segunda-feira, maio 30, 2016

Selma (Ava DuVernay, 2014) x Até o Fim (Jay Roach, 2016)

Até o Fim (2016) - no centro em pé Anthony Mackie (Martin Luther King), sentado Bryan Cranston (Lyndon Johnson) 

Selma (2014) - à esquerda Tom Wilkinson (Lyndon Johnson), à direita David Oyelowo (Martin Luther King)

Uma ótima sessão double bill envolvendo a luta pelos direitos civis norte americanos com duas produções recentes conjugaria o recém lançado Até o Fim (Jay Roach, 2016) e Selma (Ava DuVernay, 2014). Até o Fim aborda a carreira política de Lyndon Johnson (numa interpretação magistral de Bryan Cranston) a partir do momento em que ele assume a presidência dos EUA logo após o assassinato de Robert Kennedy, enquanto Selma se concentra nas investidas e estratégias de Martin Luther King (David Oyelowo) para a aprovação do voto dos cidadãos negros na legislação americana.

Assistir aos dois filmes em sequência evidencia o alcance limitado de uma produção de cunho "biográfica", cujo roteiro se concentra nas atitudes e ações do personagem retratado, atribuindo-lhe a autoria das conquistas alcançadas como fruto quase exclusivo do seu esforço. Os dois cidadãos travam uma batalha política nas duas produções, sendo os méritos das conquistas atribuídos quase exclusivamente aos seus respectivos protagonistas, fazendo de Martin Luther King (Anthony Mackie) um figurante em Até o Fim, bem como Lyndon Johnson (Tom Wilkinson) do mesmo modo em Selma. Em verdade, um não existe sem o outro. Um filme em que Bryan Cranston contracenasse com David Oyelowo certamente enriqueceria a intensidade do confronto de ideias (continuamente pertinentes), especialmente se ambos dispusessem do mesmo tempo de cena para defender seus pontos de vista/suas linhas de raciocínio.

A fluência de Selma me chama mais a atenção do que o retrato burocrático dos bastidores da Casa Branca em Até o Fim. Ava DuVernay tem o mérito de desconstruir a imagem imaculada de Martin Luther King, cuja reputação foi conquistada a partir da defesa irrepreensível dos sólidos princípios morais que nortearam as suas ações, aproximando-a de um homem comum. O filme preenche o tempo do pastor e ativista político entre um discurso e outro, extraindo do prosaico uma força inesperada.

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Não sei por que demorei tanto para ver Pacto de Justiça (Kevin Costner, 2003). O filme sempre rondou na minha esfera de alcance, pena que não a ponto de se tornar prioridade. A Netflix me trouxe ele com aquela praticidade irresistível.

Acho que não exagero em elegê-lo como o melhor western desde Os Imperdoáveis (Clint Eastwood, 1992). Os cartazes de publicidade do filme, bem como a capa do DVD, colocam Annette Bening junto com Robert Duvall e Kevin Costner. Confesso que essa imagem me afastava da proposta, pelo risco da introdução malsucedida do personagem dela no contexto da história. Pra minha surpresa, a relação de Costner com ela é uma das melhores coisas do filme. O ator poderia se aventurar com mais frequência no ofício da direção.

sábado, maio 21, 2016

O Bígamo (Ida Lupino, 1953)



Quando um homem, mesmo com as melhores intenções, rompe as leis morais que nos regulam, não precisamos puni-los com as leis humanas. Descobrirá que a punição da Corte é o menor dos castigos.
Juiz (John Maxwell), em O Bígamo 

Duas semanas sem as crianças em casa me permitiu fazer uma breve visita à locadora, deixando-a com quatro títulos na mão: Suplicio de uma Alma (Fritz Lang, 1956), Dois Destinos (Valerio Zurlini, 1962), Foi Deus Quem Mandou (Larry Cohen, 1976) e O Bígamo (Ida Lupino, 1953).

Saí de casa com a intenção de voltar com o único título faltante de Zurlini e adicionei os outros três escolhidos a esmo. Pode até soar estranho para alguns, mas o filme que mais me impressionou dessa leva foi O Bígamo, da Lupino.

Ela parte de uma premissa relativamente simples pra atingir um resultado absolutamente surpreendente. Um casal que busca a adoção deixa o homem totalmente preocupado quando a agência escolhida para tal resolve fazer uma investigação na vida dos pretendentes, trazendo à tona seu outro relacionamento que já conta com a existência de um filho recém-nascido.

O roteiro trabalha com um longo flash back que esmiúça as razões que o levaram a adotar essa vida dupla, afastando (por incrível que pareça) qualquer juízo de valor direcionado ao personagem. À medida que o filme vai se encaminhando para o seu desfecho (ele já é curto, apenas 80 minutos), a expectativa vai aumentando pra saber como um filme "highly regarded" como este será capaz de fazer jus à sua fama sem fazer qualquer concessão que seja.

Ida Lupino trabalha seus personagens com uma sensibilidade ímpar, no limite da corda bamba, flertando o tempo todo com o abismo da sua proposta, ao se mostrar inclinada a compreender as motivações de um adúltero. Sua direção liberta o filme de qualquer rotulação ideológica. O final é antológico, deixando a bola quicar para que o espectador faça suas próprias reflexões.