quarta-feira, janeiro 23, 2013

O que eu vi de melhor em 2012 - nacionais


O Homem que Não Dormia (Edgar Navarro, 2011) – o filme brasileiro mais marcante de 2012 costuma despertar reações extremadas do tipo ame ou odeie. Eu abracei a proposta de Navarro com afinco e até compreendo a indignação dos que não compraram a ideia: é um filme inclassificável. Uma mistura de Glauber Rocha, Buñuel, Pasolini e Cinema Marginal. Seria de se estranhar caso não gerasse tamanha discórdia. O único filme nacional que integraria uma lista minha de melhores do ano – levando em consideração os nacionais e estrangeiros. Não é todo dia que se vê um filme dessa envergadura.

Girimunho (Helvécio Martins e Clarissa Camponila, 2011) – uma das mais bem sucedidas tentativas de documentação, com roupagem ficcional, de um espaço e seus habitantes. Mesmo nas partes em que os diretores não conseguem materializar essa intenção na tela (são poucas, felizmente), ele se sustenta do efeito hipnotizante proporcionado pelas personagens-não atores Bastu e Maria. Uma verdadeira ode ao universo de Guimarães Rosa.

Cara ou Coroa (Ugo Giorgetti, 2012) – embora o registro do período ditatorial feito pelo filme seja dotado de um romantismo questionável, Giorgetti está longe de ser inconsequente. Na sua versão dos fatos, os ativistas políticos de formação cedem espaço aos meros simpatizantes do conflito armado, deslocando o enfoque normalmente dado aos heróis que sacrificaram suas vidas pela causa para os ditos cidadãos comuns. Esse traçado alternativo da trama lhe permite trabalhar num tom mais relaxado, temperando-a com fugazes momentos de humor, resultando, em boa parte das vezes, nas melhores cenas. Otávio Augusto está impagável como taxista direitista.

Tropicália (Marcelo Machado, 2012) – minha relação com o movimento tropicalista sempre se restringiu às figuras de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Só depois da sessão de Tropicália é que a dimensão da sua influência sobre a cultura brasileira se expandiu pra mim: além da música houve o teatro (de Zé Celso), o cinema (de Glauber, Sganzerla, Agripino de Paulo e André Luis Oliveira), os parangolés (de Oiticica), a literatura (de Torquato Neto), etc. O maior mérito do filme, entre os inúmeros que o qualificam, é deixar bem claro que a transformação que estava em curso era sobretudo imagética, sustentada pela incipiente e por vezes ousada programação televisiva. A manifestação do “brasileiro” em seu estado mais puro.

A Música Segundo Tom Jobim (Dora Jobim e Nelson Pereira dos Santos, 2012) – a frase que termina o documentário, de autoria de Tom Jobim, foi levada a ferro e fogo por seus realizadores pra dar conta da vida e obra do maestro e compositor brasileiro: “A linguagem musical basta”. Com o mínimo de interferência possível, apenas ao som e imagens do próprio Jobim, seus parceiros e intérpretes em números musicais excepcionais, muitos deles históricos, a dupla de diretores se limita a organizar o extenso material de arquivo existente de suas apresentações entrecortado pelas captações da Cidade Maravilhosa e de sua intimidade. Não há como ficar indiferente à genialidade do músico. A graça e a leveza de suas canções reverberam horas e dias a fio.

Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios (Beto Brant e Renato Ciasca, 2011) – um filme com bom apelo comercial que infelizmente não encontrou seu público. Uma pena. Mesmo sendo irregular, o que é praticamente uma constante nos filmes de Beto Brant, seus pontos fortes encobrem com folga suas fraquezas. Dois corpos em rota de colisão erótica nos confins do Brasil. Quem conhece Camila Pitanga apenas das novelas da Rede Globo vai se surpreender, seja pelo erotismo das cenas, seja pelo nível da interpretação. As tórridas cenas de sexo dela com Gustavo Machado são de tirar o fôlego.

A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011) – eu sempre encontrei dificuldade em aceitar a retórica de Cláudio Assis, muito embora eu reconheça na sua indignação o motor do seu ativismo (o que não é nada condenável). Com A Febre do Rato ele contextualizou o discurso, recriando na tela um modelo de si mesmo, o Zizo de Irandhir Santos, que empunha um inconformismo romântico fora de moda. Não acho que o seu cinema vai mudar o mundo, mas incomoda e proporciona uma reflexão. Pra pasmaceira vigente, está de muito bom tamanho.

Sudoeste (Eduardo Nunes, 2012) – meu entusiasmo pelo filme não é tão grande quanto o propalado pelos seus defensores nos textos publicados em sites especializados no final do ano passado. Não é difícil reconhecer a ousadia estética e narrativa do filme, incomum para a nossa cinematografia, e maravilhar-se com o scope 3.66:1 adotado pelo diretor. Impressiona, sobretudo quando visto no cinema. A sua presença nesta lista deve-se, principalmente, a interpretação de Simone Spoladore, cujo sorriso angelical confere leveza ao peso das imagens captadas. Enquanto ela se encontra em cena, o filme respira.

Filmes que faltaram ser vistos com enormes chances de figurar na lista: Histórias que Só Existem Quando Lembradas (Julia Murat, 2011), Uma Longa Viagem (Lucia Murat, 2011) e Luz nas Trevas (Ícaro C. Martins e Helena Ignez, 2010).

segunda-feira, janeiro 14, 2013

O que eu vi de melhor em 2012 - estrangeiros


Naturalmente eu não consegui ver tudo que gostaria. Alguns filmes importantes ficaram para trás. A lista abaixo contempla apenas os lançamentos comerciais ocorridos em 2012 - tudo o que foi estreia no cinema, mesmo que isso tenha levado alguns anos para acontecer.

As Quatro Voltas (Michelangelo Frammartino, 2010) – com economia de meios invejável, Frammartino filma o ciclo da vida sem um diálogo sequer. Uma aula de fluência narrativa contando apenas com “sons naturais”. Talvez seja o filme mais modesto que assisti nos últimos tempos, no que diz respeito a recursos, ao mesmo tempo em que é o mais ambicioso, no seu esforço para conferir um sentido de unidade ao pó (mineral), ao vegetal, ao animal e ao homem. Imperdível.

Adeus, Primeiro Amor (Mia Hansen-Love, 2011) – tecnicamente esse filme estreou no final de 2011, portanto era esperado que compusesse a lista de melhores do ano passado. Como só vim a assisti-lo no início de 2012 (depois da publicação da minha relação) e seu impacto permanece duradouro até hoje, achei justo incluí-lo aqui. O filme descreve com sensibilidade ímpar um rito de passagem comum aos humanos, do ponto de vista feminino: como lidar com a perda do primeiro amor, cuja impressão costuma deixar seqüelas (boas ou ruins). A dor do amadurecimento sem o olhar complacente e apaziguador que o relato da causa costuma empregar. Fosse um filme norte americano, o sentimentalismo exacerbado encobriria a sua imprescindível dureza. A trilha sonora é excepcional e faz o melhor (e definitivo) uso da música de Violeta Parra.

O Porto (Aki Kaurismaki, 2011) – as cores do filme nos remetem diretamente ao universo dos dessin animé, bem como a estrutura das cenas emulam uma inspirada charge alongada. A dura política de imigração francesa tratada com a leveza narrativa de uma comédia de costumes. O filme extrai a sua força dessa roupagem burlesca, paródica, reservando o papel de herói aos menos favorecidos. A fim de preservar a própria dignidade, eles recorrem à boa e velha solidariedade. Política de fino trato nas entrelinhas.

Mistérios de Lisboa (Raul Ruiz, 2010) – por pouco não vejo esse filme em 2012. Uma cópia meia boca baixada por um amigo me aguardava, sem que eu tivesse coragem de enfrentar as mais de quatro horas e meia de projeção com problemas de áudio. Por fim, uma viagem de férias a capital chilena em pleno SANFIC (Santiago Festival Internacional de Cine) me proporcionou esse prazer. O livro homônimo de Camilo Castelo Branco, publicado em 1854, é a base da telenovela luso-brasileira. A adaptação de Raul Ruiz para as telas congrega literatura, pintura, música, teatro e cinema no mesmo pacote. Disparado a melhor série de início de ano que a Globo ainda não produziu.

As Praias de Agnès (Agnès Varda, 2008) – graça, leveza, inspiração, alegria, modéstia e humildade num filme pessoalíssimo de uma artista autêntica que enxergou no cinema o meio mais apropriado para expressar as suas emoções.  A precursora da Nouvelle Vague faz seu filme-testamento, prestando uma graciosa homenagem ao seu falecido marido, Jacques Demy, e ao Cinema. De quebra, uma inusitada e entusiasmada aula de história do século XX.

Habemus Papam (Nanni Moretti, 2011) – a crise da fé de onde menos se espera: um cardeal eleito pelo conclave se recusa a assumir o Pontifício, deixando os fiéis à espera de sua aparição pública em plena Praça de São Pedro. Às pressas um psicólogo é chamado para tratar da questão, sendo forçado a permanecer confinado no Vaticano pra preservar as aparências da instituição enquanto o imbróglio não encontra um desfecho apropriado. Moretti equilibra com perfeição o drama (do Papa) e a comédia (do psicólogo), traçando um panorama crítico do conservadorismo (institucional) cristão e da crença cega nos poderes da psicanálise. Segundo Luiz Zanin Oricchio, crítico do Estadão, o filme pode ser visto como uma fábula da moral psíquica, “como submeter à psicanálise, técnica baseada na sinceridade mais completa consigo mesmo, alguém cuja subjetividade é vigiada por toda estrutura eclesiástica?”, ou como fábula de moral política, “num mundo em que todos, de alguma maneira, desejam o poder, como considerar alguém que o recusa?”

Holy Motors (Leos Carax, 2012) – No capítulo 5 de Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano, o diretor Martin Scorsese esclarece a diferença entre diretores contrabandistas e diretores iconoclastas: “Enquanto o contrabandista trabalha furtivamente, e sua subversão não é detectada de imediato, o iconoclasta ataca de frente as convenções e sua rebeldia provoca ondas de impacto por toda a indústria. Em Hollywood, os iconoclastas abrangem os visionários, os desbravadores e os renegados, que desafiaram abertamente o sistema e expandiram as fronteiras da arte. Muitas vezes eles foram derrotados; mas chegaram a fazer o sistema trabalhar a seu favor. Hollywood sempre teve uma relação de amor e ódio com aqueles que violam suas regras, exaltando-os num momento e queimando-os no momento seguinte”. Espero que Leos Carax não seja queimado...

Um Alguém Apaixonado (Abbas Kiarostami, 2012) – talvez seja o filme mais prazeroso de Kiarostami que eu vi, embora não necessariamente o melhor. Como de hábito na filmografia do diretor, ele engana por sua falsa simplicidade. Na segunda experiência dirigindo um filme fora de sua terra natal fica evidente que seu olhar não enxerga fronteiras. Essa percepção é tão boa quanto preocupante: descontado o extremismo que é característico do islamismo, em que medida a opressão feminina é mais significativa no Irã que no resto do mundo? Em ambas as incursões suas em território estrangeiro a mulher (submissa) briga pra “existir”. Até que ponto somos tão diferentes daqueles que insistimos em julgar?

Um Método Perigoso e Cosmópolis (David Cronenberg, 2011 e 2012) – 2012 foi o ano da minha aproximação definitiva de Cronenberg, foram 7 filmes vistos. É um privilégio ter dois dos seus lançamentos no mesmo ano. Num primeiro momento, confesso que desconfiei do entusiasmo com que a crítica abraçou a causa - sobretudo de Cosmópolis. Como os filmes insistiram em permanecer comigo depois de vistos, não foi preciso muito tempo para que minha opinião engordasse o coro dos seus defensores. Os temas caros ao diretor como sexo, violência (física ou mental) e desejo estão, todos, presentes, seja num filme de época contido (na medida do possível pro universo do diretor), asséptico na aparência e convulsivo na essência, ou num filme de temática contemporânea, abordando o caráter ilusório das bases que sustentam nossas crenças no epicentro da crise financeira recente que assolou a economia do primeiro mundo.

Caminho para o Nada (Monte Hellman, 2010) – um filme difícil, que exige bastante do espectador, mas que proporciona um dos melhores momentos do cinema nos últimos anos. O golpe de misericórdia da relação ambígua que Hollywood sempre cultivou com Hellman. Uma espécie de vingança velada em que Monte Hellman assume de uma vez por todas o seu status de cineasta maldito. O caráter ilusório do cinema, tanto na forma como no conteúdo, é desmascarado por um de seus maiores entusiastas. O espectador agradece. O texto do Fábio Andrade para a Cinética, intitulado “OProcesso da Verdade”, dá conta da sua dimensão. Pena que foi um filme pouco visto.

Correndo por fora há ainda Pina (Wim Wenders, 2011), que recebeu o comentário certeiro de Jean-Claude Bernardet, “Revi Pina, dessa vez em 3D. Quando levantei da cadeira, me dei conta de que andar não é nada óbvio”.