domingo, setembro 30, 2012

O Eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962)




Abro a Folha de S.Paulo de ontem, 29 de setembro, e me deparo com um texto de Cassio Starling Carlos prestando uma homenagem ao centenário de nascimento do cineasta italiano Michelangelo Antonioni. Infelizmente, por mais esforço que eu faça, minha memória associativa insiste em se apegar melhor à data do seu falecimento, 30 de julho de 2007. Pra todos os efeitos, tendo a acreditar que não carrego sozinho essa triste lembrança, já que, coincidentemente (e põe coincidência nisso!), os cinéfilos do mundo inteiro se viram órfãos dele e de Ingmar Bergman no mesmo dia - dois dos maiores pesos pesados do cinema de todos os tempos. Por menos que eu queira, não dá pra esquecer essa data com tanta facilidade. Seja pelo nascimento ou pelo luto, nunca é tarde para se prestar homenagens (no meu caso, entenda-se assistir aos filmes).

Embora as fartas homenagens que Cassio descreveu em seu texto se passassem em Ferrara, cidade natal do diretor, mesmo estando distante do epicentro das celebrações, seus filmes encontram-se mais próximos de nós do que nunca. Sendo assim, coloquei pra rodar o DVD recém-adquirido da Versátil de O Eclipse (1962), o famoso desfecho da “trilogia da incomunicabilidade” que me faltava. Procurei registrar algumas notas esparsas de minhas impressões a respeito do filme, desconsiderando as já exaustivamente analisadas sequências da Bolsa de Valores e do desfecho. Em seguida, transcrevo a narração de Martin Scorsese correspondente ao segmento do filme em Il mio viaggio in Italia (1999).

A minha parte

- ao longo do filme adentramos quatro apartamentos: 1) o da abertura, 2) o de Monica Vitti, 3) o da vizinha africana e 4) o de Alain Delon. O único que “tem vida” e desconcerta a protagonista é o da africana, com seus quadros etnográficos e fauna característica. A composição desse ambiente destoa de todo o entorno moderno que cerca os protagonistas do filme. É o registro mais pessoal do longa. Em todos os outros apartamentos, incluindo o seu, é perceptível o seu desconforto, especialmente no recanto fúnebre de Delon. Seu impulso é o de abrir todas as cortinas, a fim de arejar as conflitantes ideias;

- a viagem de avião sobrevoando Roma, ao nível das nuvens, bem distante do amontoado de gente que se aglomera nas ruas;

- a flor que o especulador arruinado desenha em um guardanapo em um momento de puro desespero;

- o olhar desiludido de Monica Vitti quando Alain Delon se mostra mais preocupado com a carroceria do seu carro do que com o bêbado morto dentro dele (o close do olhar de Delon no decote de Vitti), e como o espetáculo do acidente é capaz de atrair uma manada de desocupados e enxeridos;

- a caneta que Vitti encontra no apartamento de Delon estampando uma mulher que ora se apresenta vestida, ora desnuda – o efeito é extraordinário e denota a banalização da figura da mulher, como um mero objeto de desejo (sexual), recorrente na obra do diretor;

- a barreira física que separa os dois protagonistas nas imagens que abrem o post é a representação perfeita da impossibilidade do encontro.

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By Martin Scorsese

“L’Aventura” was the first film in a trilogy and each of this three films Antonioni was working through new cinematic possibilities – emotional, visual, thematic. The middle film was “La Notte” with Marcello Mastroianni and Jeanne Moreau and the third film, “Eclipse”, was the boldest. At that time all around the world directors were trying new things expanding the possibilities of cinema: Jean-Luc Godard with “Breathless” and “My Life to Live”, John Cassavetes with “Shadows”, Luis Bunuel with “Veridiana”, Ingmar Bergman with “The Silence” and “Persona”, Glauber Rocha with “Antonio das Mortes”, Shohei Imamura with “The Insect Woman” and Alain Resnais with “Hiroshima Mon Amour” and “Last Year at Marienbad”. It seemed like every week someone was taking things a little bit further topping their last movie. In retrospect, I suppose that they were all influencing and provoking each other and spurring each other on.

I remember how excited we all were when we first saw “Eclipse”. It was a real step forward in storytelling. In fact, it felt less like a story and more like a poem. Eclipse is about a Milanese woman played by Monica Vitti who has an affair with a young stockbroker played by Alain Delon. Even more than the characters in “L’Aventura” these people are lost. They’re trying for intimacy but they can never really connect. Antonioni accentuates the impersonality of the world around them. Real love seems like an impossibility there. It’s like trying to grow flowers through concrete. People can bearly even take the time to mourn the loss of a business colleague. The rhythm of life in the material world just doesn’t allow for it. Antonioni once said: “I’m looking for the traces of feeling in men. The traces of felling and emotions in modern life.” If you really concentrate on his films you sense those traces. And you see what lies beneath Antonioni’s detachment. Compassion.

The couple always meet at the same spot on the corner under a tree near a building under construction which is surrounded by modern housing developments. One day, they make a plan to meet. They’re both trying to keep the relationship going but they’ve simply lost the will to commit. And neither of them shows up. But the film goes on. You keep expecting something dramatic to happen and it never does. Instead, Antonioni’s câmera keeps showing us things – the things around Delon and Vitti. The fence, the piece of wood floating in the barrel of water, the lines of the crosswalk. The construction site. It’s not as simple as “life goes on” which means that people go on. At the end of “Eclipse”, Antonioni leaves us with nothing but time staring back at us. The world becomes a kind of shell around the absence of these two people who have failed to meet. In other words, it’s not what’s there, it’s what isn’t there. It’s a frightening way to end a film, but at the time it also felt liberating. The final seven minutes of “Eclipse” suggested to us that the possibilities in cinema were absolutely limitless.

sábado, setembro 22, 2012

Dia dos Mortos (George Romero, 1985)

Bud (Howard Sherman)


Houve um período em meados dos anos 80 e 90 em que era comum uma brincadeira – mais um teste na verdade, desses que surgem vez ou outra alegando condensar toda a nossa psicologia comportamental - em que se supunha que o mundo estava prestes a extinguir-se e, sem que soubéssemos a razão, seríamos os responsáveis por eleger um pequeno grupo de pessoas que, uma vez nomeadas, seriam imediatamente dadas como salvas. O que estava em jogo na brincadeira era: em um ambiente repleto de adversidades, em que cabe a alguns poucos indivíduos a responsabilidade de retomar (ou melhor, perpetuar) a vida na Terra, que tipo de conhecimento tem mais valia?

Pois bem, George Romero sempre flertou com esse tipo de situação em seus projetos, com variações formidáveis de conteúdo, chegando ao ápice da sua exploração em O Dia dos Mortos (1985) – alguns dirão, numa briga saudável e bastante interessante, que talvez seja O Exército do Extermínio (1973). O Dia dos Mortos compõe junto com A Noite dos Mortos Vivos (1968) e O Despertar dos Mortos (1978) a famosa trilogia dos zumbis, cujos roteiros resumiam-se basicamente a criaturas (mortos vivos) aterrorizando um pequeno grupo de pessoas com temperamentos e atitudes diversos. O foco da narrativa é todo voltado para o grupo. Em todos os três exemplares, bem como nas ramificações subsequentes (Terra dos Mortos, Diários dos Mortos), a ameaça está mais presente nos vivos do que nos mortos. A partir desse grupo, ou melhor, da interação dos seus integrantes, Romero tece um comentário ácido sobre a sociedade americana das décadas de 60, 70 e 80, sob a ótica particular de cada período: o racismo, o movimento pelas liberdades civis e o colapso do núcleo familiar dominam as relações em A Noite; a mentalidade capitalista, do consumo irrefreável, perfeitamente representada na locação do Shopping Center é o alvo de O Despertar; e o militarismo demente, insano, como única alternativa para arrefecer os ânimos das partes discordantes é a joia de Dia dos Mortos.

Em Dia dos Mortos, Romero introduz um novo grau de complexidade às relações pouco amistosas entre os zumbis e os vivos. Por meio de dois personagens, Dr. Logan (Richard Liberty) e Bud (Howard Sherman), o diretor recria, com o humor cáustico que lhe é característico, a figura de Frankenstein. Enquanto o cientista realiza experimentos com os zumbis a fim de reverter a “maldição” que os acomete, acaba se afeiçoando a uma das criaturas que responde aos seus estímulos, Bud. O ceticismo dos militares, que preservam a integridade física dos cientistas das investidas dos zumbis, gera a insegurança responsável pela adoção da política da linha dura, em que fala mais alto quem tem mais munição. O conhecimento é tratado como mercadoria de segunda e é sobrepujado pela força física, ou melhor, pelo arsenal de armas à disposição. O desfecho dessa briga de forças é irônico e antológico – muito bem ilustrado pela imagem que abre o post.

domingo, setembro 09, 2012

SANFIC e Raúl Ruiz



Duas semanas de férias no Chile com muito frio, chuva e uma esposa grávida de sete meses e meio contribuíram para que eu não interrompesse minhas habituais idas ao cinema. Coincidentemente, durante a minha estadia, Santiago sediava a oitava edição do seu festival internacional de cinema, o SANFIC – Santiago Festival Internacional de Cine. Ao contrário da mostra paulistana, o evento se resume a apenas uma semana de exibições com um número de sessões que não chega a somar cem. Boa parte das atrações internacionais já havia passado pelo nosso circuito como L’Apollonide (2011), de Bertrand Bonello e O Garoto da Bicicleta (2011), dos irmãos Dardenne, e algumas outras como Tabu (2012), de Miguel Gomes e Moonrise Kingdom (2012), de Wes Anderson, ainda inéditas por aqui, aguardam a Mostra de São Paulo que se avizinha. Muitos filmes latino-americanos na grade de programação, mas nenhum brasileiro - inclusive o vencedor como Mejor Película do festival foi o argentino Los Salvajes (2012), de Alejandro Fadel (roteirista habitual de Pablo Trapero). Meus esforços, que não foram tantos assim, se concentraram numa pequena retrospectiva do recém-falecido diretor Raúl Ruiz e em dois filmes chilenos, um dos quais o badalado No (2012), de Pablo Larraín.

Embora reclamemos constantemente do circuito nacional de exibição, o chileno se entrega com muito mais afinco ao cinemão norte-americano. Tanto que na semana seguinte a realização do evento, não fosse a Cineteca Nacional, localizada no imponente Palacio de La Moneda, as alternativas não passavam dos Batmans, Spider-mans e afins. Na própria programação da Cineteca, representante oficial do circuito alternativo, ainda figurava A Pele que Habito (Pedro Almodóvar, 2011). Nesse sentido, o slogan do SANFIC pareceu-me ser o mais honesto possível: SI NO LA VES EN SANFIC, NO LA VAS A VER. O mesmo espaço já anunciava a exibição da cópia zero bala de O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972), a mesma que rolou na Mostra de São Paulo de 2008.


Cómedia da Inocência (2000), Raoul Ruiz

Meu primeiro Raúl Ruiz – por ser um filme da fase francesa ele assina como Raoul Ruiz. Nada como estrear um autor com a mesma plateia do seu país de origem. Ruiz é respeitadíssimo no Chile. Começa como uma elaborada narrativa sobre a infância, com foco no personagem infantil e toques singelos de espiritismo, e aos poucos envereda para uma crônica perspicaz sobre a maternidade, em que brilha a atriz Isabelle Huppert. A primeira cena, um almoço no qual o garoto é repreendido em pleno aniversário com comentários desdenhosos sobre sua produção artística – vídeos caseiros -, estabelece toda a base narrativa para as revelações e desdobramentos que virão a seguir. Lembrou-me muito (de memória) a primeira cena de Ensaio de Um Crime (1955), de Luis Buñuel, na sua rara habilidade para criar as bases psicológicas e narrativas que irão sustentar todas as manifestações dos personagens (sobretudo do protagonista). A casa é um personagem à parte, um organismo vivo, sem o qual o filme não seria o mesmo. Sua utilização como espaço cênico é digna de registro, verdadeiro trabalho de gênio. O roteiro é repleto de pistas falsas e Ruiz é hábil ao nos puxar o tapete sempre que manifestamos nossas irrefutáveis certezas. Ironia fina em desuso.


No (2012), Pablo Larraín

No Violeta Foi para o Céu (Andrés Wood, 2011) representam as duas grandes vedetes do cinema chileno esse ano. No é bem melhor e tem evoluído quase diariamente na minha estima. Registra a clássica batalha política partidária que caracteriza qualquer processo eleitoral moderno – ao fazer uso das imagens para compor a identidade (questionável) dos candidatos. Quando o ditador militar Augusto Pinochet se vê pressionado pela comunidade internacional em 1998, depois de 15 anos à frente do poder, convoca um plebiscito para garantir sua permanência no cargo. Os líderes da oposição, por sua vez, convencem um atrevido e criativo agente publicitário, René Saavedra (Gael García Bernal), para encabeçar a campanha do No – contra a permanência. Com recursos limitados e sob o constante escrutínio dos vigilantes do déspota, Saavedra e sua equipe elaboram um plano audaz para ganhar a eleição e liberar o seu país da opressão. O tom acertadíssimo que Larraín emprega é o da comédia de humor negro – apesar da gravidade do assunto, a relativa distância temporal permite que os fatos sejam encenados numa abordagem mais leve, no que cabe a parte da comédia, de forma que o humor negro garante que não haja prejuízo algum para a análise crítica. O visual adotado o aproxima dos vídeos caseiros da década de 80, permitindo que imagens de arquivo (relativamente recentes) sejam perfeitamente incorporadas à narrativa. Nem vestígios do classicismo formal de um Tudo pelo Poder (George Clooney, 2011), por exemplo. Eu arriscaria dizer que se trata de um dos melhores e mais bem humorados registros de uma campanha eleitoral. Larraín nunca deixa a peteca cair de vez: quando alguém exalta a importância do processo eleitoral para a democracia, a voz da consciência sempre vem para nos lembrar do quão ridículo podem ser as campanhas. Supostamente, no período retratado, acreditava-se que rumávamos para uma modernização dos processos eleitorais. Mal sabíamos que a era dos valores frívolos estava apenas começando.


Mistérios de Lisboa (2010), Raúl Ruiz

Eu já lamentava profundamente o fato de haver perdido as exibições de Mistérios em Lisboa no CINESESC no início do ano. Já havia me conformado em assisti-lo numa versão meia boca baixada na internet por um amigo. Quando bati o olho na programação do SANFIC e vi que o filme seria projetado, sabia que outra oportunidade como esta não haveria de acontecer novamente. São quatro horas e meia de pura elegância, fluência narrativa e inúmeras reviravoltas. O mundo das aparências registrado no texto original de Camilo Castelo Branco nos idos de 1854, transposto para a tela grande do cinema em 2010. Pintura, teatro, literatura e música num mesmo pacote. Assombroso.


Meu Último Round (2011), Julio Jorquera Arriagada

Julio Jorquera foi assistente de direção de Andrés Wood em Machuca (2004) e Violeta Foi para o Céu (2011). Meu Último Round é a sua estreia atrás das câmeras. A produção é pequena, com poucas chances de cruzar as fronteiras nacionais, mas que se deixa ver facilmente. Integrou o Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual de 2011. A rigor nada de novo: um relacionamento amoroso entre dois homens, certamente influenciado por O Segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), conduzido com leveza e dotado de alguns bons momentos. O filme se segura na entrega dos dois atores, especialmente na interpretação do boxer Octavio (Roberto Farias).