domingo, outubro 19, 2014

O Rei de Nova York (Abel Ferrara, 1990)




Por Bernando Brum, do ótimo Cine Café

Abel Ferrara, filme após filme, fez do céu e do inferno forças que ditas opositoras, são assustadoramente próximas, conectadas e dependentes uma da outra. Do dilema do personagem de Harvey Keitel em Vício Frenético (1992) ao clímax com a serial killer surda-muda vestida de freira em Sedução e Vingança (1981), entre tantos outros momentos de sua filmografia, Ferrara costurou um mundo onde a sociedade, para continuar a existir, é progressivamente contaminada por uma pestilência inevitável, uma corrupção irresistível e uma tendência para a destruição impressionante.

Em O Rei de Nova York, a primeira de suas grandes obras-primas que iria realizar ao longo dos anos noventa, ele conta a história de Frank White, um chefão da cocaína de Nova York que, após anos encarcerado, se vê em liberdade de novo para mais uma vez reconstruir seu império, ajudado por sua gangue de traficantes negros.  Ao mesmo tempo que negocia e/ou combate outras gangues étnicas, também vê em seu encalço um grupo de policiais que desejam desesperadamente prender Frank e seus cúmplices.

Só pelo início, Ferrara já denuncia o que vem pela frente: cercado tanto da escória social quanto da alta cúpula da sociedade, White parece ser ideal para a profissão que escolheu: ao mesmo tempo, é refinado, implacável, charmoso e brutal – o que faz com que as pessoas nos postos mais altos da sociedade facilmente se sujeitem a ele, obriga outras gangues a se ajoelharem com sua mão de ferro, recruta bandidos não filiados, desperta desejo nas mulheres e a todo o momento faz a polícia se sentir desafiada.

Toda a aura de mito urbano construído em cima de Frank – fazendo dele um nome muito mais citado do que visto – é construído de forma absolutamente genial pelo diretor, desde a dança que reintegra o gângster a sua gangue, o que lembra em muito uma dança tribal, ainda que estejam cantando hip hop até os travellings de luz, sombras, corredores e vidros que fazem o personagem de Walken, com seu penteado revolto, palidez e figura imponente parecer uma espécie de Nosferatu reconfigurado, que faz de Nova York sua Transilvânia, mas que ao contrário da figura que lhe deu origem, não é uma criatura amaldiçoada por tudo e por todos, ainda que seja o pária. O mais poderoso dos párias, mas o desajustado em todos os lugares que frequenta. Inclusive, o clássico de Murnau é citado explicitamente onde uma tentativa de negociação ocorre num cinema particular onde uma gangue asiática assiste filmes do expressionista alemão.

A estilização feita da violência é outro ponto impressionante a se destacar. De cada momento violento, o diretor faz disto um ponto chave de mudança do roteiro e arranca uma imagem impressionante atrás da outra. O tratamento que Ferrara dá a cada uma delas é preciso demais – desde a execução de um informante delator, que tem uns plongées e contra-plongées aterrorizantes até sua sequência mais famosa, onde em uma boate barra pesada toda iluminada de azul começam a surgir faíscas brancas que provocam um esporro sonoro tremendo. Dessa imensa tela azul que não se deixa enxergar mais nada além dos contornos, Ferrara vai rompendo com luzes que prenunciam morte, destruição e degradação – a paz pervertida do azul é corrompida pela luz das balas sendo disparada, o interior da boate é rompido pelas infinitas ruas da Grande Maçã, o mormaço é substituído pela perseguição, a chuva rompe, começam as batidas e culminam nas mortes do mais leal dos traficantes e do mais dedicado policial.

Nessa cena, uma das maiores sínteses do cinema de Abel, podemos encontrar pela sua estética de raro domínio de compreensão e distorção de espaço o mesmo que vamos ouvir quando Walken invade o quarto de um dos únicos cabeças da operação que saiu vivo. “Você acha que me matando em algum clube noturno vai impedir o que leva alguém a se drogar?”, pergunta ele. “Eu não sou seu problema. Eu sou apenas um homem de negócios”. Após esse último discurso, vai embora. Numa perseguição de clima mais pesado ainda, o último momento de filme leva todos para o buraco. Policiais, civis e bandidos caem. Até o rei de Nova York, que faz o trânsito parar, o saudando sem saber. Sem marcha fúnebre, sangrando as tripas fora, sem o tapete vermelho, sem mulher, Frank White dá seu último suspiro encerrando uma das sequências mais sufocantes do cinema.

Objetivo, estilizado, metafórico e realista, Abel faz tudo chover na cara do espectador ao mesmo tempo, uma tempestade de paradoxos a nível de cartarse. Sem concessões ou freios, foi erguido um monumento cinematográfico de poderio inenarrável – uma das mais impressionantes orgias de imagem, luz, sombra, som, música e ruído da história.

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