quarta-feira, outubro 17, 2018

O Cidadão Ilustre (Gáston Duprat e Mariano Cohn, 2016)


Há algum tempo atrás eu me posicionei a respeito da idolatria que a brasileirada costuma prestar aos filmes produzidos na Argentina. Sem contestar a sua perceptível qualidade, ainda não me convence raciocinar que a produção artística deles seja melhor que a nossa. Parece irônico que alguém que escreve essas linhas no início da postagem emende dois textos seguidos com filmes argentinos. Se eu escrevesse com mais frequência talvez até fosse possível rebater essa questão, mas no ritmo que venho me dedicando a este espaço fica difícil convencer quem quer que seja.

Pra colocar uma pá de cal no assunto, escrevo para registrar o meu entusiasmo com O Cidadão Ilustre. Acho que encontrei meu filme argentino pra levar para uma ilha deserta. O filme anterior da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn, O Homem ao Lado (2009), já havia sido muito bem recebido pela crítica, mas, honestamente, ele só reforçava pra mim a insensatez das comparações entre as produções artísticas dos dois países. Eu encarava os elogios demasiadamente forçados, sem que o filme merecesse tamanho reconhecimento. Pode ser que ao revê-lo, eu encontre aquilo que não fui capaz de enxergar anteriormente.

Sem mais delongas, vou direto ao ponto: O Cidadão Ilustre é um filmaço. Resumido em poucas linhas é a história de um escritor argentino (Oscar Martínez), radicado há 40 anos na Europa, vencedor do prêmio Nobel de Literatura, cujos personagens de seus livros premiados foram inspirados pelas memórias cultivadas em sua terra natal. O filme abre com a cerimônia de premiação do Nobel, cujo discurso de aceitação já antecipa o temperamento do personagem que será escaneado até a última cena. Do seu calendário repleto de convocações para cerimoniais inócuos ao redor do planeta, surge o convite, a priori rechaçado, para uma visita a sua cidade natal a fim de receber o tal título de Cidadão Ilustre.

A partir do aceite, o eixo da narrativa se desloca definitivamente da modernidade da cidade grande para o conservadorismo campestre, retrógrado e antiquado. Logo que ele desembarca em território argentino, sucedem-se situações que evidenciam a precariedade dos meios, familiar a qualquer cidadão sul americano (as cenas são bastante inspiradas). A recepção calorosa, dotada de uma falsa sensação de hospitalidade, em contraste com a solenidade da cerimônia de premiação do Nobel, aos poucos começa a escancarar a sordidez que rege as relações entre os habitantes da cidade. A rispidez e a falta de tato no trato com as pessoas por parte do Cidadão Ilustre só fazem aumentar o abismo existente entre eles, levando parte dos cidadãos a se rebelar contra o figurão, acusado de abandonar suas raízes para explorar seus conterrâneos por meio dos personagens de suas publicações.

Quanto mais o Cidadão Ilustre interage com as pessoas, maior o desconforto gerado pela sua presença. Mesmo quando ele encontra antigos amigos, existe um ressentimento que paira no ar, dificultando a comunicação entre as partes. O não dito é sobrecarregado de mágoas e rancor, ainda que as aparências sugiram o contrário. À medida que a produção avança para o seu desfecho, a integridade de Oscar Martínez exerce um contraponto de resistência à corrupção latente dos habitantes da cidade de Sales. A criação artística, maltratada por àqueles que ditam as regras no município, é manipulada para promover o status quo, empurrando para baixo do tapete os talentos genuínos, sufocados pela mediocridade vigente. A cena final provoca uma reflexão ao sugerir uma nova interpretação para os fatos narrados. O cinema assume a condição de arte, ancorado na ambiguidade do discurso.