quarta-feira, outubro 26, 2011

O Homem dos Olhos Frios (Anthony Mann, 1957)


A frutífera parceria entre o ator James Stewart e o diretor Anthony Mann rendeu oito filmes memoráveis. Especialmente os westerns da dupla figuram comumente entre os melhores exemplares do gênero e não raro representam a porta de entrada para a filmografia de Mann – meu acesso a sua obra se deu dessa forma e acredito que de boa parcela dos cinéfilos de plantão. Winchester ’73 (1950) estabelece o início dessa colaboração e da mudança de tom que os westerns experimentariam a partir do começo dos anos 50: eles viriam mais sombrios, ambíguos e complexos. Foi a década de ouro do gênero.

 O Homem dos Olhos Frios (1957) traz um gigante do faroeste, Henry Fonda, e um iniciante, Anthony Perkins - antes do registro que o tornaria famoso em Psicose (1960). Perkins é muito sofisticado para representar um xerife do século XIX, muito moderno para o papel, mas seria injusto dizer que se trata de miscasting. Embora suas feições e tipo físico não se encaixem no perfil do caubói do velho oeste (é mais um problema de aparência do que de desempenho), ele convence como aprendiz do veterano Henry Fonda. A produção cuidadosa, o roteiro bem amarrado e o elenco de apoio estão impecáveis.

Anthony Mann faz um trabalho soberbo de direção nos legando momentos memoráveis:

Sheriff Ben Owens: Uh, ju-just getting the feel of these guns.
Morg Hickman: Where's the sheriff? 

- a primeira aparição de Perkins (foto acima): Fonda (Morg Hickman) entra na delegacia a procura do xerife da cidade e encontra Perkins (Ben Owens) praticando, desajeitado, o saque súbito da arma. A câmera quase em contra plongée enquadra Perkins na frente e no fundo do quadro o pistoleiro Fonda. O efeito é irônico (quase cômico);


- a chegada da carruagem trazendo o corpo de John McIntire (foto acima), enquanto a cidade inteira celebra o seu aniversário;

- a emboscada que Fonda prepara para os assassinos de McIntire que se refugiam em uma caverna. Nada de armas e violência - antológico, na contramão da violência associada aos filmes de Mann;
Morg Hickman: [to Ben] Learn what to stay out of. If you step into a fight, make sure you’re the better man. Paste this in your hat: a gun’s only a tool. You can master a gun if you got the knack. Harder to learn men.
- a longa espera de Perkins e Fonda dentro da delegacia (enquanto o bando de pistoleiros se embebeda para enfrentar o xerife e liquidar os assassinos de McIntire) e o duelo final.

sexta-feira, outubro 21, 2011

A palavra, de Dreyer

A Palavra (1955), de Carl Theodor Dreyer

"...Esta é a grandeza de A Palavra: quando o "milagre" acontece, o filme já conquistou nosso respeito por sua integridade - compreendemos as pessoas na tela, pois suas atitudes, emoções, pensamentos e dúvidas são como as nossas. E, quando Inger abre os olhos novamente, provavelmente sentimos exatamente o mesmo que elas: assombro, felicidade e uma admiração genuína. Pois, mesmo que A Palavra não consiga nos converter à crença religiosa, teremos testemunhado arte cinematográfica de primeira grandeza."
Geoff Andrew

domingo, outubro 16, 2011

O melhor de Trabalhar Cansa

Zapeando na net encontrei o melhor texto de Trabalhar Cansa que consegui encontrar.

Foi escrito por Fernando Watanabe em seu blog e acabou sendo aproveitado pelo Cinequanon (onde eu o encontrei).

Na minha opinião, ele dá conta do recado excepcionalmente bem.



Por Fernando Watanabe

O filme possui vários planos que começam com o quadro vazio, como se o espectador devesse observar os espaços antes da ação propriamente dita começar. Ainda (e agora é uma interpretação minha), esse mecanismo, usado repetidas vezes nos espaços principais do filme, materializam em mise-en-scène uma ideia essencial que permeia o filme, ideia esta que talvez seja uma visão de mundo: os personagens são títeres de um jogo (de cartas marcadas), prisioneiros de um sistema, peões que se movem num tabuleiro demasiado fechado. E claustrofóbico.

Duas frases do filme:

"A gente coloca uma tela pra disfarçar". Disfarçar, no caso, a sujeira e a ruína sob a qual está erguida a estrutura do supermercado. Por trás dos atraentes produtos, da fachada brilhante e do papai noel que dança feliz, há sujeira, muita sujeira. 

"Não brinca com isso, filha, tem muita sujeira". Helena, ao reprimir a filha que brincava com o dinheiro do caixa, dispara a frase que contém o filme em si. 

O filme com sua câmera clínica diagnostica a melancolia e a apatia, sintomas detectados (ao modo de um cirurgião, porém um cirurgião pouco invasivo, distanciado, mais clínico) principalmente em uma classe, a média.(Aliás, que legal assistir um filme que mostra a classe média sem a iluminação "30 refletores por cena" da Globo Filmes e também sem a degradação doentia do arnaldo jabor rodriguiano.)

A questão de classe me chamou muita atenção. Por mais que os três principais personagens secundários da "classe baixa" estejam de alguma forma oprimidos pela lógica do dinheiro, todos eles possuem momentos de alegria: o rapaz que trabalha para Helena e termina demitido, em certo momento, ao fundo de um plano beija sua namorada (enquanto em primeiro plano o casal classe média está preocupado, sempre preocupado...). A senhora que trabalha no caixa é uma piriguete animada com o novo "pretendente" com quem está saindo. A empregada doméstica se encanta com o carnaval, e a sua irmã planeja uma pegação com um rapaz. Eles têm tesão. Já o casal da classe média só esboça fazer sexo no momento em que eles conseguem um sucesso voltado ao dinheiro: é quando Helena consegue alugar a loja para abrir o seu negócio.

Portanto, as individualidades estão reprimidas por um mundo guiado pela racionalidade utilitária que não encontra alegria em nada que não leve a "progressos" materiais (Preocupados, sempre preocupados demais).

Momento forte: Helena assiste o desfile das escolas de samba na TV ao lado da empregada doméstica. A segunda se encanta. Já a primeira é incapaz de ser alegre, incapaz de se apaixonar, incapaz de amar qualquer coisa de modo puro: já se encontra esgotada pelas preocupações que a lógica capitalista que rege não apenas seu trabalho, mas sua VIDA nos mínimos detalhes, causa em sua mente. Mente exausta, corpo exausto. Mente robótica (inconsciente), corpo autômato. Paralisado. Impotente.

A crueldade do dinheiro chega ao ponto de degradar as relações humanas, e isso fica mais acentuado quando helena grita para Otávio "Tá com medo que sua filha ache que você é um bosta? (por não conseguir emprego)". Isso me lembra "L`Argent"(O Dinheiro) e "Le Diable, Probablement" (O Diabo, Provavelmente), as obras máximas desesperadas do final da vida de Robert Bresson.

Estilisticamente, o filme é Bresson + Hitchcock + Haneke + Jelinek + um monte de coisa que não conheço. Ao mesmo tempo, tem uma cara própria, a cara de uma parcela da juventude brasileira contemporânea que, no mundo, tal qual ele se encontra, está e sempre estará fora de casa. Ainda assim, essa juventude (a nossa?) é privilegiada (ou não?) por poder, alegremente (o filme tem senso de humor), paralisar o relógio que marcha e criar nesse lapso de tempo uma zona de inconformismo criativo.

quinta-feira, outubro 13, 2011

Bróder (Jeferson De, 2010)



Felizmente a Mostra Permanente de Cinema Brasileiro do Cine Cauim em Ribeirão Preto está de volta. Depois de um longo hiato de alguns bons meses, uma parte dos lançamentos nacionais restrito ao circuito alternativo começa a aportar no melhor cinema da cidade. Melhor de tudo é a presença dos diretores e/ou atores das produções no bate papo que rola após a exibição do filme, viável somente pela parceria firmada com o SESC.

No mês de agosto eu perdi a data de Estamos Juntos (2011), de Toni Venturi, e muito provavelmente devo perder a data de Natimorto (2010), de Paulo Machline, no mês de outubro. Embora eu já tivesse visto Estamos Juntos, nada como uma sessão de perguntas e respostas com o mentor do projeto. O Natimorto parece que está fugindo de mim: perdi sessões em São Paulo (optei na ocasião por assistir a Bolywood Dream, de Beatriz Seigner) e a exibição no Cinemark de Ribeirão Preto.

Em setembro consegui comparecer no dia em que Bróder (2010), de Jeferson De, foi apresentado. No filme, três amigos de infância que respondem por Macu (Caio Blat), Jaiminho (Jonathan Haagensen) e Pibe (Silvio Guidane) se reúnem na casa de Dona Sônia (Cássia Kiss), mãe de Macu, pra celebrar o aniversário deste. Embora todos sejam filhos do Capão Redondo (distrito pertencente à subprefeitura do Campo Limpo, na cidade de São Paulo), apenas Macu ainda reside na região como morador - cresceu fora do eixo familiar e às margens do crime. Nas inúmeras conversas de esguelha que ele mantém com um sujeito estranho à comunidade, não tarda para que compreendamos que algo errado está sendo planejado – o entusiasmo de Jeferson pela obra de Shakespeare não nega fogo, a tragédia se fará presente.

Jaiminho é um futebolista bem sucedido – vestindo a camisa de um time espanhol - em passagem pelo Brasil para comemorar o aniversário de Macu. Pibe é o único dos três que leva uma vida ordinária: casado, com um emprego fixo e pai de uma criança. Desse encontro não tão improvável entre três amigos de infância, Jeferson De dramatiza o que ele considera os três únicos destinos reservados aos brasileiros hoje em dia: o comum (meu, seu, o dele, de um número expressivo de pessoas e de Pibe), a criminalidade (Macu) ou a fama (Jaiminho). O projeto ficou engavetado durante uns dez anos e assumiu diferentes versões ao longo do tempo. A direção de Jeferson é tão segura que nem se nota que estamos diante da estréia do diretor em longas metragens. Ao contrário do que foi amplamente divulgado na mídia quando do lançamento do filme, Jeferson não cresceu na periferia de São Paulo, nasceu e passou a infância em Taubaté, interior do estado. Seu contato com o Capão Redondo veio mais tarde, quando cursava cinema na USP.

Jeferson não queria abordar o racismo de maneira direta; a ideia era fazer um filme que não soasse panfletário, em que a questão do negro fosse explorada de forma menos sensacionalista e mais honesta, o mais fiel possível a realidade. Seu ponto de partida foi abordar algo que sempre lhe chamou a atenção: o conceito de negritude. Na conversa com o público presente no Cauim ele fez a seguinte pergunta: “O que é a negritude?”, após um silêncio constrangedor ele mesmo respondeu, “Negritude todo mundo sabe o que é: a capoeira, a feijoada, o blues, o samba, etc. E a branquitude?”, silêncio de novo... “Ninguém sabe.” O personagem de Macu, branco, incorpora essa ideia, ele representa esse desejo do branco de “se tornar negro”, de se fundir a esse conjunto de valores culturais do mundo negro e se apropriar deles.

A propósito dessa ideia, ela me remete a uma cena (que resgato da memória) do ótimo Faça a Coisa Certa (1989), de Spike Lee, cuja influência no cinema de Jeferson De se faz notar claramente. Nela, um jovem negro residente do Brooklyn em Nova York questiona o filho do proprietário de uma pequena pizzaria do bairro (John Turturro), branco, a respeito dos retratos pregados na parede do estabelecimento de seu pai (Danny Aielo): Michael Jordan, Sidney Poitier, Martin Luther King, Magic Johnson, etc. Ele não consegue entender como um empresário branco bem sucedido, de mente supostamente sã, é capaz de eleger como ídolos somente cidadãos de descendência negra. Ele fica inconformado por não haver quadros de personalidades brancas em um território predominantemente branco. No cinema de Spike Lee o racismo é uma via de mão dupla e representá-lo é tão difícil quanto reconhecê-lo.

O cotidiano do Capão Redondo retratado pelo filme não enxerga a fronteira entre o branco e o negro. A pobreza não tem cor. Isso proporciona a Jeferson liberdade para brincar com os estereótipos raciais e lhe confere margem para invertê-los sem descaracterizá-los: o criminoso é o branco; o jogador de futebol é o negro. Não que essa opção tenha distanciado o seu filme da realidade (muito pelo contrário), mas é certo que o inverso aproximaria sua abordagem de um discurso racial de apelo mais fácil. Justamente o que Jeferson tentou evitar. O preconceito tarda a aparecer e quando dá as caras não poderia ser melhor representado: quando os três amigo são parados pela polícia em uma blitz rodoviária só Pibe e Jaiminho são convidados (na base da força) a sair do carro, Macu é poupado dos excessos da corporação.

Na condição de negro, Jeferson contou, em tom irônico, que havia encontrado a melhor forma de evitar que fosse confundido com um ladrão enquanto caminhava pelas ruas da capital paulista: “o negócio é andar sempre de óculos e com um livro debaixo do braço, negro intelectual não faz parte do imaginário comum”.

É curioso como mesmo depois de duas semanas da projeção a presença enigmática de Cássia Kiss ocupe a maior parte das minhas lembranças do filme. É impressionante como ela confere grandeza a uma personagem que ocupa a tela por poucos instantes (embora seja central na trama do filme). Como bem lembrou Jeferson, o encontro dos três amigos só acontece por causa do convite de Dona Sônia – o trágico elevado ao quadrado. A cena dela com a filha é uma das mais fortes que vi no cinema atualmente. E claro, Caio Blat está cada vez melhor, pra não dizer perfeito.

sábado, outubro 08, 2011

Trabalhar Cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2011)



A produção de longas metragens nacionais anda a todo vapor. O caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo na edição da última terça feira, dia 04 de outubro, publicou em sua capa uma matéria extensa do cinema independente nacional que, mesmo em escala ínfima, conseguiu chegar às telas dos cinemas da capital paulista. São produções da Alumbramento (Estrada para Ythaca, Os Monstros), do Teia (Girimunho), da Filmes do Caixote (Trabalhar Cansa) e da Duas Mariola (A Fuga da Mulher Gorila, A Alegria). Pra minha surpresa (e bota surpresa nisso) Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra, estreou no cinema de Ribeirão Preto. E, curiosamente, não foi no Cauim, que eventualmente serve de espaço para essa produção periférica. Embora eu saiba que isso não represente muita coisa, só o fato de eu não precisar me deslocar até São Paulo ou aguardar a estréia do longa-metragem no Canal Brasil já serviu de consolo. Pena que, a julgar pelo público presente na sessão em que eu estava, a carreira do filme nas telas de Ribeirão Preto não deverá durar muito.

Eu gosto bastante desses filmes que se vendem como um determinado produto, ou gênero talvez, e acabam se mostrando bem mais complexos do que aparentam. Normalmente são filmes que atraem o público por determinadas características (naturalmente atrativas, por meio de clichês, por exemplo), e acabam fazendo uso delas para explorar outras esferas de interesse não circunscritas apenas ao apelo comercial que levou tal público a procurá-lo. Às vezes, o resultado cheira a enganação, fazendo jus à expressão “comer gato por lebre”; em outras, nos leva a reflexões que não teriam o mesmo impacto caso o tratamento dado fosse mais convencional – aqui, o gênero potencializa o efeito do filme, se mostrando como a opção mais adequada para fazer o filme “funcionar”.

Trabalhar Cansa se enquadra perfeitamente no segundo grupo: aproveita o gênero fantástico pra extrair alguma coisa (bastante relevante) a mais da fórmula. A exploração do gênero, nesse caso, evita que o filme soe demasiado panfletário, contribuindo para amenizar o “peso da mensagem”. Nem tudo é dito e/ou esclarecido, de forma que cabe ao público estabelecer as associações entre os elementos dispostos para conferir sentido ao que se vê. Nada é imposto ao espectador, tudo é sugerido.

O filme acaba fazendo uma poderosa reflexão a respeito das relações de trabalho no mundo moderno. Quem quer que veja o filme, se identificará com alguma ocorrência semelhante em sua própria vida. A comicidade surge do absurdo de determinadas situações a que os personagens se sujeitam, em especial o Otávio de Marat Descartes. A cena final me lembrou o grito desesperado de Peter Lorre na obra-prima de Fritz Lang, M, O Vampiro de Dusseldorf (1931). De alguma forma, enquanto eu assistia, minha referência era O Corte (2009), de Costa-Gavras – talvez pela temática e o humor (negro) associado à abordagem. Melhor referência fez a reportagem da Folha ao associá-lo ao universo de Joon-ho Bong (O Hospedeiro e Mother – A busca pela verdade). Mais justo!