Enquanto eu aguardo ansiosamente
a chegada do meu primeiro filho, o que me forçou a abdicar da Mostra de São
Paulo desse ano, tenho procurado acompanhar a cobertura do evento nos diversos
blogs e sites especializados listados neste espaço. Como de hábito, a oferta é
vasta. É estimulante ler o relato do Rafael Carvalho, blogueiro do Moviola
Digital, que se deslocou de Salvador pela primeira vez para acompanhar a maratona
na capital paulista. Não há como não se contagiar pelo entusiasmo da descoberta:
da Mostra, de São Paulo, das sessões, dos cinemas, dos filmes. Mesmo pra quem
frequenta o evento há algum tempo, a despeito das inevitáveis decepções, é
sempre revigorante vivenciar todo esse frisson
novamente. Nem que seja por intermédio de outros.
Snake Plissken (Kurt Russel) em Fuga de Los Angeles (1996) |
A redenção
Na minha última visita a capital,
há três semanas, tive a sorte de pegar dois filmes da mostra John Carpenter que
passava no Cinesesc – o Festival do Rio homenageou o diretor com uma
retrospectiva de seus filmes e disponibilizou as cópias para exibição no
Cinesesc de São Paulo por uma semana. Confesso que nunca nutri o devido apreço
pela obra do diretor chegando até mesmo a desmerecer ocasionalmente parte do
prestígio que a crítica sempre lhe conferiu. Passado o período de contestação e
desconfiança veio o momento de aproximação e reconhecimento: o velho preconceito
que insiste em dar as caras mesmo diante das incontestáveis evidências de sua
excelência.
Curiosamente, esse ano marcou
minha aproximação definitiva do universo não só de Carpenter, mas também de
Cronenberg e Romero, cujas carreiras foram descritas por Olivier Assayas como “o
análogo cinematográfico do punk rock” - citação do blog do Filipe Furtado. “Para
além de todos os clichês a respeito das longas deambulações, do realismo e dos
tempos mortos que geralmente anima comentários sobre este cinema, há um forte
elemento de filme de horror que passa por boa parte deles”, sugere Furtado ao
aproximar a atmosfera de Água Fria
(Olivier Assayas, 1994) do cinema de horror produzido na América do Norte
(Carpenter, Cronenberg, Romero). O terror de que eles se servem está muito
longe daquele que domina as produções mais comerciais de hoje em dia. O gênero para
eles nada mais é do que a moldura sob a qual suas ideias serão dispostas. Esse
formato, que atende a convenções específicas, não limita nem tampouco impede
que essas ideias sejam convenientemente trabalhadas. Pelo contrário, ele até potencializa
seus efeitos - seu emprego não raro vem associado da ironia, resultando cômico
sem nunca perder o viés crítico.
“Na França, sou um autor. Na
Inglaterra, um diretor de filmes de gênero. Nos Estados Unidos, um vagabundo.” Essa
cáustica autodefinição resume o desacordo entre John Carpenter e a indústria
norte-americana (blog do José Geraldo Couto) e é o retrato perfeito de um de
seus melhores personagens (e também alter ego): Snake Plissken (Kurt Russel) em
Fuga de Nova York (1981) e,
sobretudo, Fuga de Los Angeles (1996).
Ele é um outsider, um outlaw, um vagabundo que só vê seus
serviços serem contratados quando não há mais ninguém a quem recorrer. Na
ordem, ele é dispensável; no caos, ele é valioso. As instituições, como de
hábito em Carpenter, não são confiáveis, restando aos marginalizados a tarefa de restaurar a ordem. O grau de descrença do diretor em Fuga de Los Angeles é tamanho que não há como diferenciar o
presidente dos EUA (Cliff Robertson) do terrorista Cuervo Jones (Georges
Corraface), sendo a única solução cabível definitiva para o dilema moral que
nos acomete o desligamento de todas as fontes de energia do planeta. A única
crença possível é a de que pra arrumar a desordem de vez só começando do zero. Carpenter
empilha referências do western e do
policial filmando com o mesmo rigor e desenvoltura de um de seus maiores
mentores: Howard Hawks.
Enfim, blockbuster com classe e elegância, diversão e entretenimento de
qualidade, cada vez mais raro nos dias de hoje.
Dark Star (1974) foi uma agradável descoberta, um filme que eu
desconhecia completamente. É a prova cabal de que a combinação de parcos
recursos com muita criatividade pode render bons frutos. O embrião da obra de
Carpenter já se encontrava todo germinado nessa produção.