terça-feira, julho 31, 2012

Reinado de Terror (Joseph H. Lewis, 1957)



Para mim, é essencial me servir sempre de elementos ligados aos personagens ou aos lugares, e sinto que negligencio alguma coisa quando não os utilizo.
Alfred Hitchcock

O Inácio Araújo resumiu bem o Reinado de Terror em seu pequeno espaço diário na Ilustrada da Folha de S.Paulo que faz a cobertura da programação televisiva: “eis um filme arrancado ao nada, ou ao quase nada”. Não fosse pelo duelo do sueco (Sterling Hayden) - empunhando um arpão de baleia - com o pistoleiro de plantão (Nedrick Young) esse western impressionista de Joseph H. Lewis não seria assim tão lembrado. Lewis levou a ferro e fogo o comentário de Alfred Hitchcock que abre o post, cujo registro só veio anos depois na famosa entrevista concedida a François Truffaut, e serviu seu personagem, mesmo totalmente fora do contexto do oeste americano, da única arma que fizera uso enquanto velejava pelo mundo à caça de baleias: um arpão. Afinal, cabe a pergunta: que manejo faria um marinheiro de uma pistola de fogo? Por seu caráter pra lá de inusitado e insólito, o duelo final tornou-se antológico – a força das imagens é tão grande que Lewis também começa o filme com elas (sem comprometer o impacto do desfecho).

Como de praxe na época, o cinema norte americano vivia sob a sombra do Macarthismo, de forma que o assunto só podia ser sugerido; não havia a menor possibilidade de abordá-lo de maneira direta. É por essas e por outras que o medo dominava as tramas e sempre um insurgente, na figura do mocinho, incumbia-se de quebrar o silêncio imperioso. Roteiristas e diretores encontraram no gênero western um terreno fértil para que essa “paranoia” fosse abordada de forma subliminar. O próprio ator Nedrick Young, bem como o roteirista Ben Perry (pseudônimo de Dalton Trumbo), tiveram seus nomes estampados na famosa lista negra. A presença da delação e do clima de intimidação na narrativa é decorrente da experiência negativa associada ao período, reforçada, sobretudo, por aqueles que sofreram perseguição. Enquanto acreditava-se que a ameaça vinha de fora – no caso, o Comunismo Soviético -, quem pagava o preço eram os próprios cidadãos norte-americanos. Essa “aversão estrangeira” está bem representada no filme pelas figuras do sueco e do rancheiro mexicano (Victor Millan) – os únicos de fato a sofrerem represália.

O filme passou na última segunda feira no Telecine Cult e passou a integrar a grade de programação do canal. Pra minha surpresa, a exibição foi no formato original (1.85:1). As próximas duas segundas feiras prometem: Jardim do Pecado (1954), de Henry Hathaway, no dia 06 e Convite a um Pistoleiro (1964), de Richard Wilson, no dia 13. Ainda não os vi, mas certamente irei conferi-los.

quinta-feira, julho 26, 2012

O Intendente Mizoguchi


Já faz aproximadamente uns dois meses que eu vi o Intendente Sansho (1954), de Kenji Mizoguchi. A minha reação não foi muito diferente da grande maioria dos afortunados que se dispuseram a despender duas preciosas horas na companhia desse mestre japonês: pra soltar o verbo mesmo, fiquei embasbacado. Estupefato e perplexo são duas palavras muito comportadas e bem menos dramáticas, incapazes de carregar a emoção, intensidade e energia que o filme desperta.

Nenhum texto que eu escrevesse seria capaz de dar conta do recado da forma como eu gostaria. O filme exige um ensaio e não apenas uma postagem curta de blog. Eu li algumas resenhas na internet, todas extensas, e nenhuma passagem me chamou tanto a atenção como a que segue abaixo do crítico americano Jim Emerson, publicada em 1984. A rigor, ele aproveita uma reflexão feita pelo crítico inglês Robin Wood. Independente de quem seja o autor da atenta observação (que pode ser outro além desses), é daquelas que iluminam um filme inteiro. Pena que só quem assistiu o Intendente Sansho poderá compreender: a relação que o filme estabelece (fruto da visão de Mizoguchi) entre o fogo/homem e a água/mulher. No cerne da questão.

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By Jim Emerson

In “Sansho”s remarkable opening shot, Mizoguchi divides the frame into a yin and yang of sunlight and shadow. Critic Robin Wood has invoked this Oriental Idea of light and dark, active and passive forces which together create a whole, to discuss “Sancho”s water and fire imagery. Fire is often associated with action, anger and destruction, and is almost always “male”: the torches of Sancho’s search party, the branding-iron fire, the destruction of Sancho’s estate. On the other hand, fire also cooks food and keeps the wolves away.

Water is a life force flowing throughout the film, primarily associated with the never-ending journey of life, with natural passivity, with women, and especially with Mother. But water also separates Zushio and Anju from Tamaki. It seems unfair to even try to talk about the rich and resonant water images in "Sansho" because the images themselves are so potent they cannot be reduced to linear, language-based concepts of "meaning." Nevertheless: water drips from a tree-trunk (and is echoed with liquid purity in the soundtrack music) as Namiji lies, her life ebbing away, in a graveyard. Anju gives her an umbilical tendril to cling to, which is attached to a stone image "responsive to prayers." Namiji is to be left here to become part of this landscape, her body decomposing into the soil with the living, water-carrying roots and vines, the cold rocks, and the bones of those who have preceded her. The dripping begins only when Zushio reclaims her from this grave. In the separation/kidnapping scene on the lake, the children's nurse, another surrogate mother, is drowned fighting to rejoin the children. Her death is recalled in Anju's suicide, one of the most beautiful and poetic (specifically haiku-like) moments in all of cinema. Anju descends slowly, gracefully, and resolutely into the water, sinking into her reflection until she is swallowed up. Concentric ripples on the otherwise smooth surface of the water spread throughout the frame. Cut to a haloed image of a Buddha. Anju is assimilated into the land- and water-scape; the ripples of her life and death continue to spread, her sacrifice making possible Zushio's (and Namiji's) escape and salvation. Her death fulfills her greatest desire in life. Anju leaves behind her an open gate, as did her father: in death, she does not entirely cut herself off from the world of this transient life. On the contrary, she passes through that portal into another life, and her immersion in water is seen as a spiritual/mystical reunion with her mother, a return to the womb, a rebirth. Mother's song ("Anju, Zushio, how I long for you,") reverberates over the ripples on the water.

When Zushio arrives as Sado in search of his mother, he is told that she has either jumped from the cape into the ocean (presumably from the spot where we have seen her sing her song of longing) or was engulfed by a recent tidal wave along with many others. Zushio's quest culminates at the shores of the great sea, where all rivers eventually lead. "You have followed the natural course" -- his father's path -- and it has led him to manhood and to reunion with his family. Mizoguchi's camera rises from this intensely, almost unbearably emotional scene to gaze out past mother and son at the now-tranquil sea. One senses in the deep waters which fill the horizon the presence of the entire family in the same frame-space -- Anju, Father, the nurse. The camera turns, peering down at the tiny figure of the man harvesting seaweed on the vast beach. In the aftermath of the tidal wave, out of that oceanic graveyard which envelops most of the earth, he gathers the food, and fertilizer, necessary for those who carry on in "this transient life."

domingo, julho 22, 2012

Na Estrada (Walter Salles, 2012)




Agora que a adaptação do livro On The Road, de Jack Kerouak, chegou finalmente às telas é mais fácil compreender o porquê da ressalva de Coppola, Gus Van Sant e Johnny Depp em assumir as rédeas desse projeto em outras ocasiões. Embora a obra nunca tenha sido adaptada para o cinema conforme o texto, ipsis litteris, desde o seu lançamento, em 1957, roteiristas e diretores totalmente influenciados por seu espírito libertário se imbuíram de seu conteúdo e ambiência para desenvolver e criar os seus próprios On The Roads. Sem Destino (Dennis Hopper, 1969) e Bonnie and Clyde – Uma Rajada de Balas (Arthur Penn, 1967) seriam os exemplos mais óbvios e bem sucedidos dessa leva de “filhotes”. Ambos os filmes foram produzidos e distribuídos no calor da hora, no exato momento em que as peripécias dos protagonistas da jornada, Sal Paradise e Dean Moriarty (alter ego do próprio Kerouac e de Neal Cassady, respectivamente), ressoavam plenamente no comportamento da sociedade norte americana do pós-guerra. O livro é a ponta de lança de um dos primeiros movimentos da contracultura: a Beat Generation. “Os Beatniks eram jovens intelectuais, principalmente artistas e escritores, que contestavam o consumismo e o otimismo do pós-guerra americano, o anticomunismo generalizado e a falta de pensamento crítico” (Wikipedia).

Passados mais de 50 anos do seu lançamento, depois da poeira devidamente baixada, a sensação de dejà vu é inevitável. Esses filmes e alguns outros lançados na mesma época (Corrida Sem Fim, de Monte Hellman, 1971) ou mesmo depois (Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, 2007) já deram conta do universo beat à exaustão. Eu que não conheço o romance de leitura, apenas de menção devido a sua famosa reputação, não experimentei a sensação de frescor que transformou a geração de 1960 por meio do filme de Salles. Minha referência desse universo permanece sendo a dos filmes de Penn e Hopper, cuja fúria libertária e transgressora ainda é capaz de nos seduzir por completo – só o livro será capaz de devolver à obra a sua devida importância/impacto (pelo menos assim espero que seja). No filme de Hopper, especialmente, os valores defendidos se faziam presentes na frente e atrás das câmeras – consumo abundante de drogas entre elenco e equipe, bem como no filme em si. Por essas e por outras que o filme ganhou a alcunha de documento geracional – está lá, impresso na tela, só não vê quem não quer.

Mesmo desconsiderando a obra literária (seria possível?) e concentrando apenas nos aspectos cinematográficos da adaptação, On The Road fica muito a dever para essas realizações da década de 1960, hoje reconhecidas como responsáveis pelo “Renascimento de Hollywood” (marco inaugural), que à época travava uma luta para se reaproximar do público norte-americano ainda refém das comédias inócuas (Confidências à Meia-Noite, de Michael Gordon, 1959) e dos musicais escapistas (Mary Poppins, de Robert Stevenson, 1964). Segundo as palavras do próprio Hopper, “Ninguém jamais havia se visto retratado num filme. Nos love-ins ao redor do país as pessoas estavam queimando um fumo e tomando LSD, enquanto as plateias ainda estavam vendo Doris Day e Rock Hudson!”

Enquanto eu assistia ao filme de Walter Salles outra forte lembrança que me veio à cabeça foi a de Contrastes Humanos (Preston Sturges, 1941) – talvez até mais presente do que as outras. Kerouak também deve ter sido influenciado por esse filme. A história do diretor bem sucedido de comédias ingênuas (John L. Sullivan, interpretado por Joel McCrea) que se vê na necessidade de dirigir um drama social sobre os tempos difíceis da Depressão Americana e para tanto se disfarça de mendigo - cruzando o país para experimentar a “vida real” na própria pele - vem à tona sempre que Sal Paradise (Sam Riley) sai em busca de “trabalho pesado” – a jornada dupla para ganhar a vida (to make a living). É a experiência física do pé na estrada que permitirá a ambos fazerem as pazes com a consciência (de valores burgueses arraigados). Nem que a viagem só venha a reaproximá-los com mais afinco daquilo que pretendiam deixar para trás antes de se aventurarem pela estrada. Sendo assim, eles partem para retornarem ao ponto de partida, totalmente transformados. A rigor não se trata de mudança, apenas transformação. É um processo de autoconhecimento do qual não é possível sair ileso. Walter Salles provavelmente se referia a isso em suas entrevistas para a apresentação do filme em Cannes: “Já fiz alguns road movies e percebi, ao fazê-los, que quanto mais você se distancia de suas raízes, do ponto inicial, mais você ganha perspectiva sobre quem você é, de onde você veio e, eventualmente, quem você quer ser”.

Mesmo reconhecendo um tom levemente negativo no texto, confesso que quanto mais me proponho a escrever mais afeição eu sinto pelo filme – além da vontade de revisitar todas essas referências que de alguma forma contribuíram para o resultado final. Mesmo não sendo de todo memorável (tenho dificuldades de me lembrar de momentos específicos), o filme me levou à reflexão: “quanta aventura sacrificamos à nossa segurança?” (Contardo Calligaris, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 19 de julho de 2012). Já está de bom tamanho.