domingo, abril 30, 2017

Martírio (Vincent Carelli, 2016)


Eu ainda gostaria de escrever brevemente sobre outras produções, aquelas que mais me chamaram a atenção nos últimos dois meses, mas vou deixar o espaço voltado para a sessão da semana passada de Martírio (Vincent Carelli, 2016), visto numa passagem relâmpago pela capital.

Eu havia me programado para publicar essa postagem na semana passada, junto com a anterior, de Ernst Lubitsch. Como a semana foi corrida, não tive tempo hábil para me dedicar a isso. Inicialmente, entraria apenas o texto de José Geraldo Couto, escrito no calor da descoberta, numa das primeiras de suas exibições, no Festival de Brasília do ano passado. Elas não poderiam ser mais precisas. Até que o Inácio Araújo publicou a sua impressão sobre o filme e embaralhou um pouco as coisas. Ainda que eu permaneça gostando dele, Inácio levantou uma questão muito importante, decorrente da forma adotada pelo diretor, que me causou a mesma impressão, sem que eu soubesse expressá-la com a mesma desenvoltura. O contraponto entre as duas opiniões é que vale a leitura.

Confesso que sempre fico na dúvida de republicar textos neste espaço, especialmente de pessoas que publicam suas opiniões ativamente e dependem delas para ganhar o seu sustento. Mesmo que exista o recurso do link, que leva direto ao espaço do autor, muitas vezes esses links expiram e eu acabo perdendo o contexto da citação. Embora esse espaço não seja visitado por muita gente, eu mesmo costumo acessar essas publicações para consultar o que eu havia escrito (bem como os autores citados) em determinado momento. Sem elas, esse espaço perde a função de existir.


A partir da luta dos Guarani-Kaiowá pela retomada de suas aldeias e territórios sagrados, Martírio constrói, ao longo de quase três horas, talvez o mais pungente retrato da tragédia indígena brasileira, ao lado de Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci. Este último é cinematograficamente superior, mas isso não vem ao caso aqui.
Organizando materiais captados desde as primeiras décadas do século XX, além de registros feitos pelo próprio Carelli nos últimos trinta anos e reportagens televisivas, o filme traça um itinerário de extermínio físico e cultural dos índios brasileiros (e não apenas dos Guarani-Kaiowá) por conta de um desenvolvimento etnocêntrico e predatório.
No superlotado Cine Brasília, o público participou ativamente da sessão: aplaudiu, vaiou e xingou em cena aberta e, no final, ovacionou o filme por vários minutos. Essa catarse coletiva não esconde uma contradição angustiante. Os momentos que mais suscitaram as reações ruidosas da plateia foram as discussões sobre demarcação de terras no Congresso Nacional e um apavorante “Leilão da Resistência” promovido por ruralistas e políticos ligados ao agronegócio em Mato Grosso do Sul. Os discursos truculentos e retrógrados mais vaiados pelo público do cinema eram justamente os mais aplaudidos na tela pelos parlamentares e representantes ruralistas.
O divórcio entre o mundo do cinema e o mundo da política institucional, que se acentuou nos últimos tempos com os imbróglios envolvendo o Ministério da Cultura, a Cinemateca Brasileira, a escolha do representante brasileiro no Oscar etc., parece ter atingido um ponto crítico no atual festival de Brasília. O “Fora Temer” bradado no palco e na plateia do Cine Brasília a cada sessão é apenas um detalhe, a ponta do iceberg, a face visível de uma cisão mais profunda.
Há nos filmes exibidos, nos debates e nas reações do público uma energia de transformação que parece não encontrar eco nem acolhida nos edifícios oficiais bem próximos dali. Desembocando em angústia ou em catarse imediata, essa energia frustrada talvez fale muito sobre as limitações do cinema em seu afã de mudar o mundo. O sentimento generalizado é de resistência às trevas ao redor. “Todas as canções inutilmente; todas as canções eternamente”, canta Milton Nascimento em “Minas Gerais”. A ideia é essa.

Não é a discordância com vários, admiráveis colegas que me força a escrever aqui, e sim a percepção de que, não fosse o digital, Carelli teria feito de “Martírio” um filme excelente.
O digital é excelente, mas tem propiciado um hábito pouco animador: o esticamento artificial dos filmes. Como o material é barato, torna-se fácil. Como é rico em vários aspectos, torna-se difícil cortá-lo.
Tenho vistos longas que dariam bons curtas. Vi filmes que, concebidos para ser curtas, tornaram-se longas.
“Martírio” poderia ser até mesmo um filme curtíssimo. O material de arquivo bastaria, aliás: aquele jovem índio desajeitado, vestido de terno, com uma senhora tipo 10 mais elegantes ao lado, resume nossa política indigenista.
Carlos Adriano faria o diabo, só com essa imagem.
Mas há também a fala dos índios. As circunstâncias, que remontam à Guerra do Paraguai, à interminável guerra, como bem lembraria o Rosemberg (“Guerra do Paraguay”).
Sim, a situação dos índios é um horror. Desses e de outros. Coincidência ou não, já vi diversos sobre o extermínio provocado pelo contato e, depois, pela expropriação de suas terras e de sua cultura.
Isso não me leva a acreditar que um filme ineficaz, repetitivo, se torne eficaz por isso. 
Andrea Tonacci, que fez filmes belíssimos a respeito dos índios, com os índios, entre os índios, não fez nada disso.
Outro caso: o segmento de Marco Becchis para “Mundo Invisível”, em que mostra um grupo de índios com suas vestes clássicas em uma floresta. Mas à medida que se movem, percebemos que a floresta não é tão floresta assim, há sinais de civilização ali. Eles caminham um pouco mais, ruídos surgem mais claros… Breve sabemos que estão no Parque Trianon, na av. Paulista, em frente ao Masp.
Se continuasse um pouco, o filme poderia ter promovido o encontro entre esses índios e seu espelho: esses outros, esfarrapados, despossuídos, expropriados de suas culturas, que vivem à beira da estrada vendendo cacarecos.
Lembro desses momentos lancinantes porque eles também estão em “Martírio”. Mas o empenho em mostrar tudo, em lugar de montar, de cortar, de concentrar, parece fazer suas virtudes evaporarem.
Na minha visão, o amor à causa às vezes é tão grande que termina por arruinar o filme. Me parece que é o caso aqui.

A Viúva Alegre (Ernst Lubitsch, 1934)




Quase dois meses sem passar por esse espaço. Felizmente não foi por falta de filme; alternativas para escrever não me faltaram. Foi puramente escassez de tempo mesmo.

É sempre bom voltar aos clássicos, pra não dizer necessário, já que nos permite colocar as coisas em melhor perspectiva. O que dizer de um Lubitsch então? Essa foi uma das vezes em que o "Lubitsch touch" ficou mais óbvio pra mim. Honestamente, não esperava tanto de A Viúva Alegre, mas fiquei absolutamente encantado com a safadeza do diretor. O tema poderia ser desenvolvido de forma mais pesada - a versão da peça filmada por Eric Von Stroheim ao que tudo indica tem essa pegada - mas na mão de Lubitsch quase levita de tão leve.

A cena em que o mulherengo Danilo (Maurice Chevalier) é flagrado pelo Rei (George Barbier) em seus aposentos flertando com a Rainha (Una Merkel), rende a mais espirituosa sequência de adultério que eu já vi. Tá certo que é um mundo de faz de conta, em que vale tudo, mas mesmo assim ela permanece irresistível. Sem contar que a construção da gag em que o Rei se dá conta da sua condição de corno é puramente cinematográfica.

Existe um charme que perpassa toda a produção, muito pela contribuição dos atores, sobretudo os personagens secundários, que dá um refinamento desejável ao resultado final. Vale lembrar que o Código Hays passou a vigorar pouco depois do seu lançamento, poupando a produção da censura temática a que certamente ela estaria sujeita (adultério sendo uma delas).

No mesmo dia eu ainda vi A Mulher de Verdade (1943, Preston Sturges), na expectativa de que as experiências seriam semelhantes. Não me causou o mesmo entusiasmo, o que não significa que eu não tenha gostado. O olhar para os personagens secundários é preciosíssimo, no mesmo nível dos filmes de Lubitsch. Só não me pareceu tão inspirado.