É inegável que o filme de Bong Joon-Ho
exerce um vigoroso poder de sedução no espectador, com um viés para o
entretenimento que é invejável. O miolo do filme, que se passa praticamente
todo na casa dos patrões, tem alguns episódios que são realmente inspirados –
uma parte dessa vocação para o espetáculo lembra-me muito Steven Spielberg,
cuja filmografia mais recente demonstra um espírito crítico mais aguçado. Nesse
meio do caminho, os personagens da família do “andar de baixo” já exploraram a amplitude dramática
dos seus papéis, exatamente quando um elemento “externo” (posteriormente, esse adjetivo
assume a condição de "interno") aparece para desestabilizar as conquistas desse núcleo
central de tipos. Embora as análises do filme acabem se pautando pelo
discurso social que ele provoca, confesso que não é exatamente isso que me
chama a atenção nele - o que não quer dizer que essa questão seja desprezível.
Filipe Furtado, mais uma vez, descreve
com desenvoltura o que mais me chamou a atenção no conjunto do filme. O odor, o cheiro, que, por razões óbvias, costuma ser negligenciado pelos cineastas,
encontra uma abordagem muito criativa nas mãos de Bong Joon-Ho. Curioso que
quem desperta a atenção para esse ponto é uma criança – taí um dos pontos de contato
com a obra de Spielberg!
Por Filipe Furtado
“É esta noção de teatro social que o filme retoma o
tempo todo e a sua força vem das implicações que ele retira dela. Há uma ideia
recorrente por todo Parasita que é a do cheiro. O odor separa patrões e
trabalhadores e ameaça denuncia-los quando os segundos se escondem dentro da
casa. “O motorista fede”, o patrão reclama para a esposa e nesse momento não só
a distância entre eles aumenta e a possibilidade reconciliação de classes se
desfaz, mas qualquer encanto com a figura dos patrões se vai com ela, daquele
momento em diante Parasita deixa de ser uma alegoria pretensamente equilibrada,
a constatação de que o odor do outro incomoda equivale a uma declaração de
guerra e o filme toma um lado. Como o crítico americano Steven Erickson
mencionou numa conversa comigo, o cheiro é algo que escapa da mímese
cinematográfica. Se tudo aqui reproduz uma lógica social, o cheiro não pode ser
representado. É o único elemento que não pode ser encenado no teatro social. Os
gestos reproduzem a ordem social, mas o odor agride. Um bug no sistema, uma
quebra no aparato cinematográfico.”