Desde sábado passado retrasado só faço
pensar na sessão de Blade Runner da
Série de Clássicos do Cinemark. Ainda hoje me recordo da única vez que assisti
ao filme, numa TV plana tubular de 29 polegadas, quando ainda morava com os
meus pais, há mais de vinte anos. Na ocasião, eu me esforçava para
"consumir" alguns dos filmes canônicos da sétima arte ao mesmo tempo
em que devorava as resenhas publicadas em livros dedicados a esmiuçar o
entendimento deles (sem o recurso da internet, havia a publicação diária dos
jornais impressos ou os livros específicos). Um desses livros, encontrado na
estante da biblioteca da faculdade, explorava a produção dos anos 80 ("O
Cinema dos Anos 80", organizado por Amir Labaki) e acabou tornando-se uma
verdadeira referência pra mim. Por meio dele descobri que o policial Deckard
(Harrison Ford) acumulava indícios de que também pudesse ser um replicante (a ambiguidade do personagem
encontra defensores fervorosos dos dois lados), bem como de que o filme poderia
ser interpretado por um viés religioso. Embora essa leitura despertasse uma
necessidade de se voltar ao filme para poder constatar essas revelações, esse
texto "explicativo", que trazia, inclusive, os bastidores da produção
conturbada, acabou ficando maior do que o filme na minha memória.
Eis que agora, 20 anos depois da sessão
meia boca que fiz em casa, mesmo contando com o melhor recurso de reprodução da
época, o VHS, voltei a ele em uma condição mais do que apropriada. Como eu já
conhecia o conteúdo narrativo do material (fomentado sobretudo pelo livro
supramencionado), investi a minha fruição na riqueza visual do filme. Não sei
se existe um jeito adequado de experimentá-lo, só estou certo de que ele não
cabe na tela da TV. Embora Ridley Scott tenha se recusado a
"atualizar" a tecnologia do seu filme digitalmente (exatamente como
George Lucas fez com a trilogia "Star Wars"), mesmo
"datada", a concepção visual do filme permanece revolucionária. As
produções que vieram posteriormente são todas, em maior ou menor grau, filhas
bastardas de Blade Runner. O
artesanato empregado pelo visionário "visual effects" Douglas
Trumbull não envelheceu, bem como preserva uma autenticidade que as imagens
geradas por computador (os CGIs) atualmente não se mostraram capazes de emular
com desenvoltura. Os CGIs hoje em dia resultam normalmente fakes demais. A Los Angeles de Blade
Runner é demasiadamente palpável, de forma que até hoje continua a
representar o futuro sombrio imaginado por Ridley Scott e seus colaboradores,
seja ele no vindouro ano de 2019, conforme a narrativa fílmica, ou bem mais
adiante que isso.
Não só o “visual effects” abordado no
parágrafo acima é memorável, bem como a composição do quadro (o preenchimento
do ecrã). O mundo está superpovoado, com gente circulando por todas as frestas
da imagem captada, despertando uma sensação desconfortável de enclausuramento.
A cidade não comporta seus cidadãos. Os chineses já dominavam a cena,
transformando Los Angeles num reduto cultural da sua influência,
manifestando-se na culinária ou nos imensos outdoors televisionados que
encobrem a cidade. A chuva ácida incessante (uma preocupação onipresente na
década de 1980), amplia a sensação de decadência e falência do modelo de
exploração planetária, que confiscou dos residentes remanescentes a luz solar
reconfortante.
Outro componente que contribui
imensamente para a atemporalidade do filme é a magnífica trilha sonora de
Vangelis. Ela dispensa um tema principal ou um "refrão", recorrente
em partituras que se descolam da sombra do filme que as projetou. O músico John
Williams, colaborador frequente de Steven Spielberg, foi um mestre nesta arte
de "criar temas" memoráveis. Em Blade
Runner, cada cena é orquestrada individualmente, sem sacrificar a unidade
do todo. O tema dos créditos finais só faz reforçar o clima de ameaça e
insegurança que o filme se esforçou por disseminar.
A sensação despertada por esses fatores
combinados resulta numa experiência pontual redimensionada pela memória
atemporal, de forma que independente do momento que ela se concretize, o futuro
terá sempre a cara de Blade Runner.