terça-feira, junho 10, 2014

Corrida Sem Fim (Monte Hellman, 1971)


Em algum lugar entre Robert Bresson e Roger Corman reside este mais inventivo dos road movies.
Filipe Furtado

É perfeitamente compreensível quem considera Corrida Sem Fim um filme enfadonho. Se talvez já o fosse ao início da década de 1970, quando do seu lançamento, para os padrões de consumo atual é praticamente certo que essa avaliação encontre um número significativo de adeptos. No entanto, ninguém pode chamar Monte Hellman de embusteiro: logo na primeira cena, que explora os bastidores de um racha em preparação (a construção da cena é lenta e exemplar, com destaque para o excepcional trabalho de som), a emoção da corrida nem chega a se concretizar, visto que a polícia aparece bem no início para dar cabo da festa que mal começara.

O filme adota essa estrutura até a última cena: sempre que alguma coisa emocionante está para acontecer, sejam os próprios rachas, uma cena de sexo, um acidente, um roubo ou uma confrontação mais enérgica (um ajuste de contas entre os personagens), a câmera de Hellman se desloca do epicentro da ação para registrar um movimento/comportamento adjacente a ela (não necessariamente chegando a interrompê-la, podendo até ser a sua causadora). Esse procedimento reforça o caráter existencialista dos seus personagens, muitas vezes indiferentes ao que se passa ao seu redor, desorientados e confusos diante de um mundo aparentemente sem sentido e absurdo. O filme é um produto fortemente influenciado pelo movimento de contracultura norte americano dos anos 1960, voltado para o indivíduo de comportamento antissocial (normalmente jovens), com um espírito libertário e dotado de uma cultura marginal (alternativa).

Esse sentido de desorientação é muito bem explorado nos diálogos esparsos dos personagens, sempre que alguma menção é feita a respeito do destino da jornada, constantemente alterado sem aviso prévio (ao espectador), seja por ansiedade, alienação ou tédio. O trajeto a ser percorrido é fruto de uma aposta entre os jovens James Taylor (motorista), Dennis Wilson (mecânico) e Laurie Bird (garota), instalados em um Chevy 1955, contra G.T.O (Warren Oates), habitando um Pontiac GTO. O sentido adotado é inverso ao consagrado rumo que os americanos empreenderam quando da ocupação do território: no contrafluxo (tudo no filme é contra alguma coisa, mesmo que não expresso de maneira explícita), eles partem para o leste - mais especificamente Washington D.C. Apesar do destino pré-definido pelo roteiro, o intuito da viagem leva a crer mais na vontade dos personagens de se perderem no caminho, estando Hellman mais interessado em construir um estudo de personagem (character study) pouco afeito a relações do que propriamente em explorar os meandros da corrida.

Num curto texto escrito em um dos seus extintos blogs, Inácio Araújo (cantodoinacio.blogspot.com.br), ao discorrer sobre Disparo para Matar (1966), do próprio Hellman, saiu com o seguinte comentário:

De um faroeste espera-se, habitualmente, ação. De Disparo para Matar o que se obtém, a maior parte do tempo, é reflexão: dois homens silenciosos percorrendo um caminho e traçando sua estratégia de combate. Dessa substituição da ação pela reflexão, da consequente inflexão do tempo em detrimento da trajetória (ou antes, o tempo e a trajetória tem a mesma importância), não decorre uma perda de tensão pelo filme, mas um acréscimo de tensão que vem do filme, isto é, não do roteiro, mas da matéria do filme que se desenrola diante de nós (e cuja importância ficará mais clara no final da projeção). O gosto de Monte Hellman por personagens silenciosos, ensimesmados, que não escondem nada, simplesmente são assim, ficou conhecido por nós em Corrida Sem Fim, onde dois amigos vivem de tirar rachas de estrada.

A abordagem desse tempo do filme, a qual Inácio Araújo se refere, encontra um momento sublime mais ou menos a meio caminho do seu término. Durante um dilúvio, os quatro personagens resolvem parar em um posto de gasolina para abastecer. Enquanto aguardam o atendimento (e mesmo depois dele), cada qual faz proveito do tempo à sua maneira, sem que nada de extraordinário aconteça (um rouba uma placa, outro verifica a mecânica do carro, outro dorme...). O registro desses momentos é muito precioso, sem a influência daninha dos diálogos explicativos, restando apenas a captação dos corpos à deriva em circunstâncias que o público não costuma valorizar. Nesses momentos de rara inspiração o cinema de Robert Bresson prepondera.

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