domingo, abril 26, 2015

Tempestades d´alma (Frank Borzage, 1940)


Por Chris Fujiwara

Um dos poucos filmes antinazistas produzidos por Hollywood antes de Pearl Harbor, Tempestades d´alma, de Frank Borzage – uma obra detalhista e apaixonada na sua condenação ao regime -, começa no dia em que Adolf Hitler se torna chanceler da Alemanha. O dia também calha de ser o sexagésimo aniversário do professor Viktor Roth (Frank Morgan), um admirado professor de ciências de uma universidade no Sul do país. O filme mostra a consolidação da Alemanha nazista através da destruição do “não ariano” Roth e sua família: sua esposa, seus enteados arianos, que se tornam nazistas fanáticos, e sua filha, Freya (Margaret Sullavan).

Borzage retrata o nazismo como uma forma de loucura à qual muitos homens – e apenas uma mulher, pelo que vemos – sucumbem, como se por contágio ou predisposição natural (o filme não analisa as raízes socioeconômicas do regime fascista), mas com o qual, através de alguns indivíduos, a humanidade remanescente entra em conflito. A magnífica cena final situa o conflito dentro do personagem interpretado por Robert Stack. Sozinho na casa do padrasto, ele caminha por seus cômodos vazios. A câmera o ultrapassa, explorando o espaço imerso em sombras, com uma trilha sonora feita de diálogos de cenas anteriores; ouvimos os passos do jovem à medida que ele sai de casa.

Tempestades d´alma é uma das maiores histórias de amor do cinema americano. A abordagem pungente e sutil de Borzage da relação entre Freya e Martin (James Stewart) está de acordo com o compromisso do diretor, que o acompanhou por toda a carreira, com o poder transcendente do amor – um idealismo ao qual as atuações admiráveis de Sullavan e Stewart mantêm-se fiéis. Pouco antes de os amantes seguirem para o desfiladeiro que cruza a fronteira austríaca, a mãe de Martin (Maria Ouspenskaya) os faz celebrar sua união bebendo de uma taça cerimonial de vinho. Essa cena é uma das mais brilhantes de toda a carreira de Borzage.

O produtor não creditado Victor Saville afirmou ter dirigido boa parte do filme, uma declaração que foi muito repetida, porém refutada por vários dos principais membros do elenco e da equipe. Sem dúvida alguma, Tempestades d´alma representa plenamente o estilo, a filosofia e as preocupações de Frank Borzage.

domingo, abril 19, 2015

A Ilha dos Prazeres Proibidos (Carlos Reichenbach, 1979)



A ilha dos prazeres, aquela visitada por uma Helena Ignez alucinada em A Mulher de Todos, ilha quimérica de ideais libertários frequentada por todo tipo de besta do terceiro mundo, retorna aqui como a ilha dos prazeres agora proibidos, Ilha de prazeres secretos, reprimidos por uma estranha sociedade pautada por desconfiança e medo constantes. Com o Brasil real em plena ditadura militar, a ilha imaginada torna-se exílio de muitos, espaço onde ainda semeia-se liberdade e harmonia, pedaço de terra perdido no mapa, secreto, impossível, invisível.

Mas o que poderia tornar-se um ingênuo espaço de fuga, representação de um possível éden latino-americano, se revela um espaço de tormento e pesadelos apesar de tudo – Carlão se esquiva do escapismo barato para chocar-se sem medo com as contradições dos homens amorais e libertários que ali pairam, como fantasmas, praticando seus atos incautos, descobrindo as fronteiras da liberdade nos próprios pesadelos e sonhos, nas próprias idéias, amores e crimes.

Trata-se de um filme legitimamente apaixonado pelo Brasil, ainda que feito em um momento de desencanto, sofrimento e fácil entrega à inação. Pois ao invés de se recolher à interiorização e codificação das ideias, Carlão faz o oposto; revela um grande carinho pelo cinema brasileiro no diálogo que constrói com o popular (sem perder a complexidade ou deixá-la eclipsar a relação com o espectador) ao mesmo tempo em que revela também um enorme amor pelo espaço interditado da comunhão da felicidade entre amigos e amantes, um Brasil ideal, que não se encontra nem na fuga, nem na libertação relativa, restrita a uma ilha, nem sequer no sonho impossível. A ilha - ela não existe - se torna real apenas no momento do crime, momento em que a agente secreta assassina os procurados da lei e destrói a quimera.

Nessa amálgama, Carlão cria a mais subversiva e libertária forma de se relacionar com o gênero. Faz uma pornochanchada sem nunca recuar da proposta ou esconder o despudor com pseudo-elegância moralizante, mas a faz tendo na forma uma resposta política vigorosa a seu tempo – coisas que ele radicalizaria em Império do Desejo, seu filme seguinte. Por trás do humor, melancolia. Por trás da libertinagem, esperança. E nesse recorte que faz do Brasil, via sua representação imagética mais despudorada, Reichenbach nunca deixa de dialogar e unir numa reconfiguração estética – tal como fazia Sganzerla – os monstros sagrados do cinema e literatura, filosofia e música, sem o peso e cerimônia habituais, colocando essas imagens em contato imediato com o espectador, sem filtro de pompa algum.

Estamos nós diante do filme, Reichenbach desembarcando nas praias da pornochanchada, levando junto o sertão-mar de Glauber e a ilha de Pierrot, Le Fou, mulheres nuas seduzem ao som da música erudita, do brega extrai-se a beleza, do popular a erudição, e o cinema irrompe em risos numa bela sessão de cinema; são as imagens descendo da tela, oferecendo-se generosamente ao espectador, sedução escrachada, beleza rasgada, paixão à primeira vista. Cinema brasileiro para o Brasil, ainda hoje vigoroso e cheio de sentidos, o zoom explosivo nos aproximando de um país inventado ou talvez apenas por nós esquecido, país este que me interessa ver refletido nas telas do cinema de hoje.