sexta-feira, outubro 31, 2014

38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo - Parte 1


Melô (1986), Alain Resnais (FRANÇA)

Melodrama ou Melodia? A abreviação do título original pode ser tanto uma coisa como outra, pois faz referência à forma e conteúdo, igualmente e respectivamente. O ponto de inflexão na carreira de Resnais, inaugurando o flerte com o teatro que dominaria seus filmes a partir de então. Os detratores da ideia de teatro filmado não sobreviveram para ver o que Resnais seria capaz de fazer ao conjugar essas duas artes de naturezas afins, embora distintas. O mestre em pleno domínio de suas faculdades. E Sabine Azéma no auge do seu carisma e jovialidade.


Detetive D: O Dragão do Mar (2014), Tsui Hark (CHINA)

Se o público tivesse um pouco mais de disposição para aceitar produtos que não fossem exclusivamente americanos, esse seria um filme com alguma chance de conquistar uma gama mais ampla de admiradores. O melhor antídoto para a franquia Piratas do Caribe, preservando o mesmo senso de aventura, com um centésimo do orçamento. O tipo de programa que anda em falta na Sessão da Tarde. Hollywood cansou de fazer filmes desta estirpe, quando a tecnologia era mais escassa e a criatividade mais abundante. Um ótimo programa de entretenimento.


A Noite de São Lourenço (1982), Paolo e Vittorio Taviani (ITÁLIA)

Uma espécie de caravana a la John Ford, um road movie que transborda humanidade, deslocado do oeste norte-americano do século XIX para a Europa da Segunda Guerra Mundial. Quando os moradores de uma cidadezinha recebem a notícia de que os nazistas estão prestes a bombardeá-la, uma parcela deles abandona suas residências sem um plano de contingência traçado. Caminham a esmo pelas planícies italianas em busca de abrigo e do conforto que lhes foram confiscados, sujeitos a todo tipo de intempérie, capaz de pôr em risco a unidade do grupo. Nas mãos dos Taviani, um material farto de infortúnios encontra momentos de pura epifania.


Branco Sai, Preto Fica (2014), Adirley Queiroz (BRASIL)

É uma pena que os procedimentos adotados por Adirley para caracterizar seus personagens sejam repetidos à exaustão ao longo do longa-metragem, o que prejudica o impacto da proposta sobre o espectador (influenciando diretamente o ritmo do filme). Em compensação, a improvável fluência atingida pela alternância de gêneros (ficção x documentário; ficção científica x drama social) entusiasma, sobretudo pela coragem e os riscos assumidos. Para não sair da esfera da imaginação atrelada aos progressos científicos, o filme parece um óvni se considerado o conjunto das produções nacionais mais recentes. Não só animador como promissor.

domingo, outubro 19, 2014

O Rei de Nova York (Abel Ferrara, 1990)




Por Bernando Brum, do ótimo Cine Café

Abel Ferrara, filme após filme, fez do céu e do inferno forças que ditas opositoras, são assustadoramente próximas, conectadas e dependentes uma da outra. Do dilema do personagem de Harvey Keitel em Vício Frenético (1992) ao clímax com a serial killer surda-muda vestida de freira em Sedução e Vingança (1981), entre tantos outros momentos de sua filmografia, Ferrara costurou um mundo onde a sociedade, para continuar a existir, é progressivamente contaminada por uma pestilência inevitável, uma corrupção irresistível e uma tendência para a destruição impressionante.

Em O Rei de Nova York, a primeira de suas grandes obras-primas que iria realizar ao longo dos anos noventa, ele conta a história de Frank White, um chefão da cocaína de Nova York que, após anos encarcerado, se vê em liberdade de novo para mais uma vez reconstruir seu império, ajudado por sua gangue de traficantes negros.  Ao mesmo tempo que negocia e/ou combate outras gangues étnicas, também vê em seu encalço um grupo de policiais que desejam desesperadamente prender Frank e seus cúmplices.

Só pelo início, Ferrara já denuncia o que vem pela frente: cercado tanto da escória social quanto da alta cúpula da sociedade, White parece ser ideal para a profissão que escolheu: ao mesmo tempo, é refinado, implacável, charmoso e brutal – o que faz com que as pessoas nos postos mais altos da sociedade facilmente se sujeitem a ele, obriga outras gangues a se ajoelharem com sua mão de ferro, recruta bandidos não filiados, desperta desejo nas mulheres e a todo o momento faz a polícia se sentir desafiada.

Toda a aura de mito urbano construído em cima de Frank – fazendo dele um nome muito mais citado do que visto – é construído de forma absolutamente genial pelo diretor, desde a dança que reintegra o gângster a sua gangue, o que lembra em muito uma dança tribal, ainda que estejam cantando hip hop até os travellings de luz, sombras, corredores e vidros que fazem o personagem de Walken, com seu penteado revolto, palidez e figura imponente parecer uma espécie de Nosferatu reconfigurado, que faz de Nova York sua Transilvânia, mas que ao contrário da figura que lhe deu origem, não é uma criatura amaldiçoada por tudo e por todos, ainda que seja o pária. O mais poderoso dos párias, mas o desajustado em todos os lugares que frequenta. Inclusive, o clássico de Murnau é citado explicitamente onde uma tentativa de negociação ocorre num cinema particular onde uma gangue asiática assiste filmes do expressionista alemão.

A estilização feita da violência é outro ponto impressionante a se destacar. De cada momento violento, o diretor faz disto um ponto chave de mudança do roteiro e arranca uma imagem impressionante atrás da outra. O tratamento que Ferrara dá a cada uma delas é preciso demais – desde a execução de um informante delator, que tem uns plongées e contra-plongées aterrorizantes até sua sequência mais famosa, onde em uma boate barra pesada toda iluminada de azul começam a surgir faíscas brancas que provocam um esporro sonoro tremendo. Dessa imensa tela azul que não se deixa enxergar mais nada além dos contornos, Ferrara vai rompendo com luzes que prenunciam morte, destruição e degradação – a paz pervertida do azul é corrompida pela luz das balas sendo disparada, o interior da boate é rompido pelas infinitas ruas da Grande Maçã, o mormaço é substituído pela perseguição, a chuva rompe, começam as batidas e culminam nas mortes do mais leal dos traficantes e do mais dedicado policial.

Nessa cena, uma das maiores sínteses do cinema de Abel, podemos encontrar pela sua estética de raro domínio de compreensão e distorção de espaço o mesmo que vamos ouvir quando Walken invade o quarto de um dos únicos cabeças da operação que saiu vivo. “Você acha que me matando em algum clube noturno vai impedir o que leva alguém a se drogar?”, pergunta ele. “Eu não sou seu problema. Eu sou apenas um homem de negócios”. Após esse último discurso, vai embora. Numa perseguição de clima mais pesado ainda, o último momento de filme leva todos para o buraco. Policiais, civis e bandidos caem. Até o rei de Nova York, que faz o trânsito parar, o saudando sem saber. Sem marcha fúnebre, sangrando as tripas fora, sem o tapete vermelho, sem mulher, Frank White dá seu último suspiro encerrando uma das sequências mais sufocantes do cinema.

Objetivo, estilizado, metafórico e realista, Abel faz tudo chover na cara do espectador ao mesmo tempo, uma tempestade de paradoxos a nível de cartarse. Sem concessões ou freios, foi erguido um monumento cinematográfico de poderio inenarrável – uma das mais impressionantes orgias de imagem, luz, sombra, som, música e ruído da história.

domingo, outubro 12, 2014

Garota Exemplar (David Fincher, 2014)


Garota Exemplar começa e termina com a mesma imagem de Rosamund Pike (Amy Dunne), sobreposta pelo mesmo voice over de Ben Affleck (Nick Dunne), cujo conteúdo transparece uma insegurança dele a respeito dos pensamentos dela - as questões levantadas dizem respeito ao exercício do matrimônio. Entre estas mesmas duas cenas que exploram a sensualidade da atriz - no que seus cabelos são acariciados por ele, ela se vira para a câmera encarando o espectador -, David Fincher constrói a sua narrativa, baseada no best-seller de mesmo nome da autora Gillian Flynn (ela também assina o roteiro), como justificativa para nos provar que uma imagem assume significados distintos conforme o conjunto das circunstâncias em que ela está inserida.

De início, quando o contexto é desconhecido, a sensação que ela desperta é positiva, menos pelo conteúdo do voice over do que pela suposta pureza/inocência do rosto de Rosamund. Ao final, quando o jogo de aparências atinge o ápice da esculhambação, a sensação é negativa, de ameaça e medo, intimidante até, em virtude da frieza desconcertante da atriz.

David Fincher continua disposto a dar prosseguimento ao seu estudo sobre a mente de um sociopata. Sua intenção não é exatamente instruir o público a respeito da nocividade desse comportamento - sua abordagem é mais expositiva do que explicativa. O seu desafio sempre foi o de aproximar o público do raciocínio de um desequilibrado, sem o compromisso de tentar decifrá-lo, podendo, eventualmente, materializar o seu juízo na base da violência.

Desta vez, fica a impressão de que a natureza manipulativa dos seus primeiros longas (Seven: Os Sete Crimes Capitais e Clube da Luta), envolvendo circunstâncias menos escoradas na realidade - recheadas de reviravoltas improváveis -, incluindo os twists narrativos dos últimos atos, foi de encontro com a roupagem mais refinada alcançada nas últimas produções, decorrentes da apuração do estilo e de adaptações de caráter mais tangíveis (A Rede Social e Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres), ainda que predominantemente ficcionais.

As primeiras produções têm o mérito de deixar o espectador indagando sobre o mundo em que vivem. As narrativas são centradas em poucos personagens capazes de representar um mal estar generalizado. A estética é mais suja e desagradável, contribuindo para a transcendência das questões exploradas. As novas produções não conseguem decolar além dos dramas vivenciados pelos seus personagens. As histórias não possuem ressonância para além daqueles envolvidos com ela.

Seja como for, o prazer de assistir aos seus filmes permanece em alta conta. David Fincher é um cineasta de mão cheia, que parece vir modelado suas habilidades, consciente ou inconscientemente, para um público que procura/aprecia a sordidez, mas não quer se afogar nela. Pena, já que ao menos pra mim os seus filmes crescem em interesse quanto mais ele se embrenha nessa questão.

Garota Exemplar vale mais pela trôpega exploração do sexual thriller (Fincher faz o que pode para segurar as pontas da narrativa), cujo material que serviu de base não me parece muito digno de entusiasmo, do que por qualquer tentativa de se atribuir muita importância para a crise conjugal dos protagonistas. Se os personagens não estão muito interessados nela, o que dirá o espectador.

O diretor Richar Kelly, responsável por Donnie Darko (2001), escreveu um ensaio bastante interessante relacionando Garota Exemplar à De Olhos Bem Fechados (Stanley Kubrick, 1999), intitulado A Study of Psychopathy in the Heteronormative Patriarchal Occult. Já adianto que o texto é longo. Mas vale uma espiada.