Naturalmente eu não consegui ver
tudo que gostaria. Alguns filmes importantes ficaram para trás. A lista abaixo contempla
apenas os lançamentos comerciais ocorridos em 2012 - tudo o que foi estreia no
cinema, mesmo que isso tenha levado alguns anos para acontecer.
As Quatro Voltas (Michelangelo
Frammartino, 2010) – com economia de meios invejável,
Frammartino filma o ciclo da vida sem um diálogo sequer. Uma aula de fluência
narrativa contando apenas com “sons naturais”. Talvez seja o filme mais modesto
que assisti nos últimos tempos, no que diz respeito a recursos, ao mesmo tempo
em que é o mais ambicioso, no seu esforço para conferir um sentido de unidade ao
pó (mineral), ao vegetal, ao animal e ao homem. Imperdível.
Adeus, Primeiro Amor (Mia Hansen-Love,
2011) – tecnicamente esse filme estreou no final de 2011, portanto era
esperado que compusesse a lista de melhores do ano passado. Como só vim a
assisti-lo no início de 2012 (depois da publicação da minha relação) e seu
impacto permanece duradouro até hoje, achei justo incluí-lo aqui. O filme
descreve com sensibilidade ímpar um rito de passagem comum aos humanos, do
ponto de vista feminino: como lidar com a perda do primeiro amor, cuja
impressão costuma deixar seqüelas (boas ou ruins). A dor do amadurecimento sem o
olhar complacente e apaziguador que o relato da causa costuma empregar. Fosse
um filme norte americano, o sentimentalismo exacerbado encobriria a sua
imprescindível dureza. A trilha sonora é excepcional e faz o melhor (e
definitivo) uso da música de Violeta Parra.
O Porto (Aki Kaurismaki, 2011) – as cores do filme nos remetem diretamente
ao universo dos dessin animé, bem
como a estrutura das cenas emulam uma inspirada charge alongada. A dura
política de imigração francesa tratada com a leveza narrativa de uma comédia de
costumes. O filme extrai a sua força dessa roupagem burlesca, paródica,
reservando o papel de herói aos menos favorecidos. A fim de preservar a própria
dignidade, eles recorrem à boa e velha solidariedade. Política de fino trato nas
entrelinhas.
Mistérios de Lisboa (Raul Ruiz,
2010) – por pouco não vejo esse filme em 2012. Uma cópia meia boca
baixada por um amigo me aguardava, sem que eu tivesse coragem de enfrentar as
mais de quatro horas e meia de projeção com problemas de áudio. Por fim, uma
viagem de férias a capital chilena em pleno SANFIC (Santiago Festival
Internacional de Cine) me proporcionou esse prazer. O livro homônimo de Camilo
Castelo Branco, publicado em 1854, é a base da telenovela luso-brasileira. A
adaptação de Raul Ruiz para as telas congrega literatura, pintura, música,
teatro e cinema no mesmo pacote. Disparado a melhor série de início de ano que
a Globo ainda não produziu.
As Praias de Agnès (Agnès Varda,
2008) – graça, leveza, inspiração,
alegria, modéstia e humildade num filme pessoalíssimo de uma artista autêntica
que enxergou no cinema o meio mais apropriado para expressar as suas emoções. A precursora da Nouvelle Vague faz seu filme-testamento, prestando uma graciosa
homenagem ao seu falecido marido, Jacques Demy, e ao Cinema. De quebra, uma
inusitada e entusiasmada aula de história do século XX.
Habemus Papam (Nanni Moretti,
2011) – a crise da fé de onde menos se espera: um cardeal eleito pelo
conclave se recusa a assumir o Pontifício, deixando os fiéis à espera de sua
aparição pública em plena Praça de São Pedro. Às pressas um psicólogo é chamado
para tratar da questão, sendo forçado a permanecer confinado no Vaticano pra
preservar as aparências da instituição enquanto o imbróglio não encontra um
desfecho apropriado. Moretti equilibra com perfeição o drama (do Papa) e a
comédia (do psicólogo), traçando um panorama crítico do conservadorismo (institucional)
cristão e da crença cega nos poderes da psicanálise. Segundo Luiz Zanin
Oricchio, crítico do Estadão, o filme pode ser visto como uma fábula da moral
psíquica, “como submeter à psicanálise, técnica baseada na sinceridade mais
completa consigo mesmo, alguém cuja subjetividade é vigiada por toda estrutura
eclesiástica?”, ou como fábula de moral política, “num mundo em que todos, de
alguma maneira, desejam o poder, como considerar alguém que o recusa?”
Holy Motors (Leos Carax, 2012) – No capítulo 5 de Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano,
o diretor Martin Scorsese esclarece a diferença entre diretores contrabandistas
e diretores iconoclastas: “Enquanto o contrabandista trabalha furtivamente, e
sua subversão não é detectada de imediato, o iconoclasta ataca de frente as
convenções e sua rebeldia provoca ondas de impacto por toda a indústria. Em
Hollywood, os iconoclastas abrangem os visionários, os desbravadores e os
renegados, que desafiaram abertamente o sistema e expandiram as fronteiras da
arte. Muitas vezes eles foram derrotados; mas chegaram a fazer o sistema
trabalhar a seu favor. Hollywood sempre teve uma relação de amor e ódio com
aqueles que violam suas regras, exaltando-os num momento e queimando-os no
momento seguinte”. Espero que Leos Carax não seja queimado...
Um Alguém Apaixonado (Abbas
Kiarostami, 2012) – talvez seja o filme mais prazeroso
de Kiarostami que eu vi, embora não necessariamente o melhor. Como de hábito na
filmografia do diretor, ele engana por sua falsa simplicidade. Na segunda
experiência dirigindo um filme fora de sua terra natal fica evidente que seu
olhar não enxerga fronteiras. Essa percepção é tão boa quanto preocupante: descontado
o extremismo que é característico do islamismo, em que medida a opressão
feminina é mais significativa no Irã que no resto do mundo? Em ambas as incursões
suas em território estrangeiro a mulher (submissa) briga pra “existir”. Até que
ponto somos tão diferentes daqueles que insistimos em julgar?
Um Método Perigoso e Cosmópolis
(David Cronenberg, 2011 e 2012) – 2012 foi o ano da minha
aproximação definitiva de Cronenberg, foram 7 filmes vistos. É um privilégio
ter dois dos seus lançamentos no mesmo ano. Num primeiro momento, confesso que desconfiei
do entusiasmo com que a crítica abraçou a causa - sobretudo de Cosmópolis. Como os filmes insistiram em
permanecer comigo depois de vistos, não foi preciso muito tempo para que minha
opinião engordasse o coro dos seus defensores. Os temas caros ao diretor como
sexo, violência (física ou mental) e desejo estão, todos, presentes, seja num
filme de época contido (na medida do possível pro universo do diretor), asséptico
na aparência e convulsivo na essência, ou num filme de temática contemporânea, abordando
o caráter ilusório das bases que sustentam nossas crenças no epicentro da crise
financeira recente que assolou a economia do primeiro mundo.
Caminho para o Nada (Monte
Hellman, 2010) – um filme difícil, que exige bastante do espectador,
mas que proporciona um dos melhores momentos do cinema nos últimos anos. O
golpe de misericórdia da relação ambígua que Hollywood sempre cultivou com Hellman.
Uma espécie de vingança velada em que Monte Hellman assume de uma vez por todas
o seu status de cineasta maldito. O caráter ilusório do cinema, tanto na forma
como no conteúdo, é desmascarado por um de seus maiores entusiastas. O
espectador agradece. O texto do Fábio Andrade para a Cinética, intitulado “OProcesso da Verdade”, dá conta da sua dimensão. Pena que foi um filme pouco
visto.
Correndo por fora há ainda Pina
(Wim Wenders, 2011), que recebeu o comentário certeiro de Jean-Claude
Bernardet, “Revi Pina, dessa vez em
3D. Quando levantei da cadeira, me dei conta de que andar não é nada óbvio”.
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