domingo, outubro 12, 2014

Garota Exemplar (David Fincher, 2014)


Garota Exemplar começa e termina com a mesma imagem de Rosamund Pike (Amy Dunne), sobreposta pelo mesmo voice over de Ben Affleck (Nick Dunne), cujo conteúdo transparece uma insegurança dele a respeito dos pensamentos dela - as questões levantadas dizem respeito ao exercício do matrimônio. Entre estas mesmas duas cenas que exploram a sensualidade da atriz - no que seus cabelos são acariciados por ele, ela se vira para a câmera encarando o espectador -, David Fincher constrói a sua narrativa, baseada no best-seller de mesmo nome da autora Gillian Flynn (ela também assina o roteiro), como justificativa para nos provar que uma imagem assume significados distintos conforme o conjunto das circunstâncias em que ela está inserida.

De início, quando o contexto é desconhecido, a sensação que ela desperta é positiva, menos pelo conteúdo do voice over do que pela suposta pureza/inocência do rosto de Rosamund. Ao final, quando o jogo de aparências atinge o ápice da esculhambação, a sensação é negativa, de ameaça e medo, intimidante até, em virtude da frieza desconcertante da atriz.

David Fincher continua disposto a dar prosseguimento ao seu estudo sobre a mente de um sociopata. Sua intenção não é exatamente instruir o público a respeito da nocividade desse comportamento - sua abordagem é mais expositiva do que explicativa. O seu desafio sempre foi o de aproximar o público do raciocínio de um desequilibrado, sem o compromisso de tentar decifrá-lo, podendo, eventualmente, materializar o seu juízo na base da violência.

Desta vez, fica a impressão de que a natureza manipulativa dos seus primeiros longas (Seven: Os Sete Crimes Capitais e Clube da Luta), envolvendo circunstâncias menos escoradas na realidade - recheadas de reviravoltas improváveis -, incluindo os twists narrativos dos últimos atos, foi de encontro com a roupagem mais refinada alcançada nas últimas produções, decorrentes da apuração do estilo e de adaptações de caráter mais tangíveis (A Rede Social e Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres), ainda que predominantemente ficcionais.

As primeiras produções têm o mérito de deixar o espectador indagando sobre o mundo em que vivem. As narrativas são centradas em poucos personagens capazes de representar um mal estar generalizado. A estética é mais suja e desagradável, contribuindo para a transcendência das questões exploradas. As novas produções não conseguem decolar além dos dramas vivenciados pelos seus personagens. As histórias não possuem ressonância para além daqueles envolvidos com ela.

Seja como for, o prazer de assistir aos seus filmes permanece em alta conta. David Fincher é um cineasta de mão cheia, que parece vir modelado suas habilidades, consciente ou inconscientemente, para um público que procura/aprecia a sordidez, mas não quer se afogar nela. Pena, já que ao menos pra mim os seus filmes crescem em interesse quanto mais ele se embrenha nessa questão.

Garota Exemplar vale mais pela trôpega exploração do sexual thriller (Fincher faz o que pode para segurar as pontas da narrativa), cujo material que serviu de base não me parece muito digno de entusiasmo, do que por qualquer tentativa de se atribuir muita importância para a crise conjugal dos protagonistas. Se os personagens não estão muito interessados nela, o que dirá o espectador.

O diretor Richar Kelly, responsável por Donnie Darko (2001), escreveu um ensaio bastante interessante relacionando Garota Exemplar à De Olhos Bem Fechados (Stanley Kubrick, 1999), intitulado A Study of Psychopathy in the Heteronormative Patriarchal Occult. Já adianto que o texto é longo. Mas vale uma espiada.

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