sexta-feira, outubro 12, 2012

Tropicália (Marcelo Machado, 2012)



Eu seria muito desonesto se atribuísse o meu apreço inicial pelas músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil no início dos anos 90, período em que eu entrava na adolescência, ao aspecto experimental e inventivo que caracterizou o movimento tropicalista no final da década de 60. O que me levou a elas – e imagino que o mesmo se passe com outros marmanjos de plantão – foi a influência de um namoro na ocasião. Sendo assim, minha relação com essas músicas era de ordem meramente afetiva, ainda sem o interesse despertado para a reflexão (proporcionado pelas letras e o comportamento dos artistas). Eu levei um bom tempo pra digerir e entender a dimensão da influência do tropicalismo na música popular brasileira, que configura a parte mais óbvia do movimento, e só agora, com o lançamento de Tropicália (o filme), é que ficaram mais claras suas reverberações pelas artes plásticas (Helio Oiticica), o cinema (Glauber Rocha) e o teatro brasileiro (José Celso Martinez Côrrea). Em suma, evidenciaram-se os reflexos de sua contribuição na vida cultural do nosso país. O maior mérito do filme, entre os inúmeros que o qualificam, é deixar bem claro que a transformação que estava em curso era sobretudo imagética, sustentada pela incipiente e por vezes ousada programação televisiva.

Desde esse período que estabelece meu primeiro contato com os artistas baianos, os dois músicos, especialmente Caetano Veloso, colecionaram uma legião de detratores e patrulheiros de plantão, fruto do desgaste natural de suas obras (envelhecimento talvez?) bem como da exposição excessiva a que se sujeitaram nos meios midiáticos, forçando-os a opinar sobre tudo e sobre todos como autênticos doutores – eu não consigo me lembrar de um documentário musical recente em que o depoimento de Caetano Veloso não tenha sido levado em consideração! Além disso, em meados dos anos 80 as carreiras de ambos já não gozavam da mesma força e intensidade de outrora e o rock vigente contestatório é que dava as cartas na mesa. Dessa fase em diante, que estabelece o último suspiro da música popular brasileira – a não ser por uns momentos isolados (ex: Chico Science) -, o nível do que apareceu no mercado só veio ladeira abaixo.

Nesse cenário de opiniões extremadas e divergentes, de duas forças quase opostas que duelam ora para defendê-los, ora para enfraquecê-los, não deixa de ser mais do que oportuno o aparecimento de Tropicália (o filme). E, antes que continuemos, é importante que se faça justiça ao realizador e aos protagonistas: resultou num puta filme. Ele desarma o espectador mais desconfiado possível a ponto de não haver uma alma viva, seja defensor ou detrator, que não se emocione com Caetano Veloso cantando Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) em pleno exílio forçado em Londres – o trecho veiculado no filme, disponível no YouTube, é um especial para a TV francesa. Vê-lo aleatoriamente na internet já é emocionante, o que o diretor Marcelo Machado faz é situá-lo dentro do contexto da obra de Caetano Veloso, e por consequência do movimento tropicalista, num crescendo narrativo poderoso e envolvente que culmina com esse momento antológico. Basicamente, ele devolve a esse instante, e aos demais que pontuam a trajetória do movimento, toda a sua razão de existir. Ele desconstrói pra reconstruir. Está tudo lá: Caetano e Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, Tom Zé e Os Mutantes, o maestro Rogério Duprat, o cinema de Glauber e Sganzerla, o Meteorango Kid de André Luis Oliveira e o Hitler, III˚ Mundo de José Agripino de Paula, os parangolés de Oiticica, o teatro de Zé Celso, as letras de Torquato Neto, etc.

Os depoimentos permanecem em voice off por quase toda a extensão do filme, pontuados por imagens de arquivo oriundas da programação televisiva, até que se instaura o Ato Institucional - N˚5, quando interrompe-se o ritmo alegre que prevalecia até então, e os entrevistados, de corpo presente em registros contemporâneos, aparecem iluminados contra um pano de fundo preto. Esse rompimento de ritmo, intencional, estabelece o momento em que o movimento começa a enfraquecer-se diante das perseguições e censuras impostas pelo governo ditatorial. O que mais impressiona é a lembrança do que fica depois de findada a sessão. Embora a maior parte das imagens seja em preto e branco, a energia que emana delas é tão presente e impetuosa que as recordamos como se estivessem em cores.

O Heitor Augusto abre a sua resenha do filme na Revista Interlúdio com um resumo certeiro de sua proposta, “Além do óbvio apelo musical, Tropicália mostra mais força ao mapear como os encontros de personalidades e propostas musicais diversas refletiam o humor de uma juventude que tencionou as relações e apontou as caretices”. Termina fazendo um comparativo entre os documentários musicais que de uma forma ou de outra abordaram o efervescência criativa do período, “Como narrativa cinematográfica, vejo este filme assumindo mais riscos do que Uma Noite em 67. Mesmo assim, não é preciso negar um para afirmar o outro. Uns preferem a teleobjetiva, como Loki – Arnaldo Baptista; outros, uma lente com campo de visão um pouco maior, casos de Uma Noite em 67 e Fabricando Tom Zé; tem também os que falam do Tropicalismo sem necessariamente colocá-lo no centro, como Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei; vale registrar os que vêm na esteira do tencionamento comportamental, como Dzi Croquettes.

Num espectro mais amplo de análise, ainda considerando-se a recente leva de documentários musicais produzidos no Brasil, acredito que o único capaz de fazer frente à Tropicália seja O Homem que Engarrafava Nuvens (2009), de Lírio Ferreira. Ainda que ambos sejam favorecidos pelos seus incontestáveis objetos de pesquisa, a Tropicália no primeiro e o compositor Humberto Teixeira no segundo, nenhum outro traçou um panorama tão apaixonante e fecundo da música popular brasileira como esses. Além disso, ambos são extremamente eficazes ao despertarem um sentimento que raramente nos habituamos a provar: o orgulho genuíno de ser brasileiro.

2 comentários:

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    1. Imperdível Nahud e o que mais impressiona é o fato de ele ser costurado praticamente com imagens de arquivo. Foge bem ao modelo dos documentários musicais recentes.

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