Num recente bate papo com o
Alexandre do analiseindiscreta.wordpress.com, trocamos algumas figurinhas a
respeito das influências que exerceram um papel importante na experiência cinéfila
de cada um. Dali saiu que o livro que encabeça a minha lista de referências imprescindíveis
é o mítico Hitchcock/Truffaut,
responsável pelo sucesso do registro em forma de entrevistas, editado muito
antes de o formato assumir um caráter declaradamente comercial. Depois da nossa
breve conversa me pus a ver um Hitchcock dos menos valorizados. Pouco me falta
para completar a fase americana de sua carreira, entre os quais havia Um barco e nove destinos. O trecho
abaixo se refere à passagem do livro em que os dois cineastas dialogam a
respeito desse filme. O entendimento de Truffaut não corresponde exatamente às
intenções de Hitchcock, que aproveita a ocasião para contextualizar as suas
decisões, sobretudo as de natureza técnica. Fica claro pelas respostas que o seu
domínio sobre a realização do projeto é absoluto - característica onipresente
no livro, perpassando a maioria de seus filmes. Não é à toa que à medida que
sua carreira avançava, ele acabou assumindo o cargo de produtor. A questão
derradeira aborda a engenhosa ponta de Hitchcock (a sua predileta!), recheada
do típico humor inglês que o caracterizava, que acabou passando em branco pra
mim. Não fosse a consulta ao livro eu a teria desconhecido – felizmente, a bela
edição da Companhia das Letras traz uma enorme ilustração do momento.
François Truffaut – Alguns filmes seus apresentam-se como verdadeiros
desafios. Um barco e nove destinos é
um deles. Aqui, a aposta é fazer um filme inteiro dentro de um bote
salva-vidas?
Alfred Hitchcock - De fato, era
uma aposta, mas também uma demonstração de uma teoria que eu tinha nesse
momento. Minha impressão era que, ao se analisar um filme psicológico corrente,
percebia-se que, visualmente, oitenta por cento da metragem eram dedicados a
primeiros planos ou semi-primeiros planos. Era algo não combinado,
provavelmente instintivo entre a maioria dos diretores; era uma necessidade de
se aproximar, uma espécie de antecipação do que seria a técnica da televisão.
É muito interessante, mas várias vezes você foi tentado por esse gênero
de experiências sobre a unidade de lugar, de tempo e de ação; por outro lado, Um barco e nove destinos é o contrário
de um thriller, é um filme de
personagens. Terá sido o sucesso de A
Sombra de uma Dúvida que o levou nessa direção?
Não, não tem nada a ver com A Sombra de uma Dúvida. Um barco e nove
destinos foi influenciado apenas pela guerra. Era um microcosmo da guerra.
Em certa época pensei que a moral de Um barco e nove destinos fosse a de que todos são culpados, todos
têm alguma coisa a se recriminar, e que você queria concluir com um: “Não
julguem”. Mas acho que me enganei, não?
A ideia do filme é diferente. Quisemos mostrar
que naquele momento havia no mundo duas forças em presença, as democracias e o
nazismo. Ora, as democracias estavam em absoluta desordem, ao passo que todos
os alemães sabiam aonde queriam chegar. Portanto, tratava-se de dizer aos
democratas que eles precisavam de qualquer maneira tomar a decisão de se
unirem, se juntarem, esquecerem suas diferenças e divergências para se
concentrarem num só inimigo, sobremodo poderoso por seu espírito de coesão e
decisão.
Era uma ideia forte e justa...
O engenheiro interpretado por
John Hodiak era praticamente um comunista e, no outro extremo, você tinha um
homem de negócios que era um fascista. E, nos grandes momentos de indecisão,
ninguém sabia o que fazer, nem mesmo o comunista. O filme foi muito criticado e
a famosa Dorothy Thompson, na sua coluna, deu ao filme dez dias para sair da
cidade!
O filme não é apenas psicológico, muitas vezes é moral também; por
exemplo, já perto do fim os personagens vão linchar o alemão, e você mostra o
grupo bem de longe, de costas, e é uma visão um tanto repugnante, proposital,
creio?
É, eles são como uma matilha de
cães.
O filme é ao mesmo tempo um conflito psicológico e uma espécie de
fábula moral. Os dois elementos se entrelaçam muito bem, sem nunca se
prejudicarem.
Primeiro, encomendei esse
argumento a John Steinbeck, mas o trabalho ficou incompleto. Então mandei
chamar um escritor muito conhecido, Mac Kinley Cantor, que trabalhou duas
semanas... Eu não gostava nada do que ele fazia. Ele me disse: “Não consigo
fazer melhor”, então respondi: “ Muito obrigado”, e peguei outro escritor, Jo
Swerling, que tinha trabalhado para Frank Capra. Com o script pronto e o filme prestes a começar, percebi que nenhuma
sequencia terminava com um toque apoteótico, e então me esforcei em dar uma
forma dramática a cada episódio.
Foi por isso que deu tanta importância aos objetos, como a máquina de
escrever, as joias, etc.
Foi. O que levou os críticos
americanos a ser tão veementes contra esse filme foi que eu tinha mostrado um
alemão superior aos outros personagens. Ora, nesse período de 1940-1, os
franceses estavam derrotados e os Aliados estavam em decomposição. Por outro
lado, o alemão que, no início, fingia ser um simples marinheiro tinha sido
comandante de submarino; portanto, havia todas as razões para se pensar que era
mais qualificado que os outros para assumir o comando do bote, mas
aparentemente os críticos imaginaram que um nazista mau não podia ser um bom
marinheiro! Mesmo assim o filme teve certo sucesso em Nova York, mas não era
muito comercial, quando nada pelo desafio técnico. Nunca deixei a câmera sair
do barco, nunca mostrei o barco visto de fora e, de quebra, não havia uma só
nota musical, era muito rigoroso. Evidentemente, o conjunto foi dominado pela
personagem de Tallulah Bankhead.
Ela segue um pouco o mesmo percurso da heroína de Os Pássaros: parte da sofisticação para atingir o aspecto natural,
à medida que passa por sofrimentos físicos, e apreciei imensamente esse
itinerário moral marcado pelo abandono de coisas materiais, a máquina de
escrever que cai na água, e, no final do filme, o fecho da pulseira de ouro que
serve de anzol quando não há mais nada para comer. A propósito de objetos,
convém não esquecer o velho jornal que está ali largado no bote e que você usou
para fazer sua ponta ritual.
É meu papel predileto e devo
confessar que passei longos e penosos momentos para resolver esse problema.
Habitualmente, faço um
transeunte, mas como inventar transeuntes no oceano?! Bem que eu tinha pensado
em representar um cadáver boiando à distância do bote salva-vidas, mas morria
de medo de me afogar. E era impossível para mim fazer um dos nove
sobreviventes, pois todos esses papéis deviam ser feitos por atrizes e atores
competentes.
Por fim, tive uma excelente
ideia. Nessa época eu fazia um regime muito severo, avançando a duras penas
para o meu objetivo de perder cinquenta quilos, baixando de cento e cinquenta
para cem. Assim, resolvi imortalizar meu emagrecimento e ao mesmo tempo
conseguir minha ponta, posando para fotografias “antes” e “depois” do regime de
emagrecer. Essas fotos foram reproduzidas como se ilustrassem uma propaganda de
jornal, preconizando uma droga imaginária, “Reduco” – e os espectadores podiam
ver tanto esse anúncio como minha própria pessoa, quando William Bendix abria
um jornal velho que tínhamos pendurado no barco. Esse papel fez grande sucesso!
Sim, essa deve ser a melhor aparição de Hitchcock! Além do mais, a possibilidade de ele se afogar certamente era grande, hehe.
ResponderExcluirCara, ia comprar esse livro, mas acabei achando um pouco caro e comprei outros (seis) no lugar. Mas acho que vou abrir um pouco o bolso... Pelo visto, a leitura deve ser deliciosa (nada de pedantismo e encheção de linguiça)!
Ah, sim, o que eu mais gosto do filme é a transformação da personagem de Tallulah Bankhead. Como disse Hitch, ele dominou o filme. Inesquecível.
É isso... abraços, Rodrigo!
Bacana Alexandre! De fato, o livro deve ser um dos mais caros mesmo. Pelo menos, a edição da Companhia das Letras é caprichadíssima (valoriza o conteúdo do texto com inúmeras ilustrações). Assim que você terminar de ler os outros seis, você coloca esse na lista de espera.
ExcluirAbraço.