terça-feira, dezembro 18, 2012

Os Inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972)



Os Inconfidentes mistura os relatos dos Autos da Devassa contra os acusados de traição à corte portuguesa, poesias de integrantes da conjugação mineira e textos de Cecília Meireles para traçar um retrato ambíguo dos líderes do movimento que nunca chegou à ação, sufocado pelos dominadores em 1798. Com ironia, Joaquim Pedro mostra como destacados cidadãos da sociedade, revoltados contra a derrama (taxação compulsória) imposta aos empresários e proprietários de jazidas em Minas Gerais, passam de inflamados sediciosos a covardes que abjuram de suas ideias depois de presos pela autoridade portuguesa.

Alternando-se entre o registro épico e o patético de personagens como Gonzaga (Luis Linhares), Alvarenga Peixoto (Carlos Kroeber), Manoel da Costa (Fernando Torres) e Bueno Silveira (Paulo César Peréio), Os Inconfidentes é uma história de traições e deslealdades da qual somente Tiradentes (José Wilker) termina com certa integridade. Rodado em locações em Ouro Preto, o filme também funciona como metáfora política e histórica para Joaquim Pedro criticar a posição de seus colegas cineastas e intelectuais diante do regime militar instaurado no Brasil a partir de 1964.
Roger Lerina
------------------------------------------

O diálogo imaginado abaixo "foi" travado pelos inconfidentes enquanto eles ensaiavam a grande tomada do poder das mãos da corte portuguesa, quando ainda se encontravam “por cima”. Mesmo sabendo que Joaquim Pedro tomou liberdades para redigi-lo e elaborá-lo, salta aos olhos o quanto o discurso empregado tem de atemporalidade. Ele vale tanto para 1798, 1972 e/ou 2012. O que mais chama a atenção no diálogo é o enfoque dado ao papel dos militares, que ironicamente validaram o seu próprio avacalhamento, já que o texto supostamente passou pelo seu crivo antes de ser produzido/aprovado - como era de praxe no período ditatorial. Um autêntico tapa com luva de pelica.

-----------------------------------------

Tiradentes (José Wilker): O doutor Maciel estudou uma porção de coisas na Europa, com ele nós vamos construir as fábricas da Nova República.
José Álvares Maciel (Carlos Gregório): Matéria prima é o que não falta. Estou chegando de uma viagem que fiz pelo sertão justamente para avaliar os recursos da terra e descobri, além de insetos e vegetais dos mais diversos, que de Sabará a Vila Rica é tudo ferro e cobre.
Tiradentes: Podíamos fazer o ferro das armas, fabricar pólvora.
José Álvares Maciel: Fundir o ferro seria perfeitamente possível se não fosse necessário ter uma licença de Lisboa. Quanto à pólvora, só o salitre aqui custa tanto quanto a pólvora importada.
Bueno da Silveira (Paulo César Peréio): Meu caro doutor Maciel, nós estamos reunidos aqui justamente para não depender mais de licenças de Lisboa ou de importações da Europa.
Padre (Nelson Dantas): Livres e com sua ajuda doutor Maciel, nós vamos ter as nossas fábricas, e aí todo o português patife poderá usar os galões de cetins se quiser, e os nacionais usarão roupas feitas aqui mesmo, com o honesto pano nacional.
Tiradentes: Ser escravo de Portugal, o Brasil, apesar de suas riquezas, é um país miserável.
Bueno da Silveira: De tudo que pode precisar um país só nos falta uma coisa: liberdade.
José Álvares Maciel: O problema é a apatia, a preguiça tropical, na Europa era o que mais se comentava, a moleza e a indolência do Brasil, que não se mexe por mais que o oprima.
Tiradentes: Os cariocas já estão com os seus olhos abertos, e os mineiros pouco a pouco vão abrindo os seus, os governadores e seus criados que vem para cá comer a honra e as terras não terão muito mais tempo para rir de nós.
Padre: Quando for lançada a derrama, o povo se levantará espontaneamente, porque ele não vai ter como pagar os impostos.
José Álvares Maciel: Isso me parece totalmente impossível, além de materialmente inviável, porque o povo, ainda que o açoitassem, aceitaria qualquer governo sem reagir. E ainda porque, sendo o número de escravos negros muito maior que o de brancos, se nós nos rebelarmos os negros também se revoltam, e aí seria pior ainda.
Bueno da Silveira: Esse problema se resolve facilmente. Dando liberdade aos escravos, eles ficam do nosso lado.
José Álvares Maciel: Se libertarmos os escravos, quem vai trabalhar as terras? Tirar o ouro das minas? Não, a meu ver, a única forma de se fazer o levante seria matar todos os europeus.
Padre: Este é o meu voto.
José Álvares Maciel: O que não seria viável porque muitos brasileiros têm pais e parentes europeus, e não é possível que concordassem em matá-los a sangue frio.
Bueno da Silveira: Me parece que matar todos os portugueses seria uma desumanidade. Não?
Tiradentes: Basta matar alguns. Não?
Inácio José de Alvarenga Peixoto (Carlos Kroeber): Senhores, se o povo se levanta ou não se levanta, isso tem pouca importância. As armas não estão na mão do povo, mas bem guardadas com o meu regimento. E como sou eu que o comando, as armas, na verdade, estão nas minhas mãos.
Padre: Nós temos que evitar que no futuro, tudo fique nas mãos de um só homem, principalmente de um militar.
Inácio José de Alvarenga Peixoto: O problema a meu ver é conseguir bastante pólvora.
Bueno da Silveira: Na nova república não pode haver soldados profissionais, todos serão alistados em milícias e pegarão em armas quando for necessário. Quando não for, ficam em casa e continuam com as suas ocupações.
Tiradentes: Os oficiais do regimento já estão conversados?
Inácio José de Alvarenga Peixoto: Tudo o que deve se falar com eles para que se ponham de acordo.
Tiradentes: Ah, isso não! Militares são todos inimigos uns dos outros. Eu antes confiaria num paisano que num colega de farda. A única pessoa que tem autoridade para falar com os oficiais é o comandante do regime.
Inácio José de Alvarenga Peixoto: Mas nem pensar, eu não falo e nem quero que eles saibam que eu ando metido nisso.
Padre: Esse nosso coronel é frouxo.

-------------------------------------------

“O cinema histórico de Joaquim Pedro tem personagens que fazem em cena sua autocrítica, com um grande cinismo em relação ao papel que representam.”
Mário Carneiro

Um comentário: