segunda-feira, março 30, 2015

Dívida de Honra (Tommy Lee Jones, 2014)


O roteirista Guillermo Arriaga ficou definitivamente associado ao diretor Alejandro Gonzalez Iñarritu como autor das múltiplas histórias inter-relacionadas dos três filmes que acabaram se tornando comercialmente consagrados: Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006). Apesar de toda a badalação (e, posteriormente, do rompimento regado a acusações de autoria oriundas de ambas as partes), tenho pra mim que o melhor roteiro escrito por Arriaga ficou a cargo da direção de Tommy Lee Jones em um filme que infelizmente não conseguiu romper o círculo cinéfilo rumo ao grande público, The Three Burials of Melquiades Estrada (2005) – no Brasil ele recebeu o título de Três Enterros. A minha experiência com ele foi a mais próxima que um filme pôde chegar de Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974), de Sam Peckinpah - só essa aproximação já valida a sua qualidade.

Levou praticamente dez anos para que Tommy Lee Jones nos brindasse com outro filme seu - estou desconsiderando o telefilme produzido no meio tempo, Sunset Limited (2011). Novamente o ambiente retratado é o oeste norte americano, território explorado por Jones como o contraste entre os valores de dois modos de vida (campestre x urbano), cuja paisagem atravessada é tanto geográfica quanto emocional. O filme leva um tempo para se impor, enquanto se presta a explicar a jornada que a personagem de Hillary Swank toma pra si e aguarda a entrada do personagem de Tommy Lee Jones em cena.

A partir do momento em que os dois partem em uma longa viagem pelas planícies do Nebraska, com a árdua tarefa de conduzir as três mulheres que enlouqueceram aguardando ajuda psiquiátrica em outras bandas, os atores, sobretudo Hillary Swank, carente de um papel à altura de seu talento, assumem as rédeas da produção. Embora as três mulheres sejam a razão do deslocamento insensato, suas presenças em cena se resumem a gritos e grunhidos, sem qualquer relação com algumas passagens e encontros que beiram o surrealismo. A ameaça que espreita o trajeto por eles percorrido vem normalmente dos sujeitos "normais" com os quais a caravana cruza, e a morte exerce o papel de convidada de honra, sempre pronta para dar as caras sem pedir licença.

Como é de praxe nos road movies, o deslocamento provoca nos personagens uma intensa reflexão interior, capaz de pôr em perspectiva toda a experiência acumulada por eles até então. Os protagonistas trocam de posição o tempo todo no exercício dessa premissa, descuidados da influência que o orgulho pode exercer sobre essa pratica - dificultando esse "aprendizado”. A insistência nesse comportamento, resultado de uma convicção arraigada e um bocado de teimosia, cobra o preço mais alto que um indivíduo pode pagar, ironicamente necessário para que seu caráter soberano seja por fim reconhecido pelo outro. Ao término, homens e mulheres terão seus papéis devidamente dissecados como gênero, encontrando um possível conforto para a dor injuriante na música. Filmaço!

segunda-feira, março 23, 2015

Entrevista Clint Eastwood


No penúltimo post deste (projeto de) blog, publiquei um pequeno trecho da coleção de entrevistas que Michel Ciment conduziu com Stanley Kubrick ao longo de suas últimas produções, datada a partir do lançamento de Laranja Mecânica (1971) – editada em um belo livro, Conversas com Kubrick, da CosacNaif. Na ocasião desta publicação, eu havia acabado de ver O Iluminado (1980) no ciclo de Clássicos que o Cinemark vem promovendo desde o início do ano passado, numa revisão dos filmes do diretor iniciada na Mostra de São Paulo de 2013. A minha primeira experiência com ele não havia sido das melhores, num surrado VHS da década de 1990, que me pareceu ultraestilizado e supervalorizado. A sessão em uma sala de cinema serviu para pôr os devidos pingos nos is e me fazer reconhecer a sua grandeza.

Quando postei a entrevista com Kubrick eu ainda não havia visto o Sniper Americano (2014) de Clint Eastwood. O sucesso de público do filme, o maior da carreira do diretor, além das inúmeras indicações ao Oscar, levou a revista Veja a entrevistá-lo. Reproduzo-a neste post quase integralmente, só deixando de fora as três últimas questões. A comparação entre as duas entrevistas é interessantíssima, levantando pontos de confluência e de discordância.

A lucidez de ambos para esclarecer os desafios do ofício é notável, absolutamente cientes dos limites do alcance de suas influências sobre o material explorado em seus filmes. A polêmica causada no lançamento de Laranja Mecânica não parece ter sido muito diferente da controvérsia gerada em torno de Sniper Americano. Os dois foram acusados de “defenderem” a violência, confundidos com as ações perpetradas por seus personagens. O pragmatismo de Clint Eastwood contrasta com a racionalidade exacerbada de Stanley Kubrick.

Revista Veja: A seu ver, surgiu da controvérsia em torno de Sniper Americano algo de iluminador ou instigante, ou ela seria mera polarização de opiniões?
Clint Eastwood: Minha impressão é que algumas das pessoas que têm alimentado essa controvérsia estão mais interessadas em obter reconhecimento e manter seu nome em evidência do que em debater. O filme tem, é claro, uma mensagem sobre urgências do combate, mas eu diria que sua mensagem contra guerra tem peso idêntico; não são poucos os soldados que sentem estar no lugar errado, e mesmo Kyle tem de se esforçar mais e mais para se convencer de que o que está fazendo é o certo. Eu não fui a favor da guerra. Mas, a partir do momento em que os soldados são enviados à batalha, meu desejo é que possam cumprir sua missão e voltar vivos para casa.

Essa questão, a dos efeitos da violência cometida com convicção do justo e certo, é constante em seu trabalho.
É difícil discutir intenções: enquanto você está rodando um filme, uma multiplicidade de opiniões a respeito dele cruza sua cabeça, toma forma e então muda – de tal modo que, no fim, se alguém vier lhe perguntar quem são as pessoas que vão querer vê-lo, a única resposta possível é “não tenho a menor ideia”. Um filme só existe de fato nos olhos de quem o vê. A lição que aprendi a aceitar é que tenho de dar o meu melhor; mas, quando o resultado do meu trabalho chega aos cinemas, só o público decide se quer vê-lo ou prefere escolher outra coisa.

Dói quando o público decide que não é o seu filme que ele quer ver? J. Edgar, por exemplo, foi praticamente ignorado.
Talvez o público mais jovem não conheça J.Edgar Hoover, e talvez o público que tem idade para se lembrar dele não frequente mais o cinema. O mesmo talvez possa ser dito de Invictus, sobre Nelson Mandela. É sempre uma pequena decepção, mas remoer desapontamentos não leva a nada. É partir para outra. Inversamente, se cinco meses atrás me tivessem dito que Sniper Americano seria o maior sucesso comercial da minha carreira, eu teria ficado surpreso. Vai ver é o pessoal que não foi ver J.Edgar que está comprando os ingressos.

Oitenta e quatro anos é uma idade respeitável, mas ela não parece ter diminuído sua disposição: faz apenas meio ano que o senhor lançou Jersey Boys.
Sinto-me ótimo e estou com boa saúde. Sem querer me comparar com sir Edmund Hillary, a justificativa que tenho para o número de filmes que faço é a mesma que ele deu para conquistar o Everest: eles estão lá à espera, ora. Mas admito que, depois desse 2014 puxado, a pior coisa que poderia me acontecer seria dar de cara com outro bom roteiro. Não consigo parar de olhar projetos, mas acho que uns meses de folga me fariam bem.

Um filme com tanta ação a coordenar, como Sniper Americano, exige energia extra, não?
Faz mais de 60 anos que trabalho como ator e 45 como diretor, então essa é uma habilidade que aprendi a dominar: a de priorizar – decidir o que está sob meu controle direto e o que depende de outros, e então ir caminhando pelo filme como uma equipe. Porque um filme é um trabalho de equipe: cerque-se dos melhores profissionais, e eles farão você parecer melhor do que é.

Preparação e análise em excesso podem ser inimigos de um cineasta?
Sim. É preciso ter algum frescor, alguma abertura nas concepções e atitudes, quando se entra em um set. Às vezes, imprevistos podem ser benéficos e melhorar uma cena; não é bom reagir com desaprovação a situações inesperadas que por acaso surjam. Alguns atores entram em cena em ponto de bala e vão esfriando; outros chegam frios e vão esquentando. É preciso aceitar as pessoas pelo que elas são e tirar o melhor partido do que elas têm a oferecer. Tudo é um julgamento. E tem-se também de aceitar que às vezes fazemos bons julgamentos, e outras vezes, maus.

terça-feira, março 10, 2015

Uma Garota Dividia em Dois (Claude Chabrol, 2007)


Dos integrantes do núcleo duro da Nouvelle Vague, até o presente momento ainda não tive a oportunidade de conferir um filme de Jacques Rivette. A metragem longa de A Bela Intrigante (1991), único dos seus longas de que disponho, demanda uma ocasião especial para me envolver devidamente com os seus 238 minutos. Eis que esse dia ainda há de chegar.

À parte Rivette, Claude Chabrol é o cineasta da trupe que menos interesse me despertou. É muito provável que as minhas escolhas tenham interferido diretamente nesse julgamento, pautado, naturalmente, pelos filmes da sua extensa filmografia que assisti. Lembro-me de ter ficado impressionado com Nas Garras do Vício (1958), numa mostra dedicada ao diretor no Eurochannel, quando o canal exibia uma programação mais relevante, ainda na década de 1990.

Desse primeiro contato com a sua obra, pulei diretamente para a fase em que Isabelle Huppert e o diretor iniciavam a sua parceria. Por mais frustrante que seja admitir isso, foram poucos os filmes dessa longeva colaboração que de fato me chamaram a atenção. A prevalência da temática burguesa, associada à frieza da sua intérprete, estabeleceu no meu imaginário o que seria o "toque" Chabrol. O miolo da sua obra, reconhecido pela forte influência hitchcockiana, passou-me praticamente em branco.

Posto isso, confesso que eu não estava preparado para Uma Garota Dividida em Dois (2007). Faz mais de dois anos que tenho o filme gravado, mas só agora vim a vê-lo. A vaidade exacerbada é o pivô das intrigas envolvendo os três personagens, que no fundo não passa de uma disputa ferrenha por poder e dominação. O dinheiro caminha lado a lado desse horizonte retratado, forçando a barra para o lado em que a corda é mais fraca. Chabrol não passa a mão na cabeça de ninguém, fazendo cada um deles pagar o preço por suas escolhas expressivamente libidinosas. Sexo e poder combinados e em discordância são um atalho para o exercício do crime, cuja marca fica impressa nesse universo infame regado à hipocrisia.