Agora que a adaptação do livro On The Road, de Jack Kerouak, chegou
finalmente às telas é mais fácil compreender o porquê da ressalva de Coppola,
Gus Van Sant e Johnny Depp em assumir as rédeas desse projeto em outras ocasiões.
Embora a obra nunca tenha sido adaptada para o cinema conforme o texto, ipsis litteris, desde o seu lançamento,
em 1957, roteiristas e diretores totalmente influenciados por seu espírito
libertário se imbuíram de seu conteúdo e ambiência para desenvolver e criar os seus
próprios On The Roads. Sem Destino (Dennis Hopper, 1969) e Bonnie and Clyde – Uma Rajada de Balas
(Arthur Penn, 1967) seriam os exemplos mais óbvios e bem sucedidos dessa
leva de “filhotes”. Ambos os filmes foram produzidos e distribuídos no calor da
hora, no exato momento em que as peripécias dos protagonistas da jornada, Sal
Paradise e Dean Moriarty (alter ego do próprio Kerouac e de Neal Cassady,
respectivamente), ressoavam plenamente no comportamento da sociedade norte
americana do pós-guerra. O livro é a ponta de lança de um dos primeiros
movimentos da contracultura: a Beat
Generation. “Os Beatniks eram
jovens intelectuais, principalmente artistas e escritores, que contestavam o
consumismo e o otimismo do pós-guerra americano, o anticomunismo generalizado e
a falta de pensamento crítico” (Wikipedia).
Passados mais de 50 anos do seu
lançamento, depois da poeira devidamente baixada, a sensação de dejà vu é inevitável. Esses filmes e
alguns outros lançados na mesma época (Corrida
Sem Fim, de Monte Hellman, 1971) ou mesmo depois (Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, 2007) já deram conta do
universo beat à exaustão. Eu que não
conheço o romance de leitura, apenas de menção devido a sua famosa reputação, não
experimentei a sensação de frescor que transformou a geração de 1960 por meio do
filme de Salles. Minha referência desse universo permanece sendo a dos filmes de
Penn e Hopper, cuja fúria libertária e transgressora ainda é capaz de nos seduzir
por completo – só o livro será capaz de devolver à obra a sua devida
importância/impacto (pelo menos assim espero que seja). No filme de Hopper, especialmente,
os valores defendidos se faziam presentes na frente e atrás das câmeras –
consumo abundante de drogas entre elenco e equipe, bem como no filme em si. Por
essas e por outras que o filme ganhou a alcunha de documento geracional – está
lá, impresso na tela, só não vê quem não quer.
Mesmo desconsiderando a obra
literária (seria possível?) e concentrando apenas nos aspectos cinematográficos
da adaptação, On The Road fica muito a
dever para essas realizações da década de 1960, hoje reconhecidas como responsáveis
pelo “Renascimento de Hollywood” (marco inaugural), que à época travava uma
luta para se reaproximar do público norte-americano ainda refém das comédias inócuas
(Confidências à Meia-Noite, de
Michael Gordon, 1959) e dos musicais escapistas (Mary Poppins, de Robert Stevenson, 1964). Segundo as palavras do
próprio Hopper, “Ninguém jamais havia se visto retratado num filme. Nos love-ins ao redor do país as pessoas
estavam queimando um fumo e tomando LSD, enquanto as plateias ainda estavam
vendo Doris Day e Rock Hudson!”
Enquanto eu assistia ao filme de
Walter Salles outra forte lembrança que me veio à cabeça foi a de Contrastes Humanos (Preston Sturges, 1941)
– talvez até mais presente do que as outras.
Kerouak também deve ter sido influenciado por esse filme. A história do diretor
bem sucedido de comédias ingênuas (John L. Sullivan, interpretado por Joel
McCrea) que se vê na necessidade de dirigir um drama social sobre os tempos
difíceis da Depressão Americana e para tanto se disfarça de mendigo - cruzando
o país para experimentar a “vida real” na própria pele - vem à tona sempre que
Sal Paradise (Sam Riley) sai em busca de “trabalho pesado” – a jornada dupla
para ganhar a vida (to make a living).
É a experiência física do pé na estrada
que permitirá a ambos fazerem as pazes com a consciência (de valores burgueses
arraigados). Nem que a viagem só venha a reaproximá-los com mais afinco daquilo que pretendiam deixar para trás antes de se aventurarem pela estrada. Sendo assim, eles partem para retornarem
ao ponto de partida, totalmente transformados. A rigor não se trata de mudança,
apenas transformação. É um processo de autoconhecimento do qual não é possível
sair ileso. Walter Salles provavelmente se referia a isso em suas entrevistas
para a apresentação do filme em Cannes: “Já fiz alguns road movies e percebi, ao fazê-los, que quanto mais você se
distancia de suas raízes, do ponto inicial, mais você ganha perspectiva sobre
quem você é, de onde você veio e, eventualmente, quem você quer ser”.
Mesmo reconhecendo um tom
levemente negativo no texto, confesso que quanto mais me proponho a escrever mais
afeição eu sinto pelo filme – além da vontade de revisitar todas essas
referências que de alguma forma contribuíram para o resultado final. Mesmo não
sendo de todo memorável (tenho dificuldades de me lembrar de momentos
específicos), o filme me levou à reflexão: “quanta aventura sacrificamos à
nossa segurança?” (Contardo Calligaris, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 19 de
julho de 2012). Já está de bom tamanho.
Excelente texto Rodrigo. Sabe q me fez ter uma perspectiva mais otimista sobre o filme? Que em uma primeira vista eu repudiei bastante. Concordo com muitos pontos levantados por vc. abração.
ResponderExcluirhttp://www.cinemadetalhado.com.br/
Valeu Celo. Se eu tivesse escrito o texto numa sentada só eu teria sido mais severo com ele. Como me levou um certo tempo para fazê-lo, consegui reconsiderar algumas coisas. Pelo menos, acho que consegui ser mais honesto. Abraço.
ExcluirInfelizmente ainda não estreou no Rio Grande do Norte...
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Nahud, eu até achei estranho a estreia dele em Ribeirão Preto. Não estou acostumado a ver a logo da MK2 na tela grande.
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