quinta-feira, julho 30, 2015

O Quimono Escarlate (Samuel Fuller, 1959)




Eu acho que consigo imaginar o entusiasmo do Carlão Reichenbach ao assistir O Quimono Escarlate pela primeira vez. Ao menos, de todas as referências possíveis e prováveis que o filme pode despertar (Godard seria muito influenciado por ele), Carlão foi a mais premente. A maneira aparentemente despretensiosa com que o thriller vai aos poucos se tornando um libelo poderoso contra a intolerância e o racismo, me trouxe à tona as mesmas qualidades que distinguem o cinema de Carlão. Posso dizer que encontrei a inspiração para a cena sublime de Alma Corsária (1993) em que o negro subitamente começa a tocar piano, desarmando por completo o espectador num rompante de epifania. No ambiente masculinizado do thriller policial, a sensibilidade do diretor Samuel Fuller encontra espaço para se manifestar plenamente.

A cena em que James Shigeta e Victoria Shaw "se declaram" ecoa em vários dos filmes de Carlão, um verdadeiro manifesto de liberdade, esperança e leveza em meio à um ambiente repleto de hostilidade. Logo me veem a mente A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979), Anjos do Arrabalde (1987), o já mencionado Alma Corsária (1993) e Bens Confiscados (2004). Em todos eles, o amor atua como a única forma de redenção possível. Um exercício em forma de tolerância.

segunda-feira, julho 27, 2015

Charles Foster Kane


ESMAGADOR

“De maneira esmagadora, infinita, Orson Welles expõe fragmentos da vida do homem Charles Foster Kane e nos convida a combiná-los e reconstruí-lo. No fim compreendemos que os fragmentos não são regidos por uma unidade secreta: Foster Kane, o execrado, é um simulacro, um caos de aparências. (Corolário possível, já previsto por David Hume, por Ernst Mach e por nosso Macedônio Fernandez: nenhum homem sabe quem é, nenhum homem é alguém). Em um dos contos de Chesterton, o herói observa que nada é mais assustador que um labirinto que não possui centro. Este filme é exatamente esse labirinto.

A execução é digna, em geral, do vasto tema. Ouso prever, no entanto, que Cidadão Kane durará como “duram” certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se dispõe a rever. Cidadão Kane sofre de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial: no sentido mais sombrio e mais alemão desta má palavra.”
Jorge Luis Borges
Jorge Luis Borges: Sur le cinema, Editions Albatros, 1979

domingo, julho 19, 2015

Batguano (Tavinho Teixeira, 2014)




Eu confesso que demorei um bocado para entrar na proposta do diretor Tavinho Teixeira, que materializa em formato digital (quase escrevi película!) um desejo subconsciente dos tiradores de sarro de Batman e Robin de vê-los caracterizados formalmente como um casal gay. Esse ponto de partida, no entanto, permite que ele faça uma reflexão bem humorada do universo das HQ´s com um todo, questionando o papel dos super-heróis, justamente nesse momento em que o cinemão de entretenimento sobrevive às custas desse filão (rentável) de mercado. A produção tem umas duas ou três cenas que são um verdadeiro achado, “dentro de um filme totalmente dedicado a confrontar e ressignificar os limites entre imagem (cinema, fotografia, espelhos e até mesmo a imagem religiosa, com o presépio final) e realidade, em uma estilização auto-evidente da cena cinematográfica que parece, de fato, muito mais próxima de um filme como Anjos da Noite (1987), de Wilson Barros, ou com O Fundo do Coração (1982), de Coppola”, conforme passagem do texto de Fábio Andrade para a Revista Cinética.

Além dessa tentativa de orquestrar esses elementos díspares em um produto relativamente coeso, Tavinho ainda se dá ao trabalho de ambientar seu longa em terras tupiniquins (com forte influência do tropicalismo), num futuro pouco promissor para a espécie humana, em que os dois personagens se bastam entre si, sobrevivendo da interação exclusiva com espectros fantasmas do passado – até o Minotauro aparece em cena.

Os três links a seguir ajudaram a me relacionar melhor com o filme, estabelecendo a ótica sob a qual ele deve ser considerado. Uma sessão no cinema teria sido mais apropriada para usufruir da experiência, uma vez que o programa doméstico teve de ser interrompido umas três vezes. Ainda assim, as imagens permanecem bastante vívidas no imaginário (e desconfio que tendam a se cristalizar).

sexta-feira, julho 10, 2015

Entardecer Sangrento (Budd Boetticher, 1957)


O Chico do My Two Thousand Movies me deu a rara oportunidade que eu já buscava há muito tempo de poder fechar os cinco faroestes que me faltavam do ciclo Ranown, cujo total de sete produções foram dirigidas por Budd Boetticher e estreladas por Randolph Scott, e produzidas pelo próprio Randolph além de Harry Joe Brown (daí a abreviação Ranown). Eu já havia visto O Resgate do Bandoleiro (1957) e Cavalgada Trágica (1960), o primeiro em boas condições no TNT e o segundo numa versão porqueira em DVD que só não me fez desistir da ideia devido à dificuldade que eu enfrentaria em encontrá-lo posteriormente. Ambos são uma aula de economia narrativa, com enxutos 80 minutos de duração (na verdade, alguns minutos a menos), excepcionalmente bem aproveitados.

Entardecer Sangrento é mais um capítulo informal dessa "série" de filmes que explorou um herói que não era tão herói assim, bem como um vilão que não era tão vilão assim. A ambiguidade de caráter dos personagens retratados foi levada às últimas consequências, numa tentativa bem sucedida de explorar os dilemas morais de um caubói, longe do modelo de perfeição de conduta que os roteiros costumam adotar no qual o protagonista (supostamente o herói) nunca erra.

Neste exemplar, Bart Allison (Randolph Scott) é praticamente um coadjuvante, não exatamente pelo tempo despendido em cena mas pelo papel de vetor que ele desempenha ao despertar os cidadãos de uma cidade inteira à enfrentar os maus tratos de Tate Kimbrough (John Carroll), cuja má influência chegou inclusive ao xerife, a ponto de tornar-se seu capanga particular. Bart Allison é movido a enfrentá-lo no dia do seu casamento por uma questão pessoal, mas sua insistência aflora pouco a pouco nos cidadãos de Sundown a coragem para pôr abaixo anos de dominação involuntária.

A cena em que o barbeiro da cidade desmascara o vício alcóolico do padre, seguida do discurso de "Doc" John Storrow (John Archer) a respeito da hipocrisia cristalizada nos cidadãos que escondem hábitos questionáveis mas aceitam cabisbaixos a liderança de Tate Kimbrough, é o ponto de virada na narrativa. Bart Allison por fim torna-se o modelo de conduta a ser adotado por eles, mesmo quando suas atitudes reservam motivações pouco enobrecedoras. O orgulho e a teimosia cobram um preço caro, arcado exclusivamente pelo “herói despedaçado”.