domingo, maio 29, 2011

O filme de terror de Fassbinder









A julgar pelos rostos e enquadramentos de Roleta Chinesa (1976), de R.W. Fassbinder, temos um autêntico filme de terror. Mais do que a trama e seus desdobramentos, o jogo propriamente dito (a tal Roleta Chinesa) e as interpretações, é no trabalho de câmera do diretor de fotografia Michael Balhaus que o filme é todo fundamentado. Fassbinder sabia que o material que tinha em mãos requeria uma mise-en-scène carregada para se sustentar na tela, sendo assim investiu na construção da atmosfera do filme – o que o aproximou da estética do gênero terror. O resultado é um filme imperfeito, frouxo do ponto de vista dramatúrgico (curioso, já que se trata de um dos pontos fortes de Fassbinder - um roteiro que deixa a impressão de inacabado), porém altamente recompensador se analisado sob uma ótica puramente cinematográfica. A trama insiste em me deixar na mão, já as imagens...

A pequena Angela (Andrea Schober) lembra bastante a jovem possuída Regan (Linda Blair) de O Exorcista (1973), de William Friedkin. A sinistra governanta Kast (Brigitte Mira) e seu filho Gabriel (Volker Spengler) são perfeitos em suas caracterizações. P... filme!

sábado, maio 28, 2011

3 franceses


Tournée (Mathieu Amalric, 2010) – sinto dificuldade em escrever alguma coisa a respeito do filme e só me dei conta agora que me propus a registrar as minhas impressões. Se eu tivesse de escolher uma palavra pra resumir o filme de Amalric seria energia. Muita energia! O diretor, que também é o ator principal, se debruça com tanta paixão sobre o seu material (uma trupe de dançarinas de cabaré trazidas dos EUA para uma turnê burlesca em cidades francesas) que logo nas primeiras cenas estamos contaminados por ela. O trabalho de direção de atores é notável – decorrente da experiência de Amalric no ofício e dessa energia/paixão supramencionada. Somos pouco a pouco desarmados pelas interpretações: é um desfile de corpos disformes, grotescos, que geram um distanciamento inicial, mas gradativamente, à medida que nossos preconceitos são postos à prova, o que era ridículo/excêntrico se torna belo, formoso. Lembrou-me muito o Cassavetes de Amantes (1984). O filme é imperfeito, desigual, mas não por isso menos apaixonante.


Ricky (François Ozon, 2009) – ousado projeto do diretor Ozon. Tinha tudo para dar errado. Uma arriscada combinação de realismo e fantasia. Ele encontrou uma maneira bastante criativa de abordar um assunto corriqueiro/batido – a alteração da dinâmica familiar a partir do nascimento de um novo representante. A direção segura de Ozon evita que o elemento fantástico da trama chame toda a atenção para si. Quando ele é introduzido na narrativa do filme, próximo da metade da sua metragem, tudo o que vinha sendo construído até então não se perde nem se vê ofuscado, pelo contrário, ganha novos contornos e interpretações (fica mais interessante). A partir do nascimento do bebê Ricky, o filme, literalmente, ganha vida e alça vôo. Um verdadeiro achado.


Homens e Deuses (Xavier Beauvois, 2010) – a meu ver, o mais problemático dos três. O filme representou, para parte da crítica, o resgate de um cinema cristão há tempos adormecido, em desuso – para estes críticos, o filme poderia ser colocado ao lado dos melhores Dreyer, Bresson, Bergman. Apesar de ser um bom filme, denso, humano, não gostei tanto assim; o que mais me incomodou foi justamente a maneira como esse “cristianismo” é retratado. A crença dos monges é colocada à prova em uma situação limite: no meio de uma guerra civil eles se vêem forçados a confrontar seus medos, sua fé. O dilema apresentado pelo filme (abandonar o povoado e sobreviver ou, ficar e morrer pela causa), embora seja autêntico, é potencializado pela situação dramática - guerra civil - em que os personagens se encontram: a guerra legitima o cristianismo dos personagens de Beauvois. Não há nada de errado com isso, entretanto, nos dramas de Dreyer, Bresson e Bergman as dúvidas emergem de situações banais, corriqueiras; o mundo interno dos seus protagonistas é instável desde sempre. Em Beauvois, algumas cenas em tom solene (ex: o momento em que os monges, em close, brindam o vinho ao som do Lago dos Cisnes de Tchaikovsky) prejudicam o filme conferindo-lhe um tom artificial, forçado. Seu filme é cristão, não necessariamente seu cinema.
OBS: Antes que eu seja acusado de estar praguejando contra, devo reconhecer o mérito do filme em retratar uma guerra civil sem disparar um tiro sequer. A maior ameaça se dá por meio do som da hélice de um helicóptero (a melhor cena do filme).

domingo, maio 08, 2011

The Pawnbroker (Sidney Lumet, 1964)


Jesus Ortiz aponta para os números tatuados no braço de Sol Nazerman

Jesus Ortiz: You want to tell me something, Mr. Nazerman? What is that? That... is that a secret society or something?
Sol Nazerman: [hesitates] Yeah.
Jesus Ortiz: Well... what do I do to join?
Sol Nazerman: What do you do to join? You learn to walk on water.

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Na cobertura do obituário de Sidney Lumet a grande maioria das resenhas jornalísticas se referia a carreira do diretor dando ênfase ao seu caráter irregular. Embora seja de fato, todas concordavam que os seus pontos altos compensam, e muito, os seus deslizes. Verdade seja dita, não é fácil manter a cadência em trajetória tão prolífica como a de Lumet (seu primeiro filme para o cinema data de 1958, Doze homens e uma sentença e seu último de 2007, Antes que o diabo saiba que você está morto): são mais de 70 títulos entre televisão e cinema em mais de 60 anos de trabalho. Outros diretores, falecidos ou ainda em vida, também podem ser analisados sob o mesmo prisma: Raoul Walsh, Otto Preminger, Robert Altman, Woody Allen, etc. Até agora, só posso dizer que vi a nata da sua produção. Ainda tenho muito o quê conferir.

Melhor homenagem a um cineasta falecido do que assistir aos seus filmes não existe. Prestei a minha vendo The Pawnbroker (no Brasil ganhou o nome de O Homem do Prego).

Filme muito comentado nos círculos especializados, porém pouco conhecido do grande público. Talvez porque o seu protagonista seja Rod Steiger - não exatamente uma grande estrela de cinema, mais comumente lembrado pelas produções premiadas em que participou: Sindicato dos Ladrões (1954, Elia Kazan), em que foi nomeado a coadjuvante, e No Calor da Noite (1967, Norman Jewison), em que levou o Oscar como protagonista. É uma pena, já que boa parte da força do filme se vale da interpretação de Steiger. Aqui, ele interpreta um judeu sobrevivente de Auschwitz que perdeu toda a família no campo de concentração. Vivendo em Nova York, amargurado, solitário e descrente, toca uma loja de penhores num bairro não muito amistoso.

A caracterização de Nova York por Lumet beira a perfeição: um ambiente opressivo, humanamente devastado – ainda que não por completo (bem representado pela personagem de Geraldine Fitzgerald) – e muito bem captado pelas lentes expressionistas do fotógrafo Boris Kaufman. As cenas em que Sol Nazerman (Rod Steiger) perambula pelas ruas de Nova York ao som da trilha de Quincy Jones me lembraram muito as caminhadas de Jeanne Moreau no filme de estreia do francês Louis Malle, Ascensor para o Cadafalso (1958), com trilha de Miles Davis. O vazio interior dos personagens contrasta com a profusão de luzes que emana dos outdoors, fachadas, sinais e faróis.

As preocupações que norteavam o interesse dos cineastas americanos na década de 60 – a questão racial, violência, drogas, as minorias – estão todas presentes na produção, e, curiosamente, não ofuscam a jornada do personagem principal; chegam, na verdade, a servi-lo com precisão. Não há uma nota falsa sequer. São poucos os filmes que retratam os sobreviventes dos campos de concentração de forma tão honesta quanto este. Um grande filme a ser (re)descoberto. Salve Lumet!

quinta-feira, maio 05, 2011

Rio (Carlos Saldanha, 2011)


Já assisti ao filme duas vezes e em ambas experimentei a mesma sensação: exceto pela cena de abertura, meu interesse aumentava sempre que os personagens se encontravam em perigo - em meio a perseguições e fugas criativas, os realizadores aproveitaram para explorar a exuberância da cidade (seus pontos turísticos sobretudo). Quando me esforço para lembrar detalhes do que foi visto, ficam basicamente os personagens simpáticos e o visual deslumbrante - com mais ênfase neste último (em especial a cena de abertura - Ama-me esta noite (1932), de Rouben Mamoulian, e os números musicais de Busby Berkeley como referência óbvia - e a cena do vôo sobre o Cristo Redentor). Embora tenha gostado do filme, me parece ter faltado uma “liga”, um “quê a mais”, aquela sensação de que tudo funcionou, fluiu e/ou se encaixou.

Eu sei que já está meio tarde para um post de Rio e, honestamente, eu nem publicaria nada a respeito. Apesar de gostar dele, não me chamou a atenção a ponto de querer registrar qualquer coisa. Mas, eis que numa zapeada na internet, encontrei o melhor texto a respeito do filme e que de certa forma acabou me esclarecendo o que seria essa “liga” e esse “quê a mais” que eu senti falta durante a projeção. O texto do Daniel Caetano, cujo endereço do blog se encontra ao lado, é sutil, bem pessoal e vai direto ao ponto. Desde o instante em que o li, ele se tornou a minha referência para abordar o filme. Eu diria que ele acertou na mosca. Além do link, reproduzo o texto abaixo.

Por Daniel Caetano

28/04/11

Rio visto de longe

Como se sabe, as crianças costumam mostrar seu afeto por filmes de forma obsessiva. Não só elas, decerto, mas é comum que, durante a primeira infância, os pequenos elejam alguns filmes ou personagens para rever continuamente, várias vezes por dia. Pois bem, eis que Bernardo anda fascinado por Toy Story, o primeiro da série. Uma dúvida que já comentei com amigos é se rever diariamente um filme tão bom continua a ser algo interessante. Bem, a conclusão óbvia é que é melhor rever filmes bons do que filmes ruins. E nisso eu e a Carol não temos do que reclamar (ainda, pelo menos): além de Toy Story, Bezico gosta de clássicos como Pica-pau, Pernalonga e Pantera Cor-de-rosa, além de alguns recentes como Pocoyo e Pingu - foram ele e Carol que me apresentaram os filmes desses últimos, ótimos.

Aí eu estou aqui nos Estados Unidos e os gringos resolvem fazer um filme-exaltação do meu Rio de Janeiro - com direção de um carioca, ainda por cima. Legal, bacana mesmo. Também, com o apoio que os gestores do nosso cinema andam pra incentivar os gringos, só se eles fossem muito otários que não topariam. Bem, vamos descobrindo qual é o papel que nos sobra nesse carnaval.

Enfim, aí eu estou aqui em Providence e vou a um shopping-center (termo que a gente inventou em português pro que eles batizaram como mall) pra ver o Rio de Janeiro desenhado em três dimensões. Olha, é preciso reconhecer o valor, mesmo que seja de mercado: Rio é um produto excelente para incentivar o turismo, divulgando as belezas naturais e as características inatas e inalteráveis dos brasileiros, tais como a alegria e a musicalidade que já haviam sido mostradas ao mundo naquele filme do Walt Disney.

Mas o problema é que eu estou vendo e revendo todos os dias Toy Story, provavelmente o melhor longa metragem de desenho animado feito por aqui (junto com os outros dois da série), e aí não é preciso entrar numa discussão velha sobre os modos de representação da identidade brasileira no cinema estrangeiro. O problema do Rio não são as características de sempre, os tais estereótipos. O problema é de ordem dramática. Os personagens, bicho. Basicamente, a diferença entre os melhores filmes da Pixar e os demais.

Achei meio bizarro o garoto da favela não ter amigos nem ninguém da mesma idade por perto. O mesmo vale para os dois protagonistas humanos do filme, que também parecem não ter amigos no mundo. Por que razão economizaram tanto no número de personagens? Por falta de atores disponíveis? Do jeito que a história é apresentada, parece aquelas peças de teatro amadoras que cortam papéis por ter elenco reduzido.

De modo geral, o enredo segue o modelo esquemático de bons e malvados, modelo que em nenhum momento parece que vai sair do equilíbrio. Ok, é bem-feito, dá pra ler o manual de roteiro na tela, mas eu tenho visto e revisto Toy Story, justamente o que mexeu um pouco com esse esquema modorrento dos filmes de animação. No Toy Story a intriga não é provocada por um vilão malvado, mas por um vacilo grave do próprio protagonista; o vilão do filme é até uma figura curiosa, um menino que remonta (e reinventa) os brinquedos, mas a história não depende da malvadeza dele. Se já não está na moda e até pega mal fazer protagonistas tão implicantes, cruéis e divertidos como o Pernalonga ou o Pica-pau, nesses tempos politicamente tão corretos, o caminho que sobra para os bons desenhos animados é ter um pouco mais de complexidade, de sentimentos negativos. Foi essa a descoberta da Pixar.

Essa descoberta ainda não foi feita pelos seus concorrentes. Faça calor ou frio: a previsibilidade modorrenta de Rio é idêntica à de A era do gelo.

Já esse negócio de estereótipos, enfim, como já disse, a questão é compreender o papel que nos cabe. Seja como for, a beleza natural merece ser vista, e o filme certamente deve ajudar a trazer turistas, atraídos pelo que a gente tem de melhor.