domingo, dezembro 21, 2014

O Sabor da Melancia (Tsai Ming-liang, 2005)


O final de ano vai se aproximando e as listas começam a proliferar na internet. Cães Errantes (2013), de Tsai Ming-liang, encontrou espaço em algumas delas, sobretudo naquelas elaboradas por brasileiros. Antes de preparar a minha seleção eu gostaria de reforçar a impressão que tive dele no ano passado (eu o vi na Itinerância da Mostra em Ribeirão Preto), aprofundando-me no universo explorado por seu realizador. Eu tenho gravado desde 2011 O Sabor da Melancia (2005), que figurou na grade de programação do Telecine Cult por algum tempo. De lá pra cá eu ainda consegui baixar O Rio (1997) e O Buraco (1999), mas nenhum deles recebeu a minha devida atenção. O Sabor da Melancia foi o primeiro passo para tentar reparar essa lacuna.

O extenso dossiê que a Revista Interlúdio dedicou ao diretor coloca este filme como uma espécie de parêntesis em sua obra, causando descontentamento naqueles que já o seguiam, ao mesmo tempo em que serviu de porta de entrada para novos seguidores interessados em seu estilo. Embora a ambientação deste longa-metragem seja mais solar e vigorosa - com um uso bem mais expressivo de cores, valorizadas pelos números musicais excepcionais -, engana-se quem pensa que a narrativa ruma para um acerto de contas conciliatório nos moldes de uma comédia romântica (hollywoodiana talvez, mas não somente). O apaziguamento do espírito e do desejo (carnal) vem com um choque. Num "ímpeto irracional" do personagem do seu ator-fetiche Lee Kang-sheng, Tsai Ming-liang "alcança um efeito inimaginável, rearranjado os mesmos elementos da sua obra de forma a obter mais do que o novo", conforme passagem do texto de Wellington Sari para a Revista Interlúdio.

A abertura do texto do Cléber Eduardo para a Revista Cinética esclarece melhor as coisas, embora o seu conteúdo completo seja menos reverente:

Na primeira sequência de O Sabor da Melancia, duas mulheres cruzam em sentido contrário, em um corredor público, sem olhar uma para a outra. É como se não existissem. A imagem seguinte é a de um casal fazendo sexo com uma melancia entre eles. Mal se tocam diretamente, estão perto e separados. Na última sequência, o protagonista sem nome, o mesmo da cena de sexo com melancia, cumpre sua função como ator pornô. Transa com uma mulher morta (pornô = necrofilia), olhando para outra, à sua frente, em uma janela gradeada – levando-a a um orgasmo à distância, provocado só pela imagem. Sexo sem contato físico, com um corpo morto a intermediar o prazer. No momento clímax, ele larga a atriz morta e goza na boca da  mulher na janela, moça com quem tem uma relação silenciosa ao longo do filme (retomada de uma obra anterior de Tsai Ming-liang, Que Horas São Ai?). Seu olhar não se dirige ao dela, pois, entre eles, há uma parede. Expressão de sofrimento: a dela é de dor profunda, rosto colado na genitália dele, lágrimas nos olhos, sêmen na boca.

O filme é praticamente mudo, salvo pelos números musicais que rompem absolutamente com a cadência da narrativa e com o silêncio reinante, injetando humor e alegria onde não existem. Todas as letras musicais são melancólicas, contrastando com o ritmo alegre das melodias. O tom desesperançoso logo se impõe, assim que a epifania musical de caráter fortemente erótico termina. Aliás, é nesse contexto sexual, agravado pela escassez de água e comunicabilidade, mas repleto de desejos carnais e espirituais ocultos, que a melancia se encaixa como um vetor a preencher o vácuo existencial dos personagens. Um ato de coragem e criatividade em produzir um filme inteiro dependente de uma metáfora contestável, cujos significados nos conduzem a outra esfera de compreensão a partir de uma experiência cinematográfica absolutamente incomum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário