A primeira parte de Cinzas que Queimam só prepara o terreno
para que o impacto da segunda parte seja potencializado. A ênfase é toda
voltada para a construção do caráter ambíguo do seu protagonista que será testado de maneira inesperada. São quase quarenta minutos do filme – aproximadamente metade
do todo - dispostos a imergir o espectador na rotina desgastante de um policial
da rota noturna, Jim Wilson (Robert Ryan), profundamente afetado pela sujeira e
depravação que ele se esforça para combater. Os dois outros parceiros que
dividem o itinerário com ele só existem para reforçar essa impressão ao
contarem com o indispensável apoio da família para garantir a sanidade mental
num ambiente predominantemente deturpado. Jim Wilson dispensa essa prerrogativa,
absolutamente confiante na eficácia de seus métodos heterodoxos e implacáveis. É
essa postura irrefreável que lhe garante um afastamento indesejado, deslocando a
narrativa do filme até então centrada na cidade grande para a suposta vida pacata
do interior norte-americano.
Ao contrário do que se esperava a
vida de Jim Wilson não será menos agitada na insipidez interiorana que o
aguardava de braços abertos. É lá que seus valores serão colocados à prova ao
confrontarem-se com os de seu oposto, a compreensiva e angelical Mary Malden
(Ida Lupino). O mundo dos dois se cruza quando o suspeito do assassinato de uma
jovem refugia-se na casa de Mary em busca de abrigo, enquanto Jim e o pai da
vítima, Walter Brent, interpretado pelo sempre ótimo Ward Bond, perseguem-no até o perderem de vista nos arredores da propriedade dela. A cegueira literal de Mary
não é percebida de imediato pelos interrogadores, sobretudo por Walter, que
interpreta o comportamento evasivo dela como sendo pouco colaborativo. Jim desconfia
da sua deficiência visual e, sensibilizado pelo tratamento agressivo que o pai
da vítima lhe dispensa em busca de respostas imediatas (numa autêntica mea culpa pelos excessos cometidos de
outrora), passa a protegê-la de forma contida. Numa conversa reservada entre os
dois, enquanto Walter persiste na busca nas imediações da casa, ela confessa
que seu irmão mais jovem a procurara e se escondera – em decorrência da autoria
do assassinato, embora esse detalhe fique subentendido.
A diferença entre as perspectivas
de vida de Jim e Mary é magnificamente expressa pelo roteirista A.I. Bezzerides
em um breve diálogo travado entre os dois personagens, que não poderia ser mais
preciso.
Mary Malden: Tell me, how is it to be a cop?
Jim Wilson: You get so you don´t trust anybody.
Mary Malden: You´re lucky. You don´t have to trust anyone. I do. I have to trust everybody.
Por mais que identifiquemos o papel do protagonista no personagem de Robert Ryan, Ray coloca as partes de Ida Lupino, Ward Bond e Sumner Williams (o jovem Danny Malden) no mesmo pé de igualdade, muito embora suas participações sejam consideravelmente mais curtas. Especialmente a de Sumner Williams, que dispõe de praticamente uma cena pra mostrar seu talento. O jovem garoto carrega todo o peso do mundo nas costas e compõe mais um dos personagens da extensa galeria de rebeldes sem causa de Nicholas Ray.
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