Da esmagadora quantidade de
filmes que retratam a ditadura militar no Brasil, sobretudo aqueles que se
prestam a uma abordagem mais direta da questão, apenas uma minoria consegue escapar
do estigma da tortura. Enquanto alguns empregam recursos narrativos ou de
linguagem (cinematográfica) para sugerir o tema, outros só veem seu discurso
validado, ou se encontram verdadeiramente respaldados, quando a prática é explicitamente
explorada. O segundo exemplo sempre corre o risco de se tornar apelativo, especialmente
quando mal trabalhado, ao apostar na empatia do público com os personagens na
base da marra – basta pensar no uso de cobaias em pesquisas científicas, cujas
imagens são suficientemente capazes de despertar repulsa mesmo em um círculo de
entusiastas inflexíveis.
Embora Nelson Pereira dos Santos
não tenha feito um filme da ditadura militar no Brasil ao adaptar Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos (ela
já estava enfraquecida, mas não de todo exterminada), ele aproveitou a urgência
da questão para resgatar o livro do autor alagoano que descreve sem rodeios sua
experiência como prisioneiro durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Mesmo que
a distância de quase 50 anos que separa os dois governos autoritários possa ter
contribuído para corroborar com práticas mais duras de tortura, a ponto de
justificar o seu emprego em produções da época (o assunto ainda estava saindo
do forno), Nelson adota o discurso estoico de Graciliano Ramos, fundamentado no
domínio da palavra e da escrita (na educação, no sentido mais amplo do termo),
para condenar os procedimentos abomináveis praticados pelos agentes da lei em
vigência. Nele, a violência física nunca é explicitada; sempre que ela está
prestes a ser cometida, um fade out
poupa o espectador do espetáculo lamentável. O diretor, contudo, não economiza
negativo para mostrar a miséria da condição de vida dos presos, bem
representada pela precária alimentação dos mesmos – que motiva o próprio
Graciliano a se negar a comer o que era servido.
Das pouco mais de três horas de
projeção, o filme se dedica quase que exclusivamente ao período em que Graciliano
esteve encarcerado. Após uma breve aparição do mesmo em uma repartição pública
do Alagoas, que registra a Intentona Comunista de 1935, seguida de uma cena em
casa com a mulher (Glória Pires) e filhos, logo ele é encaminhado para o périplo
de aproximadamente um ano por cárceres do país. Por meio dos presos que dividem
o espaço com o escritor, sejam eles políticos ou comuns, Nelson traça um
panorama da população brasileira com ênfase nos aspectos determinantes do nosso
atraso, próprio dos países subdesenvolvidos. A ignorância funcional salta aos
olhos, sobretudo na terceira e derradeira parte, quando os companheiros, e até
mesmo os seus detratores, já reconhecem a fama dos seus escritos. A cena em que
Graciliano (Carlos Vereza) faz a correção do texto dos comunistas,
contracenando com Tonico Pereira, é hilária. Um tom mais grave é empregado
quando uma autoridade lhe solicita um discurso para ser pronunciado na data do
aniversário do diretor do presídio, a qual lhe é negada – a argumentação é
perfeita, impecável, embora seja involuntariamente humilhante.
Sem amenizar o tom da jornada de sofrimento
e punição, Nelson se serve da prosa de Graciliano Ramos para veicular o seu
discurso, mais calcado na esperança de mudança do que na permanência da estupidez
– vale lembrar que na época do lançamento do filme o movimento pelas “Diretas
Já” estava a pleno vapor. No último terço do filme, em que Carlos Vereza
encontra-se de cabeça raspada por exigência da direção carcerária, sua figura
assemelha-se a de Gandhi, fragilizado pelos sacrifícios assumidos em prol da
sobrevivência moral. Recolhido em um canto do presídio, sentado ao lado de uma valise
com suas valiosas anotações, enfraquecido pela dieta sofrível imposta e
venerado pelos seus semelhantes, bem como pelas autoridades que o mantiveram
sob custódia, Graciliano Ramos emerge com o único resquício de dignidade capaz
de ser preservado em ambiente tão hostil. Pena que o seu bastião configure
ainda hoje material escasso em nosso país. Um dos grandes filmes brasileiros.