Nos anos 60 e 70, um projeto que
aproximasse um diretor italiano do western
norte-americano resultaria indubitavelmente num western spaghetti. Não fosse Marco Ferreri um iconoclasta e
subversivo, Não Toque na Mulher Branca
teria engrossado as estatísticas dessas produções.
O senso de oportunidade e ousadia
do diretor para aproveitar a locação do Trou
des Halles, um imenso buraco aberto no coração da Paris dos anos 70 após a
demolição do mercado central da cidade, e recriar a batalha de Little Bighorn
num pastiche de western anacrônico –
a história norte-americana do século XIX (e XX) encenada na capital francesa do
século XX - foi extraordinário. As guerras que dizimaram os índios sob o
pretexto de que o progresso e a civilização avançavam, ganham uma nova roupagem
ao serem transpostas para os conturbados anos em que Richard Nixon esteve à
frente da presidência dos EUA: as peças que compõem o tabuleiro do jogo apenas
trocam de nomes enquanto os objetivos traçados pelos vitoriosos para triunfar
permanecem os mesmos.
A fim de justificar à opinião
pública a política beligerante empregada para o extermínio dos desfavorecidos e
subjugados, os patrocinadores da campanha de guerra, a elite capitalista, ancorados
na figura do General Terry (Philippe
Noiret, parodiando Richard McNamara), convocam os lendários General Custer (Marcello
Mastroianni) e Buffalo Bill (Michel Piccoli), venerados pelos norte-americanos,
para lutar na frente de batalha que se avizinha. Nesse esforço de guerra, os
mitos do western norte-americano operam
como convenientes atenuantes às intenções subjacentes.
Essas figuras ancestrais
circulando em trajes de época no Trou de
Halles decadente da década de 70 criam um efeito surrealista que,
curiosamente, potencializam a crítica política imaginada por Ferreri. Os
índios, também devidamente caracterizados, resistem como podem aos avanços dos
brancos, auto intitulados civilizados.
O único que parece em harmonia com o tempo vigente é o antropólogo, confortável
em seus jeans e moletons, mais para hippie
que acadêmico. Aquele a quem caberia um estudo apurado do homem, como ser biológico,
social e cultural, na rédea crítica de Ferreri, contenta-se apenas em assegurar
o registro fotográfico dos mitos socialistas da década de 60 no exato momento
em que sucumbiam às forças capitalistas que o oprimiam. Ironicamente, o poder
sedutor dos generais da cavalaria americana distancia o antropólogo dos líderes
indígenas Touro Sentado, Cavalo Louco, Galha e Duas Luas, verdadeiros resistentes
a ideia de progresso e civilização encampada pelas autoridades.
Imersos no caldeirão de ideologias
alternativas que circulavam em meados dos anos 60, os índios de outrora
representam as minorias que lutavam contra a ameaça de endurecimento dos
governos nessa ocasião conflituosa, fossem eles negros, homossexuais,
colonizados ou comunistas/socialistas. Enfim, todos aqueles que se mostravam
insatisfeitos com o status quo.
O elenco inteiro parece bem à
vontade com a proposta de Ferreri, a ponto de se divertir à beça com o deboche
dos mitos civilizatórios. As imagens são magníficas e a força da proposta fica
bem ancorada no contraste do imenso canteiro de obras do Trou des Halles com a arquitetura característica da Cidade Luz. A
ideia de decadência encontra um sítio perfeito na locação. O índio dissidente
de Ugo Tognazzi, Mitch, pode ter sido uma das referências para a composição do
negro Stephen, de Samuel L. Jackson, no western
de Quentin Tarantino, Django Livre
(2012). A vulnerabilidade emocional dos americanos após os ataques de 11 de
setembro de 2001 não permitiria que uma farsa dessas fosse encenada no Ground
Zero, mas o estranhamento visual provocado pela proposta seria até mais intenso que o
proporcionado por Não Toque na Mulher
Branca, devido à farta presença dos arranha-céus.
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