Eu seria muito desonesto se
atribuísse o meu apreço inicial pelas músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil
no início dos anos 90, período em que eu entrava na adolescência, ao aspecto
experimental e inventivo que caracterizou o movimento
tropicalista no final da década de 60. O que me levou a elas – e imagino
que o mesmo se passe com outros marmanjos de plantão – foi a influência de um
namoro na ocasião. Sendo assim, minha relação com essas músicas era de ordem
meramente afetiva, ainda sem o interesse despertado para a reflexão
(proporcionado pelas letras e o comportamento dos artistas). Eu levei um bom
tempo pra digerir e entender a dimensão da influência do tropicalismo na música popular brasileira, que configura a parte
mais óbvia do movimento, e só agora, com o lançamento de Tropicália (o filme), é que ficaram mais claras suas reverberações
pelas artes plásticas (Helio Oiticica), o cinema (Glauber Rocha) e o teatro
brasileiro (José Celso Martinez Côrrea). Em suma, evidenciaram-se os reflexos de
sua contribuição na vida cultural do nosso país. O maior mérito do filme, entre
os inúmeros que o qualificam, é deixar bem claro que a transformação que estava
em curso era sobretudo imagética, sustentada pela incipiente e por vezes ousada
programação televisiva.
Desde esse período que estabelece
meu primeiro contato com os artistas baianos, os dois músicos, especialmente
Caetano Veloso, colecionaram uma legião de detratores e patrulheiros de plantão,
fruto do desgaste natural de suas obras (envelhecimento talvez?) bem como da
exposição excessiva a que se sujeitaram nos meios midiáticos, forçando-os a opinar
sobre tudo e sobre todos como autênticos doutores – eu não consigo me lembrar
de um documentário musical recente em que o depoimento de Caetano Veloso não
tenha sido levado em consideração! Além disso, em meados dos anos 80 as
carreiras de ambos já não gozavam da mesma força e intensidade de outrora e o
rock vigente contestatório é que dava as cartas na mesa. Dessa fase em diante,
que estabelece o último suspiro da música popular brasileira – a não ser por
uns momentos isolados (ex: Chico Science) -, o nível do que apareceu no mercado
só veio ladeira abaixo.
Nesse cenário de opiniões
extremadas e divergentes, de duas forças quase opostas que duelam ora para defendê-los,
ora para enfraquecê-los, não deixa de ser mais do que oportuno o aparecimento
de Tropicália (o filme). E, antes que
continuemos, é importante que se faça justiça ao realizador e aos protagonistas:
resultou num puta filme. Ele desarma o espectador mais desconfiado possível a
ponto de não haver uma alma viva, seja defensor ou detrator, que não se
emocione com Caetano Veloso cantando Asa
Branca (Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira) em pleno exílio forçado em Londres – o trecho veiculado no filme,
disponível no YouTube, é um especial para a TV francesa. Vê-lo aleatoriamente
na internet já é emocionante, o que o diretor Marcelo Machado faz é situá-lo
dentro do contexto da obra de Caetano Veloso, e por consequência do movimento tropicalista, num crescendo
narrativo poderoso e envolvente que culmina com esse momento antológico.
Basicamente, ele devolve a esse instante, e aos demais que pontuam a trajetória
do movimento, toda a sua razão de
existir. Ele desconstrói pra reconstruir. Está tudo lá: Caetano e Gil, Gal
Costa e Maria Bethânia, Tom Zé e Os Mutantes, o maestro Rogério Duprat, o
cinema de Glauber e Sganzerla, o Meteorango
Kid de André Luis Oliveira e o Hitler,
III˚ Mundo de José Agripino de Paula, os parangolés de Oiticica, o
teatro de Zé Celso, as letras de Torquato Neto, etc.
Os depoimentos permanecem em voice off por quase toda a extensão do
filme, pontuados por imagens de
arquivo oriundas da programação televisiva, até que se instaura o Ato
Institucional - N˚5, quando interrompe-se
o ritmo alegre que prevalecia até então, e os entrevistados, de corpo
presente em registros contemporâneos, aparecem iluminados contra um pano de fundo preto. Esse
rompimento de ritmo, intencional, estabelece o momento em que o movimento começa a enfraquecer-se diante
das perseguições e censuras impostas pelo governo ditatorial. O que mais
impressiona é a lembrança do que fica depois de findada a sessão. Embora a
maior parte das imagens seja em preto e branco, a energia que emana delas é tão
presente e impetuosa que as recordamos como se estivessem em cores.
O Heitor Augusto abre a sua
resenha do filme na Revista Interlúdio com um resumo certeiro de sua proposta,
“Além do óbvio apelo musical, Tropicália
mostra mais força ao mapear como os encontros de personalidades e propostas
musicais diversas refletiam o humor de uma juventude que tencionou as relações
e apontou as caretices”. Termina fazendo um comparativo entre os documentários
musicais que de uma forma ou de outra abordaram o efervescência criativa do
período, “Como narrativa cinematográfica, vejo este filme assumindo mais riscos
do que Uma Noite em 67. Mesmo assim,
não é preciso negar um para afirmar o outro. Uns preferem a teleobjetiva, como Loki – Arnaldo Baptista; outros, uma
lente com campo de visão um pouco maior, casos de Uma Noite em 67 e Fabricando
Tom Zé; tem também os que falam do Tropicalismo sem necessariamente
colocá-lo no centro, como Simonal –
Ninguém Sabe o Duro que Dei; vale registrar os que vêm na esteira do
tencionamento comportamental, como Dzi
Croquettes”.
Num espectro mais amplo de
análise, ainda considerando-se a recente leva de documentários musicais
produzidos no Brasil, acredito que o único capaz de fazer frente à Tropicália seja O Homem que Engarrafava Nuvens (2009), de Lírio Ferreira. Ainda que
ambos sejam favorecidos pelos seus incontestáveis objetos de pesquisa, a
Tropicália no primeiro e o compositor Humberto Teixeira no segundo, nenhum
outro traçou um panorama tão apaixonante e fecundo da música popular brasileira
como esses. Além disso, ambos são extremamente eficazes ao despertarem um sentimento que raramente nos habituamos a provar: o orgulho genuíno de ser brasileiro.
Tô louco para ver esse documentário...
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Imperdível Nahud e o que mais impressiona é o fato de ele ser costurado praticamente com imagens de arquivo. Foge bem ao modelo dos documentários musicais recentes.
Excluir