segunda-feira, dezembro 31, 2018

A Guerra do Vietnã (Ken Burns & Lynn Novick, 2017)




Só Deus sabe o que faríamos quando entrássemos naquele prédio. Algumas pessoas, os hippies, diriam que iriam fazer o prédio levitar. Outras pessoas queriam vandalizar o prédio. Outros queriam distribuir textos antiguerra no prédio, conversar com as pessoas. Só a ideia de entrar na sede dos militares dos Estados Unidos... foi a primeira vez que protestos antiguerra confrontaram pessoal em serviço militar. Não os considerávamos inimigos. Nós os considerávamos vítimas de guerra. Mas começamos a ver o nosso próprio governo como inimigo.
BILL ZIMMERMANN

O fim dos anos 60 pareceu a confluência de vários riachos. Havia o próprio movimento antiguerra, o movimento de igualdade racial, do meio ambiente, do papel das mulheres... e os hinos daquela contracultura eram feitos pelo rock n´ roll mais incrível que você possa imaginar. Não sei como poderíamos existir hoje como país sem aquela experiência. Com todos os defeitos, altos e baixos, aquilo gerou os EUA que temos hoje, somos melhores por isso. Eu me senti assim no Vietnã. Eu apoiava todas essas coisas. Aquilo representava o que eu tentava defender.
GENERAL MERRIL McPEAK


Minha memória bélica é totalmente moldada pela experiência cinematográfica. Tudo o que “aprendi” a respeito da Guerra do Vietnã foi assistindo Platoon (Oliver Stone, 1986), Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979), Nascido para Matar (Stanley Kubrick, 1987), Nascido em 4 de Julho (Oliver Stone, 1989), O Franco Atirador (Michael Cimino, 1978), Rambo: Programado para Matar (Ted Kotcheff, 1982), Rambo II: A Missão (George P. Cosmatos, 1985), etc. Outros filmes como O Sobrevivente (Werner Herzog, 2006), Bom dia Vietnã (Barry Levinson, 1987), Pecados de Guerra (Brian de Palma, 1989) e Southern Comfort (Walter Hill, 1981) vieram depois. Mesmo que alguns destes houvessem sido lançados junto com a primeira leva, o estrago já havia sido feito. Dos primeiros, assisti quase todos próximos de seus lançamentos, no calor da hora, exceto aqueles que foram lançados na década de 70.

Todos eles abordam um recorte do período da guerra que se estendeu por pelo menos 15 anos. Alguns deles nos colocam no front de guerra, outros nos bastidores; uns nos momentos que antecedem a convocação, outros no período de retorno à pátria; uns exploram o treinamento, outros o corpo a corpo; uns se voltam para os soldados, outros para as patentes mais elevadas. Todo esse pequeno arsenal de produções provocam no espectador reações de revolta, incerteza, injustiça, insegurança, loucura, insensatez, medo, etc.

Nenhuma dessas produções me preparou para o monumento cinematográfico que foi assistir às 18 horas de A Guerra do Vietnã. Todo o contexto político que antecedeu a guerra, os presidentes envolvidos e seus dilemas, a efervescência cultural dos anos 60, o movimento de contracultura, o movimento dos direitos civis, o rock n´roll, as drogas, o papel da televisão, o embate ideológico travado entre comunismo e capitalismo, a guerra fria..., está tudo lá, absolutamente tudo. Embora já faça uns 4 meses que terminei o documentário, o fantasma do seu conteúdo me atormenta até hoje. Passei a enxergar a influência do confronto em esferas que antes me pareciam mais desconexas, mais distantes. O legado é imenso e parece que foi devidamente documentado. Este foi certamente o melhor filme que vi em 2018.

sexta-feira, dezembro 28, 2018

Beau Travail (Claire Denis, 1999)



Eu flerto com Beau Travail já faz uns bons anos, pelo menos desde a descoberta de Denis Lavant dos filmes de Leos Carax. Antes da sessão dele, vieram outros trabalhos de Claire Denis, sendo Nanette e Boni (1996) o único anterior na cronologia da sua filmografia. Tenho pouca familiaridade com a carreira dela, embora eu conheça relativamente bem dois dos seus renomados “mentores”: Jim Jarmusch e Wim Wenders.

Denis não é exatamente uma adepta da escola narrativa (no sentido de contar uma história com início, meio e fim), seu cinema é mais guiado pelas emoções ou pela experiência física dos seus personagens, cuja forma se constrói basicamente na sala de edição. Por mais que todo filme respeite essa lógica, em Claire Denis essa questão é mais orgânica - diálogos escassos e câmera colada nos personagens.

Ainda que meu conhecimento a respeito da sua carreira seja pouco aprofundado, ele foi suficiente pra orientar minha expectativa de forma apropriada. O que significa dizer, especificamente, que o cinema clássico norte americano não seria o modelo estrutural adotado, embora o filme seja uma adaptação livre de Billy Budd, um clássico da literatura mundial, de Herman Melville.

Seus soldados da Legião Estrangeira Francesa me trazem à lembrança outros filmes que também exploram combatentes em permanente treinamento para enfrentar a guerra que nunca acontece, enquanto experimentam um misto de ansiedade e tédio. A referência máxima seria O Deserto dos Tártaros (1976), de Valério Zurlini, embora ele seja mais elitista (envolve o alto escalão) e quase metafísico na relação estabelecida como o tempo; em Beau Travail os soldados são rasos e o tempo não recebe um tratamento metafórico.

Os soldados de Beau Travail estão mais para deuses gregos de corpos majestosos, laborando incessantemente sob o sol escaldante litorâneo, enquanto encenam involuntariamente para colonos africanos que os observam num misto de admiração e indiferença. A experiência militar, comumente associada à destruição e ao extermínio, encontra em Denis uma abordagem renovada, de rara beleza plástica, sem cair na armadilha do discurso anti-militarista entremeado pelo próprio espetáculo (imagético) da guerra.

A enigmática cena final, em que Denis Lavant dança ao ritmo de “The Rhythm of the Night” do Corona, reforça a ambiguidade dos relacionamentos explorados até então. É certo que o ato que promoveu o seu desligamento da Legião gerou um impacto emocional, só não sabemos ao certo qual foi. Sua espontaneidade corporal desperta no espectador um sentimento contraditório de exaltação e desolação: a fluência e a elasticidade natural do seu corpo parecem ter sido abafadas pela disciplina e o rigor do treinamento militar. O toque de Claire Denis repousa nessa capacidade de extrair sensibilidade e beleza de um material que é, por natureza, bruto.

sábado, dezembro 01, 2018

República dos Assassinos (Miguel Faria Jr., 1979)


Tarcísio Meira (Mateus Romeiro): Querem me fazer pagar pelos erros de todos. Eu sou um policial Dr. Clemente. Acima de tudo eu sou um policial. Não é justo depois de tudo que eu fiz que me deixem apodrecer aqui dentro da cadeia. Foi por isso que eu mandei chamar o senhor aqui. Eu tenho que sair daqui.
Ítalo Rossi (Dr. Clemente): Você está nas mãos da justiça. Só ela pode....
Tarcísio Meira: A justiça não decide coisa nenhuma Dr. Clemente, o senhor sabe disso. Nós agimos antes da justiça. Só o que eu preciso é da ajuda dos bons amigos que eu tenho. Eu tenho bons amigos. O senhor, por exemplo, é ou não é meu amigo?
Ítalo Rossi: Vocês me traíram... traíram a minha confiança. Estão sabendo de tudo... até o Alcindo quer abrir o bico e falar com o promotor. Sei lá que histórias ele vai inventar....
Tarcísio Meira: O senhor sabe das histórias todas, sempre soube. Tá certo, o Alcindo é um bobo por querer abrir o bico, mas eu compreendo como ele está se sentindo. Engaiolado feito um bicho, um marginal qualquer, eu mesmo já tive vontade de mandar chamar esse promotor...
Ítalo Rossi: O quê?
Tarcísio Meira: Mas aí eu me lembrei dos bons amigos que eu tenho, e pensei... a minha obrigação é proteger os bons amigos. Porque mais cedo ou mais tarde, de um jeito ou de outro, eles vão me tirar da cadeia. A minha prisão foi um erro Dr. Clemente. Eu não devia estar aqui. Se não fosse aquela putinha, filha do seu amigo...
Ítalo Rossi: A moça está enganada, disse que você a sequestrou... foi isso o que ela contou para o pai.
Tarcísio Meira: Os dois são da mesma raça... não tenho dúvida disso. Ele vai ganhar uma cadeira no Senado e ela vai conseguir um babaca qualquer pra se casar com ela. Quanto a mim, eu não fico aqui... nem mais um dia. Pense bem sobre o assunto... o senhor é ou não é meu amigo?