Há algum tempo atrás eu me posicionei a respeito da idolatria que a brasileirada costuma prestar aos filmes produzidos na Argentina. Sem contestar a sua perceptível qualidade, ainda não me convence raciocinar que a produção artística deles seja melhor que a nossa. Parece irônico que alguém que escreve essas linhas no início da postagem emende dois textos seguidos com filmes argentinos. Se eu escrevesse com mais frequência talvez até fosse possível rebater essa questão, mas no ritmo que venho me dedicando a este espaço fica difícil convencer quem quer que seja.
Pra colocar uma pá de cal no assunto,
escrevo para registrar o meu entusiasmo com O Cidadão Ilustre. Acho que
encontrei meu filme argentino pra levar para uma ilha deserta. O filme anterior
da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn, O
Homem ao Lado (2009), já havia sido muito bem recebido pela crítica, mas,
honestamente, ele só reforçava pra mim a insensatez das comparações entre as produções artísticas dos dois países. Eu encarava os elogios demasiadamente
forçados, sem que o filme merecesse tamanho reconhecimento. Pode ser que ao
revê-lo, eu encontre aquilo que não fui capaz de enxergar anteriormente.
Sem mais delongas, vou direto ao ponto: O
Cidadão Ilustre é um filmaço. Resumido em poucas linhas é a história de um
escritor argentino (Oscar Martínez), radicado há 40 anos na Europa, vencedor do
prêmio Nobel de Literatura, cujos personagens de seus livros premiados foram
inspirados pelas memórias cultivadas em sua terra natal. O filme abre com a
cerimônia de premiação do Nobel, cujo discurso de aceitação já antecipa o
temperamento do personagem que será escaneado até a última cena. Do seu
calendário repleto de convocações para cerimoniais inócuos ao redor do planeta,
surge o convite, a priori rechaçado, para uma visita a sua cidade natal a fim
de receber o tal título de Cidadão Ilustre.
A partir do aceite, o eixo da narrativa
se desloca definitivamente da modernidade da cidade grande para o conservadorismo
campestre, retrógrado e antiquado. Logo que ele desembarca em território
argentino, sucedem-se situações que evidenciam a precariedade dos meios,
familiar a qualquer cidadão sul americano (as cenas são bastante inspiradas). A
recepção calorosa, dotada de uma falsa sensação de hospitalidade, em contraste
com a solenidade da cerimônia de premiação do Nobel, aos poucos começa a
escancarar a sordidez que rege as relações entre os habitantes da cidade. A
rispidez e a falta de tato no trato com as pessoas por parte do Cidadão Ilustre
só fazem aumentar o abismo existente entre eles, levando parte dos cidadãos a
se rebelar contra o figurão, acusado de abandonar suas raízes para explorar
seus conterrâneos por meio dos personagens de suas publicações.
Quanto mais o Cidadão Ilustre interage
com as pessoas, maior o desconforto gerado pela sua presença. Mesmo quando ele
encontra antigos amigos, existe um ressentimento que paira no ar, dificultando
a comunicação entre as partes. O não dito é sobrecarregado de mágoas e rancor,
ainda que as aparências sugiram o contrário. À medida que a produção avança
para o seu desfecho, a integridade de Oscar Martínez exerce um contraponto de
resistência à corrupção latente dos habitantes da cidade de Sales. A criação
artística, maltratada por àqueles que ditam as regras no município, é
manipulada para promover o status quo,
empurrando para baixo do tapete os talentos genuínos, sufocados pela
mediocridade vigente. A cena final provoca uma reflexão ao sugerir uma nova
interpretação para os fatos narrados. O cinema assume a condição de arte,
ancorado na ambiguidade do discurso.