretudo, na conversa travada posteriormente entre Paul e o diretor, Dumont inverte a expectativa cultivada até então, devolvendo a ele o verdadeiro papel de algoz da história. Paul emerge como o verdadeiro responsável pela estadia de sua irmã no hospício, que ainda levaria mais vinte anos de internação (até a sua morte). Dumont sustenta, mais uma vez, uma visão desconfiada, por vezes ambígua em relação ao catolicismo, adotando uma versão contestadora, quando não irônica, da devoção às cegas – que, sabemos, é aplicável a qualquer religião.

segunda-feira, julho 28, 2014

Sherlock Jr. (Buster Keaton, 1924)





It´s said that Chaplin wanted you to like him, but Keaton didn´t care. I think he cared, but was too proud to ask. His films avoid the pathos and sentiment of the Chaplin pictures, and usually feature a jaunty young man who sees an objective and goes after it in the face of the most daunting obstacles. Buster survives tornados, waterfalls, avalanches of boulders and falls from great heights, and never pauses to take a bow: he has his eye on his goal. And his movies, seen as group, are like a sustained act of optimism in the face of adversity; surprising how, without asking, he earns our admiration and tenderness.
Roger Ebert

Por Roumiana Deltcheva

Embora seja o menor longa-metragem de Buster Keaton, Sherlock Jr. é uma obra notável, com uma trama bem amarrada, um impressionante atletismo (Keaton fez todas as acrobacias, quebrando o pescoço durante uma delas sem perceber), virtuosismo artístico e uma exploração vanguardista da eterna dicotomia realidade versus ilusão. Aqui, Keaton interpreta um projecionista e aspirante a detetive acusado injustamente de roubar o pai da namorada. Vítima de uma armação de um pretendente rival (Ward Crane), o jovem é expulso da casa da moça. Deprimido, adormece no trabalho. No seu sonho, entra numa tela de cinema (em uma brilhante sequência de efeitos óticos), onde é o garboso protagonista Sherlock Jr. – o segundo maior detetive do mundo.

Acrobacias inacreditáveis e gags complexas dão a este filme de 44 minutos um ritmo febril. A princípio, a realidade do cinema se recusa a aceitar este novo protagonista e a tensão entre os dois mundos é apresentada de forma magnífica através de mudanças de cenário que jogam nosso desnorteado protagonista numa cova de leões, num mar agitado e numa nevasca. Aos poucos, ele é completamente assimilado pelo mundo dos filmes. Na narrativa mise-en-abyme, o vilão (também interpretado por Ward Crane) tenta matar o herói em vão, antes que Sherlock Jr. solucione mistério das pérolas roubadas.

Sherlock Jr. não apenas conta com as incríveis acrobacias que tornaram Keaton famoso como também apresenta uma séria de questões. De uma perspectiva social, é uma análise das fantasias sobre ascensão social na sociedade americana. No aspecto psicológico, apresenta o tema do duplo tentando obter sucesso nos espaços imaginários, uma vez que o protagonista não é capaz de alcançá-los na realidade comum, tangível. Acima de tudo, o filme é o reflexo da natureza da arte, um tema que volta a surgir em O Homem das Novidades (1928), no qual Keaton transfere o foco da mídia para o espectador.

Os filmes de Keaton continuam intrigantes até hoje, em parte por conta do estoicismo quase sobrenatural do diretor-ator (comparado ao pathos de Chaplin) e em parte pela sua natureza ocasionalmente surreal (admirada por Luis Buñuel e Federico García Lorca) e por mergulharem na natureza do cinema e da própria existência. Chuck Jones, Woody Allen, Wes Craven, Jackie Chan e Steven Spielberg estão entre os cineastas que prestam homenagem à irresistível travessura de Keaton, e seus filmes continuam sendo, talvez, os mais acessíveis de todos os filmes mudos.

domingo, julho 20, 2014

Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (Emir Kusturica, 1985)



A Guerra dos Balcãs, envolvendo povos de etnias, culturas e religiões distintas, sempre foi a mais difícil para o meu entendimento, tamanha a quantidade de pequenos incidentes sucessivos que a compõem (culminando na Primeira Guerra Mundial), além do tratamento dado às fronteiras dos povos envolvidos, rearranjados ao término deste conflito e de outros que perduram até os dias de hoje.

Uma das virtudes dos filmes de Kusturica é justamente se deixar ver sem que todo esse repertório esteja pré-esclarecido para o espectador – suas estórias se passam depois que tal guerra varreu o continente europeu. Seus personagens, habitantes desse caldeirão de adversidades e conflitos, convivem em um ambiente extremamente politizado, com a liberdade tolhida pelo controle exacerbado que o Estado exerce sobre eles – fruto da influência da extinta União Soviética. Essa condição de vigília permanente, marca registrada do cinema russo e do leste europeu (responsável, por vezes, pelo clima pesado de suas produções), perpassa todo o filme.

Kusturica adota uma abordagem menos sombria, flertando o tempo todo com o registro caricatural, mais próximo do que seria uma paródia. O tom de gravidade não é abandonado por completo, sendo constantemente entremeado por situações cômicas, todas centradas no núcleo familiar da trama. Inclusive, esse laço fraterno que une os personagens, seja pelo sangue ou pela necessidade imposta de convivência, quando mal administrado, assume o papel de estopim dos conflitos – no macro (país) ou micro (família) ambiente. Nesse contexto de socialização mais amplo, as diferenças são minimizadas (ou talvez toleradas), quando não se manifestam na forma de decisões tomadas por razões políticas que escondem uma escusa motivação pessoal.

Esse detalhe, a propósito, é um dos principais responsáveis pela continuidade do conflito na região até os dias de hoje, quando irmãos de sangue assumem, por influência do meio, posturas ideológicas distintas, negociadas frequentemente na base da violência.

A perspectiva infantil adotada por Kusturica em Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, ao menos evita, circunstancialmente, que o sangue jorre na tela. Daí também vem a sua beleza – um rito de passagem incomum, repleto de relações pessoais à flor da pele. Um dos precursores do filme político filtrado pelos olhos de uma criança.