terça-feira, julho 30, 2013

Entre o Mar e o Sertão

O crítico Pedro Henrique Ferreira, colaborador da Revista Cinética, escreveu recentemente um texto intitulado Entre o Mar e o Sertão que tece uma interessantíssima ponte entre alguns personagens da nossa corrente filmografia com a trajetória dos cineastas cinemanovistas, “que viram suas aspirações revolucionárias dos anos 1960 sofrer uma espécie de domesticação de seus antigos anseios por uma mobilização social, em prol de uma articulação efetiva com o governo (ditatorial, de direita) para a criação de uma identidade nacional”. Eles, os cinemanovistas, e esses personagens (Maria Lúcia em Faroeste Caboclo, João em O Som ao Redor e os irmãos Vilas Boas em Xingu) foram forçados a “compactuar com a elite que, não à toa, se associou ao governo ou seus representantes, a polícia; que tem diante do conflito de classes uma absoluta falta de poder, uma incapacidade de sequer atenuá-lo, apesar de ter um claro posicionamento ideológico em favor de um dos lados – o do mais fraco”.

O texto é relativamente longo, o que me levou a abandonar a ideia de republicá-lo por aqui. Fica o link no primeiro parágrafo. A curiosa relação estabelecida entre essas partes aparentemente distintas é prova de que não existem limites para a fruição de um filme. Boa leitura!

quinta-feira, julho 25, 2013

Os Canhões de Navarone (J. Lee Thompson, 1961)


Recentemente, eu e mais dois amigos conseguimos pôr em prática um projeto que demorou um bocado de tempo pra sair do papel: uma vez por mês nos reunimos para ver um filme do acervo pessoal de cada um. Além do bate papo que antecede a sessão, onde as expectativas são colocadas à prova, a ocasião serve como pretexto para uma reunião familiar regrada a comes e bebes. Na última sexta-feira o título escolhido foi Os Canhões de Navarone. Confesso que eu não estava muito animado para assistir a um filme de guerra com duas horas e meia de duração que seguiria o protocolo batido das produções americanas do período ao explorar um episódio fictício de vitória das forças aliadas (com ênfase para a contribuição dos EUA) contra a investida bélica nazista. Eu esperava uma dose cavalar daquele patriotismo norte-americano infausto que propagou para o mundo inteiro uma versão heróica distorcida dos fatos num tempo em que as imagens gozavam de prestígio incontestável. Não fosse essa ocasião específica, o filme dificilmente encontraria um espaço na minha agenda de prioridades cinematográficas.

A bem dizer, eu teria perdido um ótimo filme que até então eu encarava com certo desdém. A produção está mais para um drama de guerra, focada na missão do grupo e na interação dos seus integrantes, do que no espetáculo da frente de batalha. O que não quer dizer que não haja ação suficiente. Alguns dos diálogos de Carl Foreman, adaptados do livro de Alistair MacLean, tocam questões de moral espinhosas absolutamente incomuns em obras similares. A discussão travada entre Mallory (Gregory Peck) e Corporal Miller (David Niven) pra decidir quem deve dar cabo de uma traidora é antológica.

Mallory: You really want your pound of flesh, don't you?
Corporal Miller: Yes, I do. You see, somehow I just couldn't get to sleep. 
Mallory: Well, if you're so anxious to kill her, go ahead! 
Corporal Miller: I'm not anxious to kill her, I'm not anxious to kill anyone. You see, I'm not a born soldier. I was trapped. You may find me facetious from time to time, but if I didn't make some rather bad jokes I'd go out of my mind. No, I prefer to leave the killing to someone like you, an officer and a gentleman, a leader of men.
Mallory: I have no time for this!
Corporal Miller: Now just a minute! If we're going to get this job done she has got to be killed! And we all know how keen you are about getting the job done! Now I can't speak for the others but I've never killed a woman, traitor or not, and I'm finicky! So why don't you do it? Let us off for once! Go on, be a pal, be a father to your men! Climb down off that cross of yours, close your eyes, think of England, and pull the trigger! What do you say, Sir? 
Mallory: If you think I wanted this, any of this, you're out of your mind, I was trapped like you, just like anyone who put on the uniform!
Corporal Miller: Of course you wanted it, you're an officer, aren't you? I never let them make me an officer! I don't want the responsibility!
Mallory: So you've had a free ride, all this time! Someone's got to take responsibility if the job's going to get done! You think that's easy?
Corporal Miller: [shouts] I don't know! I'm not even sure who really is responsible any more.

Mesmo tendo apreciado Os Doze Condenados (1967), de Robert Aldrich, é difícil admitir que Os Canhões de Navarone seja melhor, mas dou o braço a torcer. Este talvez seja o filme que originou os Commando team movies que vieram depois, todos voltados para o combate do mesmo inimigo: os nazistas. A rigor, a figura do vilão nessas produções poderia ser qualquer coisa, já que o nazismo contribui apenas com a sua representação, o que favorece o trabalho dos roteiristas ao tornar desnecessário qualquer tipo de apresentação ou aprofundamento. Não é por menos que esses dois filmes e Fugindo do Inferno (1963), de John Sturges, se vendem também como aventuras (de guerra), ainda que longe do modelo adotado posteriormente por Spielberg na série Indiana Jones.

sábado, julho 13, 2013

César Deve Morrer (Paolo e Vittorio Taviani, 2012)



Mais um texto matador do Fábio Andrade para a Revista Cinética que tomo a liberdade de reproduzir abaixo. Irretocável.

Por Fábio Andrade

Claro e Escuro

No começo, há um teatro, aplausos e cor. César Deve Morrer parte do fim, da obra já consumada e aclamada, para em seguida rasgar sua barriga e as vísceras que a constituem. Das cores para o preto e branco, dos aplausos para os ensaios, do teatro para o presídio. O primeiro movimento é de desconstrução, mas o filme não assumirá este como o único caminho; neste começo, não temos acesso tampouco à obra acabada, apenas ao fato de que ela foi acabada. Voltando para o passado após afirmar um presente, este novo filme dos irmãos Taviani se dedica igualmente à construção, pegando um grupo de prisioneiros e transformando cada um deles em personagens de Shakespeare. As idas e vindas do processo criativo de César Deve Morrer compartilham uma mesma via de mão dupla. “Aclamações de novo. Esses aplausos devem significar que novas honras vão sendo acumuladas sobre César”, diz Bruto a Cássio, no texto original de Shakespeare. “Há momentos em que os homens são donos de seus fados”, responde Cássio. “Não é dos astros, caro Bruto, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos”.

À parte o texto de Shakespeare, César Deve Morrer é uma afirmação do poder cicatrizante da arte. Isso não se dá, porém, somente pela sua proposta, na frieza que pode ser reduzida a duas linhas em uma folha de papel. É inevitável pensar em Moscou, de Eduardo Coutinho, em Esse Amor que nos Consome, de Allan Ribeiro, e nos filmes de Straub & Huillet, mas essas remissões – os valores compartilhados – apenas encorpam o que está na tela e que, pouco a pouco, permite que os atores – aqueles corpos em função de – sejam mais do que instrumentos. De um lado, há o grifo constante do potencial criativo dos detentos, a quem é permitida uma breve e drástica mudança de condição, ou ao menos uma projeção dos papéis cotidianos da prisão em uma realidade completamente externa e separada por grades da deles. De outro, há a sublimação dos arquétipos de Shakespeare, tão precisos em sua construção que aderem com absoluta inteireza a contextos tão diversos. Em dado momento, o preso que faz o papel de Bruto (Salvatore Striano) diz ter vivido uma situação exatamente igual à encontrada no texto, apenas dita com palavras diferentes. “Esse Shakespeare cresceu na minha cidade”.

São deslocamentos como esse que fazem o filme passar como a manifestação final das crenças do velho e ainda incontornável neo-realismo. O magnetismo das performances registradas só evidencia sua pertinência. Pois o movimento mais impressionante do filme é justamente sua capacidade de, cena após cena, inverter posições sociais, seja nos próprios detentos, seja nos espaços. Paolo e Vittorio Taviani trabalham aqui como crupiês, embaralhando constantemente os papéis e redistribuindo-os de maneira a exigir novas regras para o jogo. A peça de Shakespeare não só reabilita o presídio ao transformá-lo em teatro… na verdade, acaba por revelar que a prisão é que é seu palco ideal. Ali, naquele espaço, os detentos podem experimentar o papel dos executores, desferindo juízos por entre as grades das celas, reocupando os corredores do presídio em irrestritos banhos de sol. Ainda assim, há os letreiros garrafais que estampam os crimes cometidos sob cada imagem do teste de elenco, sem qualquer intenção de retirar gravidade de cada vinco em cada rosto. A cada nova distribuição de cartas, o jogo de César Deve Morrer parece mais e mais complexo, mais e mais distante do discurso facilitador da arte como “medicina social” a que se refere Jacques Rancière.

Por mais que o teatro seja decisivo aqui, há uma diferença entre a pura ocupação teatral e o acréscimo da câmera, esse olhar flutuante que se coloca entre tudo. Em dado momento, ela segue Bruto de perto, às costas de sua caminhada por um corredor do presídio. “Quem vem às minhas costas?”, ele pergunta. “É seu espírito mal, Bruto”. Há algo de perturbador nessa equivalência que vai além do caráter fantasmático de toda imagem projetada – mais ainda se registrada por uma câmera de vídeo, como aqui. Neste caso, porém, o mal está mais próximo da idéia de perversão, do oposto simétrico, do diabo a soprar nos ouvidos que este mundo conhecido não é exatamente o único possível… é o fantasma a perseguir os presos com a ideia de que lá fora há uma outra vida.

A possibilidade de apontar para fora, dentro do mais absoluto confinamento, é, no fim das contas, uma maneira de reconfigurar esses espaços, sem, entretanto, negar-lhes a diferença. É um gesto político. A câmera é o único artefato em César Deve Morrer que pode existir tanto dentro quanto fora, em colorido ou em preto branco, fixa ou móvel… é o olhar que é outro, a expressão absoluta de alteridade, dotada de irrestrita mobilidade – logo, se colocando como oposto simétrico ao dispositivo de Paulo Sacramento em O Prisioneiro da Grade de Ferro. Sua importância política está justamente em ser a expressão visível deste outro, que remete às palavras que Shakespeare um dia fez Bruto dizer, e que seguem ecoando em cada fotograma aqui: “Não, Cássio; o olho a si mesmo não se enxerga, senão pelo reflexo em outra coisa”.

segunda-feira, julho 08, 2013

Quadrilha Maldita (André de Toth, 1959)




Meu primeiro André de Toth não poderia ter sido uma escolha mais inspirada. Já faz umas duas semanas que vi Quadrilha Maldita e nenhum filme visto nesse intervalo foi capaz de dissipar a excelente impressão deixada por esse belo western. Embora a produção seja de 1959, quando o gênero já se aproximava do esgotamento (ou crepúsculo, termo mais comumente usado), o retrato adotado do velho oeste é anterior a ideia de civilização intrínseca ao seu formato. A cidade em voga não passa de algumas poucas residências com pouco mais do que 20 habitantes em que a figura da lei (ou qualquer coisa próxima disso) é exercida não pelo xerife, ou alguma autoridade, mas pelo homem mais poderoso do povoado, o obstinado Blaise Starrett (Robert Ryan), tido como inescrupuloso pelos locais. Nem a típica rua central onde a ação costuma se desenrolar se faz presente: o tempo se passa antes da sua provável formação. A ideia recorrente nos westerns de retratar o início dos tempos poucas vezes recebeu um tratamento tão condizente.

Normalmente, as cidades retratadas já contam com a figura de um xerife e um juiz, suficientes para por em prática os preceitos de uma civilização moderna. Nisso John Ford foi melhor do que qualquer outro diretor. Em Quadrilha Maldita essas instâncias não existem. Quem determina o que pode ou não ser feito são os outlaws - o título original não poderia ser mais justo, Day of the Outlaw. A chegada do bando de Jack Bruhn (Burl Ives) vai colocar em cheque a liderança de Blaise Starrett forçando-o a experimentar um pouco do seu próprio veneno. O embate psicológico travado entre Ryan e Ives é memorável, o bastante para sustentar a tensão das tomadas internas. As externas são um show à parte, sem a qual o filme não gozaria da mesma fama. O frio é tão intenso e a neve tão espessa que o espectador se vê soltando vapor enquanto respira. O último terço requer o uso de abrigo para não congelar.

Essa imersão do espectador no espaço do filme é tão palpável, tátil, que o julgamento das motivações frágeis dos protagonistas acaba sendo menos questionado. Apesar de pouco convincentes, o envolvimento com o sacrifício físico da jornada final sob uma nevasca vigorosa ameniza qualquer fraqueza que o roteiro se mostrou incapaz de desenvolver a contento. A direção firme de Toth contrabalança.