Como
deve ter sido com a maioria dos cinéfilos nos últimos dias, entre choros e
lamentações cada qual saiu em busca de um filme de Carlos Reichenbach para
assistir como forma de lhe prestar homenagem. Para alguns a sessão escolhida representou
uma descoberta, para outros uma revisão e há ainda aqueles que o fizeram simplesmente
para matar a incipiente saudade. Eu me satisfiz com uma cópia de Anjos do Arrabalde (1987), gravada o ano
passado no Canal Brasil. O filme era inédito para mim. Mesmo desrespeitando o
formato original da película (apresentado em 4:3, ao invés do 1.85:1), essa
limitação não foi capaz de comprometer o trabalho do grande diretor.
Eu
estava disposto a escrever alguma coisa a respeito do filme nesse post, mas encontrei um formidável texto de Andrea Ormond na internet que me desencorajou a fazê-lo. Embora eu esteja
habituado a ler suas críticas na Revista Cinética, ainda não conhecia o seu blog
no http://estranhoencontro.blogspot.com.br.
Não dá pra ser muito melhor do que isso.
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Por
Andrea Ormond
A
cinematografia de Carlos Reichenbach requer um alerta permanente. Ao
assistirmos a seus filmes cruzamos as fronteiras da Mira-Celi tropical, ilha em
que Thomas Moore, Bakunin, Fuller, Godard e Reich reúnem-se para conversar.
Têm, à sua direita, Luiz Sérgio Person – figura importante nos anos de formação
do diretor –; à esquerda, A. P. Galante – produtor de muitos projetos. No meio
de tudo, Reichenbach, cuja ânsia de fazer cinema é a peça de resistência de uma
obra a ser ainda muito estudada.
Escolhi
Anjos do Arrabalde: As Professoras (1987)
para iniciar este trabalho de investigação, porque encontro nele uma ponte para
a alma feminina, temática que já havia sido delineada anteriormente em Lilian M., Relatório Confidencial (1975)
e é retomada em Garotas do ABC (2003).
Entenda-se que o universo ficcional do criador não é dividido em fases
estanques, as informações dialogam, e o critério que utilizo é meramente
organizacional, de modo a facilitar a abordagem das personagens centrais de Anjos...: Dália (Betty Faria), Rosa
(Clarisse Abujamra), Carmo (Irene Stefania) e Ana (Vanessa Alves).
Dália e
Rosa são professoras do sugestivo “Colégio Estadual de 1o. Grau Luiz
Sérgio Person”. O “arrabalde”, a
periferia, em que vivem, está à margem da capital paulista, transformando-se em
uma espécie de paróquia, na qual violência e primarismo são elementos
constantes.
O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de Filme Demência/1986), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.
O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de Filme Demência/1986), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.
A violência é, por outro lado, fonte de
discussão do início ao fim da trama. Assistimos, já nos primeiros segundos, ao
desfecho de um estupro, em que a vítima (Ana), largada no matagal, desmaia, e
em seguida surgem os créditos de abertura. Afonso (Ricardo Blat), irmão
problemático de Dália, drogado, é currado por traficantes, aumentando ainda
mais a condição de ente enigmático, zumbi que finalmente deságua o desespero na
belíssima cena em que procura os seios da irmã, em clara nostalgia edipiana.
Há uma
qualidade naturalista no
filme – “eu me sinto bem na periferia, aqui eu sinto cheiro de gente”, diz
Carmona (Emilio di Biasi, Mefisto de Filme
Demência). Ela é combinada às conhecidas epifanias, marcantes na trajetória
do diretor.
Um
simples final de semana na praia, por exemplo, é retratado com toques
experimentalistas. O lúmpen tira
foto, come frango, faz o ritual de praxe, mas a montagem acentua a estupidez do
circo. Carmona, amante casual de Dália, funciona aqui como o bufão embriagado
que em momento de catarse esbraveja contra todos. Convém lembrar que a rubrica
de “Week-end” é colocada na tela para marcar este capítulo da ida ao litoral,
ensejando uma evidente subversão dos filmetes comerciais que vendem a imagem
das famílias felizes em temporada de férias. Por um instante imaginei ter visto
ali perto, na mesma rua, Roberto Miranda (alter-ego do diretor) antes da
chegada da espiã-jornalista, em A Ilha
dos Prazeres Proibidos (1979).
O
argumento original de Anjos do Arrabalde
deve-se em parte ao que Reichenbach ouvia de Ligia, sua esposa – dentista da
rede de saúde pública, aparece rapidamente em uma ponta no filme, como a
dentista do colégio. A brutalidade demonstrada nas telas é, portanto, fruto de
empirismo e apuramento estético, que transforma em obra de arte o cotidiano da
baixa classe-média.
No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar despercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na Ilha.... há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em Anjos... concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.
No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar despercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na Ilha.... há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em Anjos... concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.
A aluna
lê em voz alta com o livrinho em punho, Rosa repete o texto em solilóquio,
corta lentamente os pulsos com uma navalha, é vista – alguns quadros depois – à
beira de um precipício, numa aparição fantasmagórica. Ressalte-se que a tensão
criada pelo autor nesse contexto é importantíssima, fazendo emergir símbolos
claramente contraditórios, envolvendo punição, morte, vazio, de um lado; e, de
outro, amor, infância e suposta doçura das “tias” em sala de aula.
Um
aspecto a ser, por fim, sublinhado em Anjos
do Arrabalde é o elenco. Vanessa Alves, em especial, como a psicótica
manicure, abandonada pelo pai, violentada, perdida, traz uma dimensão extra ao
filme. O olhar é distante, a fúria do corpo, diria João Gilberto Noll, torna-a
uma possessa, caminhando pelas ruas estreitas do bairro. Em Anjos do Arrabalde a tragédia dos
personagens não é contingenciada, ela é marca do filme, anda à solta. E nela
reside a premissa de torná-los, indiscutivelmente, humanos.
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Vale dar uma conferida no texto do Daniel Caetano também. A homenagem mais criativa de todas - A Prova dos Nove, 20/06/2012.